31 Julho 2020
Graças ao mundo virtual, nesta semana, pudemos ter acesso de forma livre e gratuita ao pensamento da filósofa e ativista feminista estadunidense Judith Butler, que aos 64 anos se reconhece como não-binária e tem uma extensa obra traduzida para 20 idiomas com contribuições no campo de gênero, política, ética e direitos humanos.
A reportagem é de Emilia Duclos, publicada por La Tercera, 29-07-2020. A tradução é do Cepat.
Atribui-se a ela a fundação da teoria queer, graças ao seu livro El género en disputa (1990), um volume que critica a ideia essencialista de identidades de gênero e a heterossexualidade, que questiona as estruturas históricas que moldam nossos corpos, que defende a necessidade de um feminismo interseccional que leve em consideração as diferentes realidades que atravessam os sujeitos subordinados (raça, classe, gênero, geografia) e que abra a porta para a emancipação daqueles corpos que nunca se moldaram à norma imposta.
Butler mantém uma estreita relação com a América Latina e, nos últimos anos, demonstrou interesse em nossos movimentos feministas e na explosão social. Inclusive, reconhece que no Chile o feminismo marcou a vanguarda do mundo. Um dos temas que marcam o seu trabalho é a necessidade da transformação social para nos libertar das formas de violência justificadas nos discursos dominantes e a necessidade de questionar e desmontar esses discursos.
Por esse motivo, em seus últimos textos, a autora alertou sobre os novos fascismos e as estruturas de violência que estão tomando o poder em diferentes partes do mundo, com ações e discursos contra as minorias, e sobre como a emergência da Covid-19 aumentou as desigualdades globais e a precarização da vida.
“Interessa-me falar do desejo de refazer o mundo", começou dizendo em uma das palestras, com centenas de milhares de pessoas conectadas, atentas à sua forma cativante de gesticular, de falar e expressar suas ideias de maneira clara e próxima. Porque Butler, mais do que uma intelectual, é uma ativista que inspirou movimentos sociais em nível global.
“Em meados de março deste ano, muitos de nós no mundo ficamos confinados, a economia fechou, o mecanismo do capitalismo parou, o meio ambiente começou a se recuperar", afirmou. “Sou asmática e consegui respirar em abril de uma forma que nunca havia conseguido. Havia a esperança de abrir uma porta para um futuro diferente, a ocasião para pensar e refazer nosso mundo. Havia um otimismo, apesar do vírus continuar a aterrorizar, especialmente em países como o meu, onde o acesso à saúde não é garantido”.
“As desigualdades sociais se intensificam em condições de pandemia e emergem visões otimistas e pessimistas sobre o futuro. Mas não há futuro utópico que se desenvolva automaticamente. Dependerá de práticas humanas e da capacidade que temos de intervir no mundo político e econômico. Portanto, com a pandemia, há mais pessoas que se envolvem na política”.
Manifestou o auge de uma biopolítica, onde o poder soberano decide quem morre e quem não, e sacrifica vidas após a reativação da economia em todo o mundo, como se existissem vidas mais valiosas que outras. “A saúde da economia sacrifica a saúde dos corpos das minorias. Existem modelos de custo-benefício nos quais a saúde dos corpos é apresentada como uma porcentagem, como uma curva, e se a curva se achatar, é preciso contentar-se, pois isso significa que alguns estão vivendo. Mas a curva ainda comunica a morte. Os governos comunicam que existem níveis aceitáveis de morte e doença, por meio de um cálculo que não representa a vida desses corpos, em que condições viviam, quem eram. Nada deles. Higienizam-se as formas de representá-los”.
“Muitos tiveram que continuar trabalhando para viver e, nessas condições, aumentam a possibilidade de morte para si e para os outros. Aqueles que trabalham em serviço sempre foram privados de cuidados e isso inclui uma ampla gama de pessoas de cor. No Brasil, em São Paulo, as pessoas de cor são mais propensas a morrer de Covid-19 do que os brancos, e nos Estados Unidos a taxa de mortalidade de afro-americanos é mais do que o dobro da de outros grupos raciais”.
Sobre como os governantes - como Trump e Bolsonaro, que falaram do vírus como se fosse uma "gripezinha" - se eximem do problema da vida e da morte, Butler foi enfática em sua crítica. “Não imaginam que vão morrer. Os soberanos nunca farão parte daqueles seres vivos que fazem parte do cálculo. O cálculo evita a morte dos calculadores. Mas todas as vidas devem ser vistas como uma perda incalculável. Vida e morte não deveriam ser cálculos, não podem ser catalogadas”.
Mas apesar do hostil panorama que vivem as minorias, a violência policial que Butler afirma que se está vivendo em seu país e sua preocupação com o modo como foram acentuadas e visibilizadas as desigualdades, transmitiu uma mensagem de amor, focada no cuidado entre as pessoas, como princípio ético e político. “O vírus deixou clara nossa vulnerabilidade e nossa interdependência. Estamos em contato um com o outro, dependemos um do outro e essa interdependência devemos salvaguardar da melhor maneira possível: o que absorvo do outro corpo quando estamos em contato”.
“Inspiramos e expiramos o mesmo ar com os outros e com os animais, e podemos encontrar maneiras de compartilhar de forma interdependente. A vida depende disso. Há um novo imaginário que está emergindo e temos que reparar de agora em diante com um discurso corajoso que supere o medo para poder resistir de forma coletiva e solidária”.
Butler enfatizou a importância das comunidades e a solidariedade social que surgiu como resultado da pandemia em diferentes partes do mundo, especialmente para com as pessoas que estão sofrendo violência em suas casas, durante o confinamento. “Esses tipos de redes atravessam casas e produzem um sentimento diferente de abrigo na comunidade. Essas conexões permitem descentralizar a família heteronormativa e elaborar outras formas de comunidade”.
Insistiu fortemente na necessidade de se gerar redes mais fortes entre diferentes culturas e países, para além das barreiras linguísticas. "São necessárias alianças inter-regionais, porque os problemas que temos atravessam fronteiras. Vejo que o movimento social na América do Norte está aprendendo com vocês (América Latina), como as pessoas se associam e criam alianças, como podemos desafiar as fobias e as desigualdades enraizadas. Temos que nos importar com o que acontece em outras partes do mundo".
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“A saúde da economia sacrifica a saúde dos corpos das minorias”, afirma Judith Butler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU