11 Março 2020
A gestão da crise do coronavírus pelo aparelho do Estado não deve mascarar a ira dos chineses e a arbitrariedade das prisões sofridas por aqueles que buscam a verdade.
A reportagem é de Agnès Gaudu, jornalista especialista na China, publicada por Alternatives Économiques, 10-03-2020. A tradução é de André Langer.
A resposta das autoridades chinesas à crise do coronavírus, após a epidemia da SARS, segue um cenário bem conhecido. Após um período de negação da catástrofe, a realidade está no encalço dos dirigentes. Medidas espetaculares são tomadas, e a propaganda orquestra a ida às frentes dos valorosos soldados enviados para ajudar a população, enquanto difunde meias verdades e mentiras. Cabeças rolam entre as autoridades locais. A população está em dúvida, enquanto a repressão recai sobre os que buscam as verdades.
A repetição deste drama, uma e outra vez, é obra de um poder que gostaria de controlar tudo. Fora da China, pode-se optar por ver isso com otimismo, e seguir os passos da propaganda, observando alegremente a construção de um hospital em dez dias, o exagero de deixar uma cidade de 11 milhões de habitantes em quarentena e as mensagens de vitória sobre o inevitável controle da epidemia. De maneira mais contida, podemos nos regozijar com a excelente comunicação dos pesquisadores com seus pares estrangeiros e a qualidade do seu trabalho, ou aprovar as medidas de contenção por sua eficácia em retardar a propagação da epidemia.
Mas também devemos nos perguntar se a população deste país agora poderoso e moderno, e educado, que viaja, lê e observa o mundo, irá se contentar com a resposta formatada e coercitiva das autoridades chinesas. E se a aprovação do mundo em relação aos métodos chineses pode permanecer sem reservas.
Na China, o coronavírus Covid-19 apareceu em um clima geral de grande desconfiança da população em relação a um sistema de saúde notoriamente saturado e subfinanciado (5% do PIB). Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), existe ali 1,5 médico por 1.000 pessoas, pouco mais que há dez anos. Pouquíssimos novos hospitais foram construídos. A corrupção dos profissionais da saúde mal remunerados ganhou as manchetes, bem como as explosões de raiva entre os pacientes e suas famílias com a baixa qualidade dos serviços.
Mas não há alternativa ao hospital público; a medicina liberal não existe na China. O setor público abrange uma ampla gama de estabelecimentos, desde a excelência de grandes hospitais universitários, até o consultório desprovido de todos os equipamentos e sem médico diplomado. O luxuoso hospital particular não é acessível ao maior número. Em consequência, os pacientes fazem fila nos estabelecimentos públicos mais conceituados.
Nesse contexto, a confiança não é algo patente. Além disso, as reações dos cidadãos chineses à crise misturam medos sanitários e reações epidérmicas ao arbitrário, emoção e reflexão. Na ausência de informações confiáveis, em quem acreditar? O que fazer? Todos agora sabem que a oficialização da existência de uma nova epidemia em Wuhan se deu de maneira atrasada. O medo de contaminação cruzada no hospital cresceu em alta velocidade, relatado e amplificado pelas mídias sociais. A volta para casa de pacientes doentes cuja condição não era considerada suficientemente crítica foi vista como abandono, e casos de famílias inteiras foram citados dessa maneira. Os internautas ficaram alarmados com a situação das pessoas que sofrem de doenças crônicas, como diabetes ou insuficiência renal, ao mesmo tempo que todos os recursos médicos são monopolizados pela gestão do coronavírus. Não há dúvida de que a queda, em 7 de março, de um hotel que abrigava pessoas que estiveram em contato próximo com pessoas infectadas em Quanzhou, no sudeste da China, alimentará a raiva.
Segundo as autoridades, o ponto máximo da crise parece hoje ter passado na China. As perguntas sobre as responsabilidades serão levantadas, e o aparato de Estado vai, sem dúvida, agora dedicar sua energia para impedir qualquer debate. Prisões já ocorreram. Pelo menos três jornalistas independentes foram presos nas últimas semanas enquanto filmavam a situação em Wuhan e postavam seus testemunhos diariamente nas redes sociais. O advogado Chen Qiushi, em 6 de fevereiro, o comerciante Fang Bin, em 9 de fevereiro, o repórter de televisão Li Zehua, em 26 de fevereiro: os três desapareceram sem dar notícias. Xu Zhiyong, militante dos direitos civis preso durante muitos anos e que criticou abertamente a forma como Xi Jinping lidou com a crise, também foi preso no dia 15 no Cantão.
Com os jornalistas, os cientistas estão na linha de frente e correm alto risco de pressão. Reagimos muito cedo ao surgimento de um novo vírus? Se tivéssemos intervido cinco dias antes, o número de pessoas infectadas seria pelo menos três vezes menor, de acordo com um estudo divulgado no dia 8 de março pela equipe do especialista em doenças respiratórias Zhong Nanshan na revista econômica Caixin. Afirmação é sólida ou não, o fato de uma celebridade apoiar uma conclusão tão explosiva é indicativo da importância da questão.
Na velocidade usada pelos pesquisadores chineses para publicar e transmitir seus dados para o exterior, na agressividade de alguns jornalistas e escritores para informar o mais rápido possível, percebe-se, além do profissionalismo, a consciência de que os canais de transmissão e comunicação podem ser cortados a qualquer momento. Por trás do rigor de uma boa cooperação científica, devemos também ler o medo de que mais uma vez a faca da censura caia e de que as lições do desastre não sejam aprendidas. Daí a urgência de passar o testemunho o mais rápido possível, como um convite para não dar cegamente uma satisfação ao poder chinês.
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China. Uma epidemia de desconfiança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU