12 Mai 2021
Já antes da pandemia, a preocupação filosófica, econômica e inclusive ambiental pelo futuro ocupou boa parte dos debates, mesas-redondas e catálogos editoriais. A famosa frase pronunciada por Mark Fisher de que “é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo” ressaltava uma verdade paralisante: não há no horizonte um futuro diferente, só resta aprofundar o que temos até chegar ao colapso.
Alejandro Galliano, historiador, escritor e ilustrador, autor de Por qué el capitalismo puede soñar y nosotros no: breve manual de las ideas de izquierda para pensar el futuro (Siglo XXI), conversou sobre a crise das utopias, as dinâmicas trabalhistas do futuro e as novas configurações urbanas.
A entrevista é de Pablo Nardi, publicada por Infobae, 08-05-2021. A tradução é do Cepat.
O fato de que, nos últimos anos, tenham proliferado as ficções distópicas está relacionado à falta de um futuro alternativo?
Suponho que não digo nada novo se relaciono o auge distópico com o atual momento de incerteza e pessimismo, não só em relação a um futuro alternativo, mas sobre qualquer futuro. Também não desconsideraria a falta de imaginação da indústria cultural como causa destas modas. Mais interessante é ver o novo uso que se dá ao “distópico”.
Diferente da “utopia”, que é um conceito muito estudado, ninguém tem total clareza do que chamar de “distopia”. A priori, parece algo derivado das teorias filosóficas sobre a degeneração dos governos em tiranias (Platão, Maquiavel, por exemplo). Por isso, as distopias clássicas (Orwell, Atwood) buscavam alertar sobre esse risco.
A particularidade do presente é rotular como “distópica” qualquer experiência contemporânea (a quarentena, a inteligência artificial), o que suprime a projeção futurista do conceito original: já não previne um futuro, descreve um presente. Assim, dilui seu sentido didático e passa a alimentar uma histeria paralisante, uma crispação conservadora.
Como fez o modelo de mercado para se “apoderar” do futuro e não dar lugar a utopias alternativas?
A crise das utopias é muito anterior ao neoliberalismo. Até a Primeira Guerra Mundial, o utopismo era essencialmente um exercício especulativo, servia para pensar em sociedades (as existentes, as possíveis). De vez em quando, acontecia de alguém levá-las à prática e fracassava rápida e silenciosamente.
A partir da Primeira Guerra, esses experimentos se tornaram territoriais, primeiro com o bolchevismo e os fascismos, depois com a Guerra Fria, que delineou dois blocos que se ofereciam como utopias do outro: “socialismo” versus “liberalismo”. Essa territorialização acarretava equívocos: os kibutz coletivistas de Israel ficaram do lado capitalista; vários nacionalismos militaristas africanos, do lado comunista.
Um utopismo assim territorializado ficava exposto a variáveis concretas. A partir de 1980, começou o colapso dos sistemas comunistas, o esgotamento das soluções keynesianas de social-democracias e populismos, e o recuo dos movimentos anticapitalistas, do operaísmo ao foquismo. Simultaneamente, o thatcherismo primeiro e o Vale do Silício depois ofereciam um novo e atrativo modelo de sociedade de mercado: global, disruptivo, multicultural, pós-industrial.
O problema é que esse modelo também quebrou entre 2001 e 2008, de modo que hoje o futuro de alguma maneira não tem dono. Isso pode explicar a atual febre distópica, mas também pode ser uma oportunidade para assumir (e reconstruir) esse horizonte, ao menos de maneira precária.
No livro, aborda que a tecnologia não fará o trabalho desaparecer, apenas o polarizará. Quem serão os ganhadores e os perdedores no novo capitalismo?
Adotei a noção de polarização do trabalho do economista David Autor, em contraste com a tese da automação total. Cada tecnologia imita e melhora um punhado de ações humanas, um tipo de trabalhador. A robótica dos anos 1980 permitiu substituir operários não qualificados em grandes instalações industriais. O software e o Big Data atuais permitem substituir o trabalho administrativo: contadores, jornalistas, data entry, entre outros.
Velhos e novos trabalhadores de colarinho branco que se percebem como de “classe média” podem ser substituídos ou precarizados por um algoritmo. Por cima, prospera uma elite de novos trabalhos (coders, marketing digital). Por baixo, persiste uma massa de trabalhadores não qualificados e tão flexibilizados que já não seria rentável substituir por uma máquina.
De qualquer modo, é preciso ser muito cuidadoso com estas projeções porque nem os modelos de negócios, nem as estratégias dos trabalhadores e nem as tecnologias são variáveis estáveis e únicas: vão mudando tanto por sua interação, como por dinâmicas próprias. Conhecemos a tendência geral, mas não seus efeitos precisos.
A pergunta pelos “ganhadores e perdedores” é mais ampla e complicada. A priori, parece óbvio que as big techs são as ganhadoras, mas seria pertinente perguntar sobre as big techs de que lugar. Em um contexto de desglobalização e estagnação, os interesses nacionais e regionais se tornam mais agudos. A Ásia avança e não se sabe quem irá vencer a corrida pela inteligência artificial.
O mesmo acontece na base da pirâmide. Não é a mesma coisa a precarização traumática de trabalhadores assalariados e o ‘modus vivendi’ precário de catadores, biscateiros, entregadores, que já incorporaram a famosa “disrupção” em suas rotinas e valores. Aí também pode haver disputas e novos sujeitos.
Não deveria mais nos surpreender ver adolescentes de subúrbios desindustrializados aderir o liberalismo libertário; ou universitários formados sem oportunidades de mobilidade social ascendente apoiar movimentos populares críticos aos valores da “classe média”.
No capítulo dedicado à economia social, fala-se do “exército industrial de reserva”, ou seja, a massa da população desempregada. Onde está esse grupo hoje e que lugar você o atribui no futuro?
Antes de responder, vale a pena fazer um esclarecimento. Nesse capítulo, falo da “massa marginal”, um conceito que foi desenvolvido por José Nun, um cientista social recentemente falecido, a partir da noção marxista de “superpopulação relativa” e oposto ao “exército industrial de reserva”.
O “exército industrial” era a maneira de se referir a um conjunto de trabalhadores desempregados, mas prontos para ser empregados a qualquer momento, que cumpriam a função de aumentar a oferta de trabalho e assim manter os salários baixos. A “massa marginal”, ao contrário, é um conjunto de pessoas que não serão mais empregadas e não cumprem função alguma no funcionamento do capitalismo, porque o mercado de trabalho e o processo produtivo não precisam delas.
São pessoas sobrantes. Um conceito muito atual que Nun desenvolveu em 1969. Ainda hoje, há acadêmicos que o homenageiam, mas confundem a massa marginal com o exército industrial de reserva. A massa marginal é um fenômeno estável, quando não crescente, dos últimos 50 anos, que obriga os governos a traçar diversas políticas de contenção para essas pessoas, porque não há mais integração possível na economia formal.
No livro, arrisco a hipótese de que, com as atuais transformações no processo produtivo, talvez a maior parte dos trabalhadores acabe sobrando, ao menos parcialmente, porque, ainda que sejamos empregados, são por prazos curtos e precários: monotributo, colaboradores de plataformas, bicos informais. De tal modo que as formas salariais de distribuir a riqueza (paritárias, obras sociais, entre outros) abarcam cada vez menos pessoas, e é necessário complementá-las crescentemente com formas não salariais, mas igualmente negociáveis.
Qual é a importância do ócio civilizatório e a renda universal em um futuro possível?
A renda universal é importante pelo que eu disse mais acima: na medida em que o trabalho assalariado retrocede frente às formas de trabalho não assalariadas, uma renda por fora do salário (“universal”) é uma maneira de garantir um sustento estável às famílias. Essa é uma ideia básica compartilhada por grupos de esquerda, empresários do Vale do Silício e alguns economistas ortodoxos.
Por trás desse aparente consenso, há um conflito: o que deve sustentar essa renda universal? Uma resposta conservadora é que deve cobrir as necessidades básicas. Inclusive pode ser um pretexto para cortar ou suprimir outras conquistas (bolsas, aposentadorias, serviços públicos não remunerados como a saúde).
Uma resposta progressista deve partir da base de que essa renda é parte da riqueza que geramos ou compartilhamos entre todos (a terra, os dados digitais, o risco ambiental). E o que se paga não é um tempo inerte no qual é preciso se limitar a subsistir, mas a pertença a uma sociedade que encontrou a forma de produzir riqueza com menos trabalho humano.
Isso é o ócio civilizatório: se não há mais trabalho assalariado para todos e desejamos sinceramente que cada pessoa se desenvolva como empreendedor, devemos facilitar os meios. Financiar com riqueza pública a vara para que aprenda a pescar, para citar uma imagem um pouco infantil, mas muito frequente.
No livro, afirma-se: “As novas comunicações e a possiblidade de imprimir objetos em 3D tiram o sentido do velho cinturão industrial”. Como você imagina as cidades do futuro?
Escrevi o livro antes da pandemia. Naquele momento, os urbanistas tinham duas grandes posições diante das mudanças tecnológicas e trabalhistas. Alguns pensavam que os subúrbios industriais iriam ficar despovoados e empobrecidos (este último acontece, de fato, há 40 anos) e as cidades ficariam superlotadas com programadores, professores, entregadores e babás. Outros, ao contrário, sustentavam que a virtualidade, por um lado, e a poluição urbana, por outro, iriam favorecer uma espécie de novo ruralismo.
Com a COVID-19, esta última profecia está muito mais em alta, mas eu não me precipitaria. No atual mercado imobiliário, o “retorno ao campo” seria uma opção para poucos ou uma farsa. As comunicações também não estão à altura do êxodo. Não só a conectividade, a “última milha” para a entrega ainda é um problema de custos para Amazon (a entrega por drones ainda é experimental), mais ainda para o Mercado Livre ou PedidosYa. Sem falar da infraestrutura energética e sanitária. Além disso, as cidades persistirão como refúgio para os pobres. Sem ir muito longe, a monocultura e as inundações continuam expulsando pessoas do campo.
Em todo caso, em vez de tentar adivinhar o que irá acontecer, seria necessário aproveitar a crise para conceber um modelo urbano melhor. As megalópoles com grandes subúrbios parecem inviáveis, mas cobrir as zonas rurais e seus pântanos com desenvolvimentos urbanos dispersos (mesmo sustentáveis) encareceria a vida e agravaria a crise climática.
Uma solução seria fomentar mais cidades médias, compactas, equipadas e com espaços verdes, cercadas por um cinturão hortícola que as abasteça, e desocupar boa parte das zonas rurais para que se regenerem, uma espécie de grande reserva monitorada com a tecnologia disponível.
Nas páginas finais, ressalta que a Argentina pode ser um modelo pós-apocalíptico. O que você quis dizer?
Essas páginas finais são muito irresponsáveis e essa frase é ainda mais. Mas me responsabilizo. Voltando à questão distópica da primeira pergunta: se o futuro parece fechado ou catastrófico, a discussão passa pela política diante desse apocalipse.
As novas direitas têm uma postura pré-apocalíptica: alertam-nos sobre o colapso iminente da civilização ocidental por algo estranho a nós (minorias sexuais, imigrantes, terroristas) e propõem acantonar e recuperar os velhos bons tempos: patriarcalismo, trabalho industrial, etc.
Essa proposta parece muito eficaz contra o discurso normalizador do liberalismo global, mas fracassou diante dos verdadeiros colapsos. Basta ver como Trump e Bolsonaro reagiram frente à COVID-19 e a crise climática. Por isso, uma possível resposta seria muito mais pós-apocalíptica: assumir que os verdadeiros colapsos já estão ocorrendo por algo interno a nós (pestes, poluição) e forçar um debate sobre como nos organizar daqui para frente. Quase tudo o que eu disse nesta entrevista vai nesse sentido.
O que a experiência argentina pode contribuir? Desde 2001 (talvez desde 1975), este país viveu tanto seus períodos de prosperidade como os de recessão, em um contexto de precariedade institucional, escassez de recursos e iminente colapso político e econômico. Precariedade, escassez e colapso são justamente os traços distintivos desta nova época global, e o efeito da COVID-19 no mundo está mostrando isso.
Não é por acaso que o conceito de “ciência pós-normal” tenha sido desenvolvido na Europa por um cientista argentino: Silvio Funtowicz. Talvez o Antropoceno seja um longo 2001 global que requer uma nova ciência da precariedade e a contingencia para ser governado. E vivido. Se a “distopia” será um traço do presente, busquemos domá-la.
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“A massa marginal é um conjunto de pessoas que não serão mais empregadas”. Entrevista com Alejandro Galliano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU