17 Novembro 2021
COP26 termina com amplo acordo e conclui livro de regras de Paris, mas deixa aceleração da ambição para 2022 e não resolve financiamento para pobres.
A análise é publicada por Observatório do Clima, 13-11-2021.
“Compromisso”, “desconforto” e “imperfeito” foram algumas das palavras mais ouvidas na tarde deste sábado (13/11), quando mais de 190 nações aprovaram o pacote de decisões da COP26, a conferência do clima de Glasgow. O encontro de duas semanas teve sucesso em finalizar o chamado “livro de regras” do Acordo de Paris, mas não conseguiu entregar a ambição necessária para a redução de emissões de gases de efeito estufa em linha com o objetivo do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global em 1,5oC neste século. A salvação do clima foi adiada mais uma vez, para 2022, quando o mundo volta a se reunir em Sharm el Sheikh, no Egito, para avaliar metas mais ambiciosas para 2030.
Pior ainda, Glasgow fracassou em assegurar financiamento consistente dos países ricos para os países em desenvolvimento. Por influência principalmente dos ricos, a proposta de criar um mecanismo de financiamento expresso para as perdas e danos sofridas por nações vulneráveis por conta de impactos climáticos foi descartada. O que deveria ser um mecanismo virou um “diálogo”.
Para não sair da Escócia com as mãos abanando, o que faria ruir o processo da Convenção do Clima da ONU, os países aceitaram — com várias reclamações — o conjunto de textos proposto na manhã de sábado pelo presidente da COP, o britânico Alok Sharma. À exceção da Índia, que na plenária final conseguiu aguar o texto sobre combustíveis fósseis, para revolta geral, todos os outros países que se queixaram subscreveram o pacote, “no espírito do compromisso”.
A representante das Maldivas na plenária de apresentação do texto, iniciada com três horas de atraso, resumiu a questão: “Quero notar que o que é equilibrado e pragmático para outras Partes não vai ajudar as Maldivas a se adaptar a tempo (...) Enquanto reconhecemos o alicerce que este resultado provê, por favor façam-nos a cortesia de reconhecer que ele não traz esperança aos nossos corações, mas serve como uma conversa na qual nós colocamos nossos lares em risco enquanto aqueles que têm opções decidem o quão rápido eles querem ajudar a salvar aqueles que não têm”. Ela também traduziu em tempo a tarefa gigantesca que o processo multilateral da Convenção do Clima tem diante de si: guiar o mundo para reduzir as emissões pela metade em apenas 98 meses.
“Não é mais possível medir o progresso da negociação segundo a régua do texto anterior. A única régua possível é a da ciência do IPCC, e a COP26 não reflete a urgência vista no relatório do painel dos cientistas do clima da ONU. Duvido que alguém que está com a vida e a família sob risco numa ilha do Pacífico ou no Nordeste do Brasil vá ficar satisfeito com o resultado”, disse Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.
Fora das salas de negociação, a conferência de Glasgow, que foi chamada de “a mais excludente da história” por conta de protocolos sanitários, dos preços da cidade-sede e das restrições a observadores, teve uma presença maciça da sociedade civil: jovens, indígenas, movimento negro e mulheres compareceram em peso e protestaram diversas vezes por justiça climática e contra o greenwash denunciado pela ativista Greta Thunberg. As dezenas de milhares de pessoas nas ruas de Glasgow nos atos de sexta e sábado mostraram que a sociedade está mais adiantada que os governos — e pouco disposta a deixar que triunfe o blá, blá, blá.
Veja a seguir alguns dos principais pontos do pacote de decisões da COP26.
Reconhece que as emissões terão de cair 45% em 2030 em relação a 2010 e para zero líquido “por volta do meio do século” para estabilizar o aquecimento global em 1,5oC.
Decide estabelecer um plano de trabalho para acelerar a ambição da mitigação e da implementação nesta década, a ser adotado na COP27, em 2022.
Requer às partes que atualizem e reforcem até o fim de 2022 suas metas nacionais (NDCs) para 2030 de forma a alinhá-las com a meta de estabilização do Acordo de Paris.
Propõe a realização de reuniões ministeriais anuais para tratar de ambição pré-2030 — a partir da COP27.
Exorta as Partes a “acelerar os esforços” para reduzir gradativamente (phase down) o carvão mineral “sem abatimento” e os “subsídios ineficazes” a combustíveis fósseis.
Insuficiente: Embora avance ao ser o primeiro documento da Convenção do Clima a mencionar combustíveis fósseis, a proposta indiana, feita no último minuto na plenária final, de trocar a expressão “eliminar gradativamente” (phase out) por “reduzir gradativamente” (phase down), e os qualificativos “sem abatimento” e “insuficiente”, que vêm sendo usados pelo G20 há anos sem que nada mude, garantem a sobrevida dessas fontes de energia. Chuta para 2022 decisões importantes sobre ambição.
Avança na operacionalização da Rede de Santiago de Perdas e Danos, um mecanismo de apoio aos países vulneráveis, e decide que a rede terá financiamento próprio para seu funcionamento e para assistência técnica.
Decide estabelecer um “diálogo” entre as partes para “discutir os arranjos” para o financiamento de perdas e danos, derrubando a proposta dos países em desenvolvimento de criar um mecanismo de financiamento em Glasgow.
Ruim: Estima-se que os países africanos já gastem por ano 10% de seu PIB com impactos de eventos climáticos extremos. A sucessão extraordinária de eventos extremos em 2021 mostrou que não pode haver mais adiamento na criação de um instrumento que permita aos países vulneráveis acessar imediatamente recursos sem se endividar para ações de proteção, prevenção e reconstrução. Os países desenvolvidos não quiseram.
“Nota com profundo pesar” que os países ricos não cumpriram a meta de mobilizar US$ 100 bilhões por ano a partir de 2020 para bancar adaptação e mitigação nos países em desenvolvimento.
Exorta os países ricos a prover clareza sobre a entrega e a cumpri-la com urgência até 2025.
Decide estabelecer um programa de trabalho entre 2022 e 2024 para estabelecer a meta de financiamento climático que valerá após 2025 e que, segundo o Acordo de Paris, terá de ser substancialmente maior que US$ 100 bilhões por ano.
Ruim: Apesar de a COP ter cumprido o esperado e lançado a base para a decisão sobre a meta de 2025, apenas reconhecer e lamentar que os países ricos não cumpriram sua obrigação é chocante.
A COP lançou um programa de trabalho chamado Glasgow-Sharm el-Sheikh sobre a chamada Meta Global de Adaptação, que deveria chegar a um objetivo equivalente ao de mitigação (o 1,5o C) para a adaptação à mudança do clima, inclusive no que diz respeito a financiamento.
Conclama os países desenvolvidos a dobrar os recursos para adaptação nos países em desenvolvimento em 2025 em relação a 2019.
Na regulamentação do Artigo 6, ficou definido que 5% da receita (share of proceeds) da comercialização de créditos de carbono em projetos será destinada ao financiamento à adaptação nos países pobres.
Bom: Além de fechar um dos temas pendentes da regulamentação do Acordo de Paris, o share of proceeds, a COP ainda estabeleceu uma meta concreta para aumento do financiamento à adaptação.
Decide que as NDCs serão comunicadas com prazos de cinco anos em vez de dez, o que é mais ambicioso, mas apenas “estimula” os países a submeter suas metas nesses prazos mais curtos, sem nenhuma amarra formal.
Insuficiente: Metas de cinco anos são mais fáceis de atualizar e de fiscalizar e estão mais alinhadas com o Acordo de Paris, cujo mecanismo de “catraca” prevê revisões quinquenais de ambição coletiva. Os marcos temporais comuns de cinco anos foram defendidos por Brasil e Estados Unidos, aceitos pela inicialmente relutante Europa, mas não passaram pela China, que defende dez anos e acabou aguando o texto no final.
O texto do artigo 6.4, o mais complicado, que o Brasil vinha travando desde 2018, foi resolvido. Todos os créditos vendidos na modalidade de projetos, no chamado Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável, terão de sofrer “ajustes correspondentes”, ou seja, precisarão ser descontados das metas do comprador e acrescidos às metas do vendedor, de forma a não serem descontados duas vezes (“dupla contagem”). Foi criada, ainda, uma modalidade de créditos “não autorizados”, que poderão ser isentos de ajustes correspondentes e negociados num mercado voluntário.
No entanto, os créditos de carbono do chamado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo do Protocolo de Kyoto gerados até 2013 poderão não apenas ser carregados para dentro do Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável, como também poderão ser usados pelos países para cumprir suas NDCs no Acordo de Paris.
Créditos de carbono florestal foram excluídos das transações entre países (reguladas pelo artigo 6.2).
Bom, mas: O uso de créditos de MDL no novo mecanismo, um pleito da indústria brasileira, é imoral, mas o volume em toneladas de CO2 desses créditos não é muito grande, o que não prejudica o mercado de carbono de forma geral.
Duas novidades da COP26 foram os acordos, assinados logo na primeira semana, para reduzir as emissões globais de metano em 30% em 2030 em relação a 2020 e para zerar e reverter a perda de florestas no mundo até 2030. São objetivos externos à negociação, mas que podem dar um impulso importante para o cumprimento das metas de Paris.
O acordo sobre florestas é especialmente importante para o Brasil, que em 2020 tinha 46% de suas emissões advindas de desmatamento. Mesmo que o atual governo brasileiro não tenha intenção de cumpri-lo, os três principais compradores de commodities do Brasil — China, Estados Unidos e União Europeia — aderiram ao pacto, e a China anunciou que considerará legislação para barrar importações de produtos advindos de desmatamento.
O Brasil chegou a Glasgow dividido em três. De um lado, o governo federal: diplomaticamente isolado, enfraquecido e disposto, por isso mesmo, a tentar fazer um greenwash maciço. Alugou um pavilhão amplo, com patrocínio da indústria, para mostrar o que o ministro do Meio Ambiente chamava de “Brasil real”. Credenciou um grande número de representantes dos lobbies do agronegócio (9) e da indústria (6), além de 25 empresários ou executivos de empresas. Não convenceu muita gente, a julgar pelo pavilhão pouco movimentado. Um funcionário do Ministério do Meio Ambiente protagonizou uma das cenas mais revoltantes da COP ao agredir verbalmente a estudante de direito Txai Suruí, única voz brasileira na Cúpula de Líderes no dia 1ª/11, que denunciou as ameaças aos povos indígenas no país.
Outra cena constrangedora foi protagonizada pelo próprio ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite. Confrontado pela imprensa sobre os dados de desmatamento de outubro, que mostraram que o “Brasil real” estava batendo recorde de devastação para o mês, o ministro disse não saber dos números. Depois recusou-se a responder a perguntas sobre o assunto.
Um segundo Brasil foi o da diplomacia, que teve mais liberdade de operar na COP26 do que na COP25, em Madri, em 2019. Os negociadores brasileiros chegaram dispostos a trabalhar pelo consenso e a desbloquear o complicado Artigo 6. Era quase como se o Itamaraty pré-Bolsonaro estivesse em ação, o que mostra que a troca dos ministros Ernesto Araújo e Ricardo Salles foi providencial para evitar que o país terminasse novamente a COP na galeria dos “Fósseis do Ano”.
Um terceiro Brasil foi o da sociedade civil, representada no plural, diverso e sempre cheio Brazil Climate Action Hub. Em Glasgow, o espaço da sociedade civil acabou ofuscando o do governo e levando um rol de atores que ia do setor privado aos governos subnacionais, jovens, indígenas, mulheres, cientistas e ambientalistas para debater temas diversos.
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Glasgow adia novamente a salvação do clima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU