08 Junho 2020
Diplomacia da máscara, de um lado, retórica agressiva, de outro: o regime de Xi Jinping mostrou desde o aparecimento do coronavírus imagens contrastantes que confirmam seu desejo de poder no cenário internacional e que reforçaram as preocupações que essas ambições despertam.
A reportagem é de Yann Mens, publicada por Alternatives Économiques, 05-06-2020. A tradução é de André Langer.
São chineses, diplomatas e de bom grado se autodenominam “lobos guerreiros”. O mundo os descobriu durante a epidemia da Covid-19. Seu apelido vem de filmes de sucesso em que os Rambos do Exército Popular de Libertação sempre derrotam seus inimigos americanos.
Os diplomatas que afirmam ser essas tropas de elite fisiculturistas não se importam mais com matizes. No dia 12 de março, um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China afirmava no Twitter que o coronavírus pode ter sido introduzido na China por militares americanos. No dia 27 de abril, o embaixador da República Popular da Austrália ameaçou o país, para quem Pequim é um importante parceiro comercial, com um boicote a muitos de seus produtos caso as autoridades de Canberra persistissem em solicitar uma investigação internacional sobre a gestão do coronavírus pela China. Mais perto de casa, o embaixador chinês na França disse, em 12 de abril, que o pessoal dos lares de idosos tinha “abandonado o emprego da noite para o dia (...) deixando seus moradores morrerem de fome e de doenças”.
Esta violência retórica, mesmo esta conspiração, não é representativa de todo o corpo diplomático chinês e é discutível, mas funcionários do nível desses que se expressaram dessa maneira não poderiam ter feito isso sem a aprovação das mais altas autoridades do país. Ou seja, do círculo próximo do presidente Xi Jinping, que não parou de concentrar o poder em torno de si desde que chegou ao poder no final de 2012 e se apresentou como o novo Mao Tsé-Tung. Certamente, parte da agressividade dos diplomatas chineses é reativa. Pelo menos quando tem como alvo os Estados Unidos e seus aliados mais próximos. Ela é o espelho do discurso extremamente beligerante do governo Trump que, não contente em ter iniciado desde 2018 uma guerra comercial contra a China, não parou de falar nos últimos meses sobre o “vírus de Wuhan” para designar o coronavírus e atribuir a responsabilidade por sua propagação à China a ponto de tornar impossível ao Conselho de Segurança da ONU adotar uma resolução sobre a epidemia.
Mas a fúria dos lobos guerreiros é também o reflexo de um movimento endógeno mais profundo inspirado por Xi Jinping e que pretende que a nação chinesa proclame confiança em seu poder, sua cultura, sua ideologia (ainda oficialmente marxista) e, é claro, na superioridade do seu sistema político. Uma garantia encontrada após o longo interlúdio da humilhação colonial simbolizada pelas Guerras do Ópio (1840-42, 1856-60) e pela ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. Uma confiança, certamente, incorporada pelo espetacular sucesso econômico da China desde 1979.
Essa fé da China em si mesma pode ter sido abalada pela gestão caótica e pouco transparente da epidemia da Covid-19 quando os sintomas apareceram e as mortes ocorreram no centro do país. Mas uma vez que as medidas drásticas de contenção foram tomadas, e especialmente quando se viu em março passado que os países ocidentais, primeiro os europeus (Itália, França, Espanha, Reino Unido), depois os Estados Unidos sobretudo, foram dominados pela epidemia, a China e, em particular, os lobos guerreiros, afirmaram energicamente, até mesmo com arrogância, a superioridade intrínseca do modelo político chinês para enfrentar esse tipo de crise, brandindo a comparação entre os números (oficiais) divulgados por Pequim e aqueles dos outros países mais afetados. A propósito, os diplomatas de Pequim minimizaram os logros, pelo menos provisórios, diante da Covid-19 de outros países da Ásia e com sistemas democráticos, como a Coreia do Sul e Taiwan.
Às palavras belicosas dos diplomatas guerreiros, a China rapidamente juntou ações concretas em seu entorno mais próximo. Primeiro, em territórios que Pequim considera histórica e culturalmente chineses. E, portanto, chamados a passar para a sua soberania. No dia 28 de maio passado, o Parlamento aprovou lei de segurança que Pequim pretende aplicar a Hong Kong, enquanto a Região Administrativa Especial (RAE) deve gozar até 2047 de um regime de autonomia, baseado no princípio “um país, dois sistemas”. Um gesto arriscado para Pequim, se a RAE está em sexto lugar no mercado de ações mundial, é em grande parte graças à confiabilidade de seu sistema jurídico que tranquiliza as empresas estrangeiras que desejam investir na China continental, mas não se submeter à arbitrariedade de seus tribunais.
Em relação a Taiwan, que ela pretende submeter ao seu jugo a mais longo prazo, Pequim mostrou-se ainda mais irritada pelo fato de que a ilha conseguiu rapidamente conter a epidemia e depois oferecer sua ajuda a outros países, competindo de frente com a “diplomacia médica” realizada em larga escala pela própria República Popular, na Europa e especialmente na África. A irritação da China manifestou-se no âmbito da OMS (Organização Mundial da Saúde), onde, apesar dos sucessos sanitários de Taiwan, Pequim continuou a se opor a que seu vizinho pudesse se beneficiar de um estatuto de observador.
Com ou sem coronavírus, a afirmação do poder chinês também se expressou no nível militar nas últimas semanas em sua vizinhança. Singularmente no Mar da China Meridional, onde em abril, Pequim renomeou 80 ilhotas e outros receptores em disputa para colocá-los sob sua soberania, para grande insatisfação dos países que fazem fronteira com o Sudeste Asiático, Vietnã à frente, que também os reivindicam. Além disso, os incidentes opuseram recentemente soldados chineses e indianos na fronteira himalaia disputada entre os dois países desde 1962.
Para além dos territórios que considera como chineses e apesar das ocorrências regulares de seus diplomatas guerreiros, a República Popular tentou oferecer ao mundo nos últimos meses a imagem de uma potência generosa, alardeando suas entregas de assistência médica, o envio temporário de especialistas médicos civis e militares ou ainda organizando videoconferências com as autoridades sanitárias dos países-alvo. Entregas feitas diretamente pelas autoridades do país ou por empresas chinesas com ambições filantrópicas, como Jack Ma, cofundador e presidente executivo da Alibaba, gigante chinesa do comércio on-line, que multiplicou as entregas de máscaras para os países africanos.
Essa publicidade nem sempre foi muito sutil. Imagens de italianos agradecendo a Pequim por suas doações foram apresentadas com o som do hino nacional chinês ao fundo quando, na realidade, aplaudiam os trabalhadores da saúde de seu próprio país nas janelas. Além disso, a baixa qualidade de alguns dos equipamentos médicos entregues pela China a diferentes países corre o risco de prejudicar a imagem que a China queria promover graças a essa diplomacia da saúde.
De qualquer forma, este último levantou a suspeita de alguns dirigentes europeus, já irritados há vários anos com as tentativas do Império do Meio de dividir as fileiras da União Europeia. A constituição, em 2012, do grupo 16+1 (16 países da Europa Central e Oriental e dos Bálcãs, mais a China), que se tornou 17+1 em 2019 com a adesão da Grécia, que objetiva promover uma cooperação específica e independente das relações União Europeia-China entre seus membros, é um exemplo disso. Além da assinatura, em 2019, entre a China e a Itália, primeiro país do G7 a fazê-lo, de um acordo-quadro dentro da Belt and Road Initiative (BRI), o grande projeto de Pequim das Novas Rotas da Seda.
Essas suspeitas sobre as intenções de Pequim, reforçadas por aquisições espetaculares de empresas europeias por empresas chinesas, levaram a União Europeia a descrever a China como “um concorrente econômico” e, acima de tudo, um “rival sistêmico”. Eles provavelmente explicam a enérgica reação de Josep Borrell, o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, que recentemente fez um alerta sobre os objetivos da “política de generosidade” da China desde o início da epidemia.
De fato, se nos próximos meses a União Europeia der provas de pouca solidariedade com seus membros mais duramente atingidos em termos econômicos pelo coronavírus, alguns deles provavelmente ficariam tentados a poder contar com a ajuda financeira chinesa. Mais a longo prazo, a dependência dos países europeus dos fornecedores chineses, no nível médico, mas não apenas, que a epidemia pôs a descoberto, incentivará alguns governos a tentar relocalizar parte da produção em seu solo. O Japão também já está tentando estabelecer marcos nessa direção. Mas essa operação é, sem dúvida, muito custosa, porque corre o risco de se deparar com a lógica das empresas.
A esse respeito, no entanto, os países europeus não fizeram anúncios tão estrondosos quanto Donald Trump, que afirmou, em 15 de maio, que seu país tem os meios, se quisesse, de cortar todas as relações econômicas com a China. O que implicaria na substituição dos fornecedores chineses nas cadeias de valor das empresas americanas. Na pendência dessas improváveis perspectivas, o presidente americano espera especialmente que o acordo da chamada fase 1 concluído em janeiro passado entre a China e os Estados Unidos possa ser aplicado rapidamente. Ou seja, antes da eleição presidencial americana em novembro próximo. Desde a sua chegada à Casa Branca em 2017, Donald Trump lançou-se em uma guerra comercial contra a China com grandes golpes de tarifas alfandegárias, com a finalidade de reduzir o déficit comercial de seu país em relação a Pequim.
Sem nenhum resultado tangível até o momento. Entretanto, ele precisa provar rapidamente aos seus eleitores, especialmente aos agricultores, que sua ofensiva está começando a surtir efeito. Na ausência de conseguir rapidamente resultados concretos de Pequim sobre os assuntos que realmente incomodam (roubo de propriedade intelectual por empresas chinesas, subsídios estatais chineses a determinados atores do setor privado...), Donald Trump obteve da China em janeiro passado o compromisso, da parte desta última, de aumentar suas importações de bens e serviços americanos em 200 bilhões de dólares até o final de 2021. Com o que Pequim concordou, ansiosa para passar a uma fase 2 os contenciosos de fundo e a abertura crescente de seu mercado que sua resolução implicaria.
Problemas: a China, que pela primeira vez desistiu de fixar à sua economia uma meta de crescimento para o ano, não invocará a desaceleração que o coronavírus lhe infligiu para reverter alguns de seus compromissos? E os próprios produtores americanos, prejudicados pelo confinamento, conseguirão entregar o que Pequim se comprometeu a comprar? Donald Trump, cuja gestão da epidemia foi desastrosa, está preso entre seu desejo eleitoral de obter resultados visíveis e a necessidade, igualmente interessada, de continuar a se apresentar como um defensor intransigente de seu país contra a China.
O que é verdade para os acordos comerciais também é para a questão de Hong Kong. Se os Estados Unidos, para reagirem ao projeto de lei da segurança de Pequim, retirarem da RAE algumas vantagens, alfandegárias, por exemplo, das quais ela se beneficia, diferentemente da China continental, serão as empresas americanas estabelecidas no território até aqui autônomo que provavelmente sofrerão. O tom beligerante que Donald Trump usou contra Pequim desde a sua chegada à Casa Branca corre o risco de contagiar nos próximos meses o candidato democrata. Até as eleições de novembro, Joe Biden, que é, em princípio, mais favorável ao multilateralismo, sem dúvida hesitará em se mostrar à opinião americana mais conciliador que o atual presidente em relação a Pequim.
Para além da sua vizinhança imediata e das principais potências, a China ostentou, desde o início da epidemia, uma imagem igualmente contrastante em outras regiões do mundo. E particularmente na África. Certamente, as máscaras e outros materiais médicos entregues em especial por Jack Ma foram apreciados ao sul do Saara, onde muitos países, preocupados com os danos causados pela Covid-19 nos países desenvolvidos e conscientes das fraquezas de seus próprios sistemas de saúde, tomaram sem demora medidas de proteção. Por outro lado, o tratamento discriminatório que alguns africanos receberam na China no contexto da epidemia foi muito mal recebido no continente.
Além disso, se for confirmado que Pequim quer excluir da moratória sobre os pagamentos da dívida concluída no âmbito do G20, em 15 de abril passado, os empréstimos contraídos por países, especialmente africanos, no âmbito da Nova Rota da Seda (BRI), isso pode ter um efeito ruim. Os Estados da região que antes da epidemia já estavam preocupados que Pequim assumisse parte da sua infraestrutura, como portos, em pagamento de suas dívidas, veriam suas preocupações crescerem. Não obstante, muitos deles têm poucas alternativas, em termos financeiros, mas também comerciais, sendo a China um grande importador de matérias-primas do continente.
A epidemia da Covid-19 não parece ter alterado substancialmente os objetivos da política externa da China, objetivos que obedecem à vontade de afirmar uma autoconfiança renovada e, eventualmente, ultrapassar os Estados Unidos, mesmo que no médio prazo, essa é, sem dúvida, uma relação de “rivalidade cooperativa” que continuará entre essas duas potências, de acordo com a expressão paradoxal do cientista político americano Joseph Nye.
Por outro lado, a queda do crescimento provocada pelo coronavírus corre o risco de reduzir, pelo menos a curto prazo, os recursos financeiros necessários para a execução de seus projetos, principalmente se o plano de recuperação econômica que Pequim acaba de adotar não atingir todos os resultados esperados para estimular especialmente o consumo interno. Alguns especialistas dizem que é provável que no quadro da Nova Rota da Seda, a China reduza seus investimentos em grandes projetos clássicos de infraestrutura em favor de investimentos nas tecnologias de ponta. Uma tendência que estava surgindo já antes da epidemia.
Outras vias de influência, no entanto, permanecem menos onerosas para a China, como a organização de fóruns no âmbito da Nova Rota da Seda, que lhe permitem promover sua concepção muito soberanista de relações internacionais ou ainda os investimentos em organizações internacionais existentes. Nos últimos anos, os candidatos chineses também assumiram a direção de várias organizações das Nações Unidas, como a FAO. Tais sucessos serão ainda mais fáceis para Pequim, já que Washington continuará depois de 2020 a retirada do sistema multilateral iniciada pelo governo Trump.
As acusações feitas pelos Estados Unidos contra a OMS, cuja organização afirmam ter ajudado a China a cobrir sua má administração da epidemia nos estágios iniciais, revelam a ambiguidade da estratégia americana. Podem os Estados Unidos combater a influência de Pequim em tais organizações enquanto anunciam que se retirarão delas? Por outro lado, é em parte porque a União Europeia falou em uma só voz na OMS que Pequim finalmente consentiu, em 19 de maio, em uma investigação “imparcial, independente e exaustiva” examinando a resposta internacional à epidemia coordenada pela agência das Nações Unidas.
Obviamente, resta ver até que ponto as autoridades chinesas permitirão que os especialistas realizem investigações realmente aprofundadas em seu território. Porque qualquer resultado que desafie diretamente a gestão da epidemia de Pequim seria inaceitável para o regime hiperpersonalizado de Xi Jinping. Menos, sem dúvida, por razões de imagem do país no cenário internacional do que de credibilidade da capacidade do poder face à sua opinião. Uma verdadeira linha vermelha para o novo Mao.
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Será que a China terá que rever suas ambições no cenário internacional? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU