14 Mai 2020
A China ocupa um lugar crucial na crise atual, pois foi o primeiro país atingido pela pandemia e o primeiro país a sair do confinamento. A forma como a China reage e reagirá à situação, assim como as várias suspeitas que pesam sobre o país, determinará os contornos da “nova ordem global”.
A opinião é de Benoit Vermander, jesuíta e professor de Ciências Religiosas da Universidade Fudan em Xangai, na China, em artigo publicado por La Civiltà Cattolica, 02-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A China, primeiro país atingido pela pandemia da Covid-19, também é a primeira nação a tentar retornar a uma certa normalidade. É, portanto, duplamente, um laboratório, e o que ocorre lá é de interesse primário para todo o planeta.
Além disso, as especificidades do seu sistema político e social levantam muitas questões sobre como a pandemia influi e continuará influindo nos seus equilíbrios internos, mas também na sua posição internacional. O conjunto desses fatores determinará o modo como a sociedade global negociará a saída da pandemia, a gestão em longo prazo dos riscos que ela continuará envolvendo, mas também as relações entre atores nacionais, que os acontecimentos provavelmente tornarão ainda mais difíceis do que antes.
No mês de dezembro de 2019, os profissionais da saúde de Wuhan – uma cidade de 11 milhões de habitantes, capital da província de Hubei – tiveram que enfrentar gradualmente a manifestação de uma pneumonia viral que não respondia aos tratamentos habituais. Notaram que muitos pacientes trabalhavam no mercado de alimentos de Huanan, cujas condições sanitárias são problemáticas, para dizer o mínimo.
No dia 31 de dezembro, as autoridades nacionais avisaram o escritório de Pequim da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o possível surto de uma epidemia. No dia 1º de janeiro de 2020, o mercado foi fechado, oficialmente para uma reforma, e a área foi desinfetada [1].
A cepa do novo vírus foi isolada pela primeira vez no dia 7 de janeiro. Por volta do dia 12 de janeiro, o número de pacientes aumentou significativamente. No dia seguinte, a Tailândia confirmou o primeiro caso identificado fora do território chinês. No entanto, a prefeitura de Wuhan organizou ainda uma festa para 40.000 famílias no dia 18 de janeiro [2], dando início, assim, às comemorações do Ano Novo chinês, que este ano caiu no dia 25 de janeiro [3].
Enquanto isso, no dia 30 de dezembro, o oftalmologista Li Wenliang havia enviado duas mensagens no WeChat para alertar seus colegas de estudos sobre o que estava acontecendo. Elas se espalharam para além do pequeno grupo ao qual haviam sido dirigidas. O próprio oftalmologista havia sido avisado disso pela Dr.ª Ai Fen, diretora do pronto-socorro do Hospital Central de Wuhan, que imediatamente entendeu a seriedade do fenômeno.
No dia 3 de janeiro, o Departamento de Segurança de Wuhan enviou a Li Wenliang uma carta de queixa e, depois, o fez assinar uma declaração na qual reconheceu que havia espalhado rumores infundados e que devia se abster de fazer isso, correndo o risco de sofrer sanções mais severas. Depois de ser atingido pelo vírus no dia 10 de janeiro, no exercício da sua profissão, Li Wenliang publicou, no dia 31 de janeiro, um relato dos problemas que tivera com a polícia: é um ponto de virada na conscientização social em torno do atraso na resposta à ameaça.
O seu falecimento, aos 34 anos, ocorrido no dia 7 de fevereiro, desencadeou inúmeras reações de dor e de raiva nas redes sociais, muitas das quais expressadas por personalidades de destaque. Abalado pela tempestade, o governo instituiu uma comissão de inquérito sobre a gestão dos primeiros dias da epidemia. O jovem oftalmologista recebeu uma reabilitação póstuma e tornou-se um herói comunista, dedicado à causa do povo [4].
A primeira semana de fevereiro foi o momento em que as autoridades chinesas pareciam em grande parte desarmadas, seja diante da natureza da ameaça, seja pelo modo como ela atacava o seu sistema de governança. Mas a resposta deles foi se concretizando.
A variedade dos sintomas clínicos e, muitas vezes, a dificuldade do diagnóstico contribuíram para atrasar a conscientização sobre a ameaça, talvez como demonstrou a primeira reação de recuo das autoridades regionais. O peso relativo dos fatores que levaram, primeiro, a subestimar a ameaça continua sendo objeto de discussão. Somente no dia 21 de janeiro é que um médico chinês designado pelo governo para avaliar a situação reconheceu publicamente que o vírus se transmite de pessoa para pessoa.
A partir do dia 23 de janeiro, Wuhan estava em estado de sítio, os seus habitantes não podiam se deslocar, permaneciam confinados em suas casas. Toda a província de Hubei foi imediatamente isolada do resto da China; a estratégia de isolamento se tornou, depois, sistemática, embora aplicada com regras variáveis de acordo com as regiões.
A implementação da contenção foi facilitada pela estrutura da China urbana: em quase todos os lugares, residências de diferentes tamanhos e status social têm o seu espaço bem delimitado por uma cerca; a entrada é vigiada por guardas; um comitê de bairro divulga as instruções oficiais. A maioria dos moradores das cidades vive nessa situação.
Nos últimos anos, tentou-se, sem muita convicção, tornar mais flexível o sistema de cercamento, mas ele se demonstrou muito útil nas circunstâncias atuais.
Inicialmente pego de surpresa, o Estado se comprometeu depois a divulgar uma imagem “científica” e metódica: a de uma organização capaz de gerir sozinha uma crise que, como foi reconhecido por Xi Jinping [5], põe à prova o próprio modelo de governança chinesa.
Ao mesmo tempo, ele encontrou um novo campo de aplicação das técnicas de controle social desenvolvidas metodicamente nos últimos anos: o reconhecimento facial ajuda a rastrear e a identificar os transgressores; eles são inseridos na lista negra ligada ao sistema de “crédito social”, que agora é mais ou menos operacional [6]; drones são usados para avisar as pessoas descuidadas ou as refratárias a usarem máscara; são utilizados robôs munidos com sensores para abordar pessoas que poderiam estar infectadas; e foi introduzido um sistema de código QR para rastrear movimentos e para poder entrar nos locais públicos.
A sociedade chinesa se expressou no frágil espaço de liberdade planejado através das redes sociais. Espaço essencialmente privado e, acima de tudo, fragmentado, como, aliás, também ocorre no Ocidente: quanto mais a sociedade chinesa está conectada, mais o intercâmbio é limitado apenas entre semelhantes.
Esse clima certamente favorece os rumores, e a origem do vírus é um dos temas favoritos. Atribuído por um grande número de chineses a um complô liderado por bacteriologistas estadunidenses, a Covid-19 também é percebida por alguns como o resultado de maquinações ou de um erro de manipulação em um laboratório de Wuhan. Mais tarde, até se espalhou o boato de que o vírus teria aparecido na Itália antes de ser descoberto na China.
Na maioria dos casos, o importante é afirmar que o vírus não é “chinês”, e, sobre esse ponto, a sociedade civil e o governo concordam amplamente.
No entanto, os contrastes geracionais são evidentes. Os mais idosos redescobrem os reflexos do recrutamento social e político conhecido na juventude. Os mais jovens experimentam a alternância entre a raiva diante da falta de transparência e uma apatia resignada.
Foi e continua sendo espetacular o contraste entre o epicentro da crise – Wuhan e arredores – e a situação no resto da China. Ao mesmo tempo, mesmo nas áreas relativamente poupadas pelo vírus, fica clara a lacuna entre uma China desenvolvida, rica e dotada de meios suficientes para uma reação de longo prazo e as regiões mais desfavorecidas.
Os efeitos da pandemia sobre o sistema social e político chinês agem em direções opostas. Hoje, manifesta-se o orgulho nacional diante da vitória relatada sobre a epidemia, enquanto a maioria dos outros países, especialmente ocidentais, parece mais frágil.
Um pouco desestabilizado nos últimos meses pelo conflito comercial com os Estados Unidos e pelos protestos que abalaram Hong Kong por muito tempo, o Estado está muito atento para insistir nos “sacrifícios” feitos pela China em favor do resto do mundo: o vírus não é “chinês”, e a China está na vanguarda de uma luta que ela mesma está levando em frente pelo resto do planeta.
Nas redes sociais, veem-se inúmeras pessoas se indignarem com a “ingratidão” demonstrada pelos países ocidentais em resposta à ajuda que a China oferece ao resto do mundo, e se desenvolve uma narrativa nacionalista exacerbada por alguns, que às vezes chegam até a prever ou desejar desdobramentos militares. Trata-se principalmente de uma “retórica de guerra” que contribui para manter um clima insalubre.
Por outro lado, mesmo que o desejo por informações mais transparentes e menos manipuladas continuará se manifestando (abertamente ou na surdina), a China não está realmente pronta para mudar o seu modelo “meritocrático”. A governança política e a legitimidade tecnocrática dos dirigentes assumiram uma aura “científica”. As intervenções diretas da sociedade civil nas questões verdadeiramente importantes tornaram-se ainda mais difíceis de prever. Mas a pandemia levará a um fortalecimento do controle social e dos sistemas tecnopolíticos associados. Pode-se obviamente imaginar que a crise provocará fortes divisões na liderança.
No entanto, mesmo que a massa dos cidadãos voltará às preocupações da vida cotidiana, uma parte da população corre o risco de sair dessa luta tolerando ainda menos do que antes a pressão do Estado. Se esse fenômeno ocorrer, a sua intensidade certamente não bastará para impor reformas duradouras; no entanto, deveria ser suficiente para aumentar as tensões, certamente circunscritas, mas que já se manifestavam antes da epidemia.
A suspeita que continua reinando em torno dos números reais das mortes ocorridas alimentará tal tensão [7], especialmente em Wuhan e em Hubei, onde o trauma permanece extremamente doloroso e onde as autoridades, insistindo nos problemas de “estabilidade social”, não permitiram à população expressar adequadamente o seu luto, limitando as cerimônias fúnebres a cerca de 20 minutos.
Além disso, a retomada econômica cria problemas. Os dados do primeiro trimestre do ano indicam, todos, uma contração muito forte, em um momento em que o peso excessivo da dívida já é um problema, as exportações estão em risco, e uma política de enormes investimentos públicos, já utilizada várias vezes nos últimos 12 anos, encontra limites evidentes.
Agora, um forte aumento do desemprego seria muito desestabilizador. Apesar de seus perigos, é provável que seja imediatamente adotada uma política de investimentos públicos, mas é difícil que ela possa durar por muito tempo. O incentivo ao consumo das famílias e à reorientação das empresas chinesas para o mercado nacional é e será ainda mais aumentado. Se isso não bastar, o descontentamento latente se concentrará na renda e no emprego. Outro motivo de inquietação é o nível do mercado imobiliário, no qual muitos cidadãos investiram muito.
A China será capaz de desempenhar um papel positivo na reflexão e nas reformas globais que se espera que possam ser iniciada quando a epidemia estiver, pelo menos em grande parte, controlada?
Em nível técnico, ela certamente contribuirá para as pesquisas fitossanitárias, se preocupará em eliminar os mercados de animais vivos, que foram a causa de várias epidemias nos últimos 20 anos, e prestará assistência financeira ou técnica a países cuidadosamente escolhidos com base em objetivos estratégicos.
Mas ela seguramente se encontrará em forte tensão com grande parte da comunidade internacional quando se tratar de reler os eventos, e ela já está se preparando ativamente para isso. Sem dúvida alguma, ela elogiará o seu modelo meritocrático, a importância dos instrumentos digitais no controle das populações e criticará a suposta fraqueza dos modelos democráticos [8].
Em outras palavras, existe o risco de que a crise do coronavírus seja a oportunidade para a China expandir ainda mais o que o analista de Singapura Eric Teo já definia em 2004 como “um novo sistema tributário” [9]. O sistema tributário clássico, que havia se afirmado durante a dinastia Qing, concedia favores aos Estados que se reconheciam dependentes da China.
Hoje, tais favores podem incluir investimentos, compras preferenciais, auxílios técnicos, apoios diplomáticos e assim por diante, desde que o Estado receptor se alinhe diplomaticamente com Pequim. Na primeira década deste século, o sistema ainda estava em grande parte limitado ao âmbito regional da China; hoje, se espalhou para todo o mundo.
As “novas rotas da seda” fizeram uso sistemático desse instrumento, e serão muitos os países que, por causa do choque econômico e de saúde, exigirão esse tipo de apoio [10].
Além disso, os valores que hoje se deseja revalorizar após a pandemia – sobriedade, transparência, solidariedade da sociedade civil – não estão inscritos no DNA do modelo de desenvolvimento escolhido pela China. As discussões sobre a ordem mundial a ser construída serão difíceis, provavelmente infrutíferas.
Se a China mantiver uma atitude que faz do ataque a melhor defesa, o diálogo que deve iniciar corre o risco de não ir muito longe. Algumas perguntas não desaparecerão facilmente: aquelas sobre a origem do vírus e sobre a sua gestão dos primeiros dias; aquelas sobre a veracidade das estimativas fornecidas durante o período de confinamento em Wuhan; aquelas sobre o modo como a China enfrenta as consequências da pandemia para se engajar em uma gestão clientelista dos seus interesses, país por país, ou, em vez disso, sobre o modo como ela decide seguir um caminho mais global e generoso.
A China deve compreender que o modo como ela irá abordar tais questões influenciará radicalmente as suas relações com a Europa e o resto do mundo.
Porém, seria perigoso e irresponsável pretender ostracizar esse país. A busca de possíveis pontos de convergência e cooperação é absolutamente essencial, assim como não se deve renunciar a “dizer a verdade”.
Embora permanecendo muito lúcida na avaliação dos fatores que acabamos de indicar, a Europa deverá tentar iniciar com a China e com os outros atores globais um processo que refunde as bases da cooperação internacional diante dos perigos que ameaçam a humanidade, incluindo as pandemias.
Esse processo exigirá que a verdade seja buscada e expressada, mas também exigirá que se olhe para o futuro, que se cultive um senso de responsabilidade compartilhada e que se tirem todas as consequências de um fato cuja realidade entrou na nossa carne: a humanidade está realmente unida por um mesmo destino.
[1] Não é certo, no entanto, que esse mercado tenha sido a fonte primária do vírus. Alguns especialistas em doenças infecciosas levantam a hipótese de que os primeiros casos foram registrados em setembro e novembro em Wuhan, mas fora do mercado. Recentemente, foram relançadas hipóteses sobre o possível erro de um centro de pesquisa epidemiológica em Wuhan: dois despachos do Departamento de Estado dos EUA de janeiro de 2018 haviam expressado o seu medo pelas condições de segurança do laboratório, que se beneficiara de “uma subvenção estadunidense” (cf. J. Rogin, “State Department cables warned of safety issues at Wuhan lab studying bat coronaviruses”, in Washington Post, 14 abr. 2020). Essa informação não demonstra que o vírus provém deste ou daquele local, e nenhuma hipótese foi verificada com certeza.
[2] Disponível aqui, 21 jan. 2020.
[3] Foi assim que o governo chinês comunicou a sua interpretação do desenvolvimento da epidemia: Xinhua, “China publishes timeline on COVID-19 information sharing, int’l cooperation”, 7 abr. 2020, disponível aqui.
[4] No dia 2 de abril, o Partido concedeu a Li Wenliang o título de “mártir”, junto com muitos outros profissionais da saúde falecidos.
[5] Declaração do dia 25 de janeiro, transmitida pela China Central Television (CCTV); Xinhua, “Xi stresses law-based infection prevention, control”, in Xinhuanet, 5 fev. 2020, disponível aqui.
[6] Xinhua, “China blacklists individuals for concealing symptoms, violating quarantine”, 13 fev. 2020, disponível aqui. Ser ostracizado do sistema significa, por exemplo, não poder comprar uma passagem de trem ou obter um crédito bancário; também se corre o risco de uma estigmatização pública, um sistema operante na China desde antes da epidemia.
[7] As primeiras perguntas públicas sobre o número exato de mortes em Wuhan foram feitas por um jornal chinês, Caixin, em um artigo do dia 26 março 2020, que se referia à contagem dos caixões colocados em cada um dos oito crematórios da cidade. A China, depois, revisou a sua estimativa do número de mortos em Wuhan durante a pandemia no dia 17 de abril, aumentando-a em 50%. Na nova contagem oficial, as autoridades explicam que cruzaram os dados adquiridos nos registros hospitalares, informações fornecidas por delegacias de polícia e listas de agências funerárias. O total de mortes relacionadas ao coronavírus, assim, aumentou para 3.869.
[8] Essa última crítica seria parcialmente provocada pelo fato de duas democracias asiáticas estarem entre os países que até agora administraram melhor a epidemia: a Coreia do Sul e Taiwan.
[9] Eric Teo Chu Cheow, “Paying tribute to Beijing: An ancient model for China’s new power”, in International Herald Tribune, 21 jan. 2004. Cf. idem, “China as the Center of Asian Economic Integration”, in China Brief, 22 jul. 2004.
[10] Cf. “China’s post-covid propaganda push”, in The Economist, 16 abr. 2020.
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A China e a Covid-19. Artigo de Benoit Vermander - Instituto Humanitas Unisinos - IHU