31 Março 2022
“Vladimir Putin não está interessado nos valores cristãos. Caso contrário, não bombardearia as suas próprias Igrejas na Ucrânia. Não arrasaria cidades inteiras como Mariupol, sem nenhuma misericórdia pela população civil e pelos fiéis ortodoxos. Onde está a fraternidade entre o povo russo e ucraniano?”
A reportagem é de Tonia Mastrobuoni, publicada em La Repubblica, 30-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Evstratij Zoria é o arcebispo de Chernihiv e Nizhyn, e porta-voz do Santo Sínodo. É um dos chefes da Igreja Ortodoxa Ucraniana. E ele conta ao La Repubblica a revolução silenciosa, mas surpreendente, das paróquias em relação à invasão de Vladimir Putin.
O crescente descontentamento de muitos padres e fiéis que pertencem ao patriarcado russo se transformou em revolta aberta no último mês. Depois das bombas, a destruição de cidades inteiras, e, após a pregação belicista do Patriarca Kirill em apoio a Putin, já são uma centena as paróquias russas que deram as costas a Moscou e se uniram à Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana, segundo relatos do primaz, o Metropolita Epifânio. Que, nessa terça-feira, 29, também dirigiu um apelo explícito aos padres rebeldes para se unirem à sua Igreja.
Agora, já há uma guerra aberta entre as duas Igrejas “irmãs” de Moscou e Kiev. O arcebispo Zoria tem uma opinião muito clara sobre a pregação sangrenta de Kirill: “Uma farsa”. Além disso, o alto prelado está convencido de que Kirill se jogou aos pés de Putin não só porque a Igreja de Moscou sempre foi “um departamento do Estado russo” e agora é o braço espiritual do imperialismo do Kremlin. Mas também porque Kirill tem um rival perigoso que poderia tomar o seu lugar, se ele se mostrar menos obediente a Putin: Tikhon Shevkunov, metropolita de Pskov, é o fanático e fidelíssimo guia espiritual do presidente. O seu Rasputin.
A atual revolta ucraniana muitas vezes começou a partir de Igrejas individuais e dos fiéis, como demonstra o caso do Mosteiro da Ressurreição de Cristo em Lviv, um dos primeiros a anunciar o cisma em relação a Moscou. Quando chegamos ao pátio, quem nos acolhe é o guardião Andriy Matyla.
Sobre o Patriarca Kirill, o homem de 54 anos interrompe a conversa – “É Satanás” – e, para provar isso, nos leva a uma das poucas salas aquecidas do mosteiro do século XIX, cuja restauração foi impedida pela guerra. Uma família de refugiados de Zaporizhzhia dorme nas camas improvisadas em um canto da sala. No lado oposto, quatro estelas com os ícones dos santos convidam à oração.
“Aqui estão os resultados da humanidade de Putin e de Kirill, do amor deles pelos ‘irmãos ucranianos’: milhões de fiéis em fuga das suas bombas”, comenta Andriy.
Enquanto isso, nas redes sociais digitais, chega uma notificação inquietante no nosso celular. Um vídeo divulgado pelo canal do Telegram “Osint Ukraine” mostra voluntários das guardas territoriais ucranianas arrastando um padre para fora de uma igreja ortodoxa russa.
Os telejornais martelam há dias casos de espiões escondidos pelos padres fiéis a Moscou, narram episódios contínuos de colaboracionismo das paróquias filiadas à Igreja de Kirill com o exército russo. É difícil de verificar.
“O que é certo”, explica o abade do mosteiro, Padre Jó, quando se junta a nós depois da sua visita aos centros de acolhimento para as pessoas deslocadas, “é que, no fim da guerra, a separação estará completa: a Igreja Ortodoxa Russa não existirá mais na Ucrânia. Porque a revolta é política, não se trata da fé: nunca esperaríamos do nosso patriarca em Moscou que ele pudesse abençoar as bombas”.
Quando a Rússia invadiu o seu país, o Padre Jó promoveu uma carta de 40 paróquias para pedir que não se mencionasse mais Kirill nas pregações e para iniciar um processo de separação de toda a Igreja Ortodoxa Russa de Moscou. “Depois de 15 dias de silêncio total, foram os meus paroquianos que me pediram para nos separarmos da Rússia.”
A Igreja Ortodoxa permite que se mude de afiliação, se as paróquias decidirem isso por maioria. “Esta – conclui o abade – é uma revolução de baixo para cima. Se os bispos não a fizerem, os fiéis a farão.”
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Ortodoxos ucranianos rumo ao cisma: “Não somos tratados como irmãos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU