27 Mai 2020
“Hannah Arendt é uma humanista. Daí sua firme oposição ao poder totalitário, que considera o indivíduo supérfluo: um corpo que pode ser destruído e uma alma suscetível a ser manipulada”, escreve Rafael Narbona, escritor e crítico literário, em artigo publicado por El Cultural, 26-05-2020. A tradução é do Cepat.
Enquanto não caiu o Muro de Berlim e definitivamente desmoronou o prestígio da utopia comunista, o pensamento de Hannah Arendt não adquiriu um reconhecimento unânime. Por trás da cortina de ferro, não se erguia o paraíso da classe trabalhadora, mas uma das máscaras do totalitarismo, particularmente horrível durante os anos de Stalin, um déspota oriental. A equiparação entre nazismo e stalinismo estabelecida por Hannah Arendt, longe de ser arbitrária, refletia fielmente a realidade.
O descrédito do marxismo deixou um sentimento de orfandade entre os intelectuais que haviam abraçado suas promessas. Hannah Arendt, que compreendeu esse desencantamento, pediu que fosse restaurada a dignidade da política como uma ferramenta de resistência contra a tirania e a opressão. Na democracia, o essencial não é o livre mercado, mas o exercício da liberdade. Arendt recordou que a liberdade é um bem absoluto, mas também uma fonte de angústia, pois exige pensar, assumindo riscos e aceitando a possibilidade de erro. O mundo se torna mais perigoso e incerto, mas também mais digno e humano.
Quando em 1958 Hannah Arendt publicou A condição humana, perguntou-se, em primeiro termo, que horizonte se abria com o primeiro lançamento espacial. Tratava-se de um acontecimento tão importante como a decomposição do átomo. Era a apoteose da técnica, que estendia seu domínio além da esfera planetária. O ser humano se propunha a “habitar” o cosmos, colonizando-o. Não era a consumação de um sonho, mas um ato de poder.
A práxis científica e política e inclusive a fantasia popular, que não deixava de inspirar ficções literárias e cinematográficas sobre o futuro, sacrificavam tudo às necessidades da vida, procurando novos recursos a explorar. Por isso, o progresso técnico não buscou a emancipação do trabalho, mas sua “glorificação teórica”, já que só este poderia garantir a sobrevivência da espécie, embora paradoxalmente o mundo nunca tivesse chegado tão perto de sua extinção, com a possibilidade de um holocausto nuclear. O efeito desse giro foi “a transformação de toda a sociedade em uma sociedade de trabalho”.
Em A condição humana, Hannah Arendt divide os esforços humanos em três estágios: labor, trabalho e ação. O labor é a própria vida, o conjunto de rotinas biológicas que desenvolvemos para sobreviver. O trabalho é o procedimento que aplicamos aos recursos naturais para transformá-los em ferramentas adaptadas às nossas necessidades. Ação é o único processo que não é exercido sobre a matéria. É o espaço do discurso, cujo objetivo não é simplesmente a comunicação, mas a criação de um ambiente político.
A ação é o que é verdadeiramente humano, pois assim surge o valor irrepetível de cada indivíduo: “Todos somos o mesmo, ou seja, humanos e, portanto, ninguém é igual a qualquer outra pessoa que tenha vivido, vive ou viverá”. Cada nascimento garante a diversidade, fundamento da vida política. O totalitarismo exalta a morte porque aspira suprimir a diversidade e estabelecer um Estado-jardim baseado na uniformidade.
Do ponto de vista grego, nem labor e nem trabalho possuíam dignidade suficiente para se tornar um modo de vida verdadeiramente humano. Somente na ação, como pluralidade e controvérsia, um homem livre poderia se realizar. Mesmo quando desaparece a polis, a palavra - desvinculada de sua função política - conserva sua superioridade, transformada em bios theoryetikos ou, de acordo com a tradução latina, vita contemplativa. De fato, gregos e romanos não contemplam outra imortalidade além da garantida por criações políticas e intelectuais. A busca da fama como recompensa justa pela excelência é o que diferencia o homem livre do escravo e do animal.
Durante a Antiguidade, ninguém questionava a desigualdade entre os homens. A disposição de arriscar a própria vida no jogo político é o que diferenciava o homem livre do escravo ou servo, muito apegado à existência. O princípio de isonomia ou igualdade de direitos civis e políticos se aplicavam apenas a homens e cidadãos livres. A violência era o mecanismo legítimo que marcava as diferenças. Era preciso estar disposto a morrer para viver com liberdade e dignidade.
O ideal igualitário da Revolução Francesa dissolveu a dialética do amo e o escravo, levando ao desembarque das massas na esfera política. O trabalho perdeu sua condição de tarefa penosa e indigna. Nada teria repugnado mais os antigos do que vincular o trabalho à excelência. Frente à vida contemplativa, Marx se opôs ao ideal de uma humanidade socializada, onde labor e trabalho colaboram em uma única tarefa: garantir o processo da vida. Inverte-se deste modo, a hierarquia estabelecida pelos gregos. Somente profissões com “utilidade pública” possuem dignidade, enquanto ocupações liberais perdem seu prestígio.
A utopia marxista concede prioridade à reprodução da vida frente ao conceito de virtude dos antigos, onde a excelência prevalece sobre a sobrevivência. Esse delineamento não frustra as tendências ilustradas de Marx, que especula com um futuro em que a revolução emancipa o homem do trabalho, substituindo o reino da necessidade pelo reino da liberdade.
Não pode ser de outro modo, pois “o reino da liberdade só começa onde cessa o labor determinado pela necessidade”. Essa “fundamental e flagrante contradição” afeta todo o pensamento marxista. Em todas as fases de seu trabalho, Marx “define o homem como animal laborans e depois o leva a uma sociedade na qual sua maior e mais humana força já não é necessária. Isso nos deixa com a penosa alternativa entre escravidão produtiva e liberdade improdutiva".
O homem é a única espécie que experimenta repugnância ao esforço de perseverar em seu ciclo biológico. A urgência das necessidades materiais, que outros animais percebem como a essência da vida, se torna no homem escravidão. A escravidão é a condição natural da própria vida e o preço da emancipação é a própria vida, pois “a perfeita eliminação da dor e do esforço laboral não só retiraria da vida biológica seus prazeres mais naturais, como também a arrebataria de sua própria vivacidade e vitalidade. Para os mortais, a ‘vida fácil dos deuses’ seria uma vida sem vida”.
A espiral de consumo que caracteriza as modernas sociedades industriais vinculou o trabalho ao ciclo biológico da abundância, impondo a renovação permanente dos bens de uso. Marx acreditava que a emancipação do labor (“o único elemento estritamente utópico de seu pensamento”) geraria um lazer baseado em atividades intelectuais e criativas, pois, ao não usar sua força para satisfazer suas necessidades, o homem usaria sua energia em tarefas mais elevadas.
Essa profecia foi rigorosamente descumprida, pois o ser humano ocupou seu ócio no consumo, transformando todas as coisas em objeto de seus apetites. Desse modo, surge a cultura de massas, que representa uma ameaça ao equilíbrio ecológico e ao futuro do planeta, já que o consumo é um apetite insaciável e destrutivo.
A exaltação da utilidade como bem supremo produz um mundo desumano, onde o valor das coisas é determinado pelo valor de mercado. Nesse contexto, pensamento e arte se tornam bens marginais. O consumo invadiu a maior parte da esfera pública. Dessa maneira, o sonho dos tiranos da Grécia antiga, que aspiravam transformar a ágora em um mercado, foi realizado.
A vida humana fica rebaixada à condição de mercadoria e o valor do trabalhador é medido pela demanda que afeta sua atividade, propiciando que alguns concebam um futuro em que as máquinas possam substituir o indivíduo na tarefa de pensar, sem advertir que processos lógicos do mais poderoso engenho mecânico são incapazes de erguer um mundo onde o homem possa habitar.
Não há em A condição humana nenhuma referência a outras tradições culturais. Nem ao Islã, nem às grandes civilizações do Oriente, menos ainda, aos povos africanos ou pré-colombianos. Essa omissão poderia ser interpretada como uma forma de desdém por formas de organização que aparentemente não teriam ultrapassado a fronteira da ação racional.
É paradoxal que Hannah Arendt incorra nesses delineamentos, quando a última parte de seu trabalho trata da invenção do telescópio, uma invenção crucial na determinação do local que corresponde ao homem no cosmos. Não podemos descartar que existam civilizações extraterrestres com formas de raciocínio muito superiores às nossas, o que anularia a hierarquia estabelecida por Arendt. Por outro lado, sua avaliação da sociedade de consumo foi confirmada pelo tempo.
Em nossos dias, o desprezo por atividades que não contribuem para a produção se generalizou, o que fez com que se identifique democracia com cultura de massas. O retorno de sentimentos nacionalistas não é nostalgia da polis, mas fruto do crescente peso das massas na política. Não é estranho que o nazismo concebia seus objetivos em termos biológicos. Tratava-se de restituir a luta elementar pela vida contra a alegada futilidade do debate político, que apenas produz reconhecimento.
O homem novo seria um trabalhador, uma síntese do soldado e do operário que encontraria sua identidade na impessoalidade do uniforme. O mais paradoxal desse programa é que, invocando a obrigação de contribuir para o progresso da vida, foi estabelecido um regime que introduziu na história o extermínio industrializado. O fervor exterminador não se esgotou com o inimigo judeu, polonês ou comunista, mas se voltou contra o povo a quem havia sido prometido um império milenar. Hitler chegou a propor a esterilização forçada dos alemães com afecções pulmonares e cardíacas.
A condição humana não é um tratado antropológico, mas político. Sem ‘As origens do totalitarismo’, que surgiu em 1951, a obra ficaria incompleta. Hannah Arendt, que preferia o rótulo de publicitária ao de filósofa, não subordinou os acontecimentos a uma escatologia, nem se identificou com um programa definido de reformas. Sabia que o homem não está sujeito a leis históricas e naturais. A condição humana é imprevisível e o imprevisível não vem do acaso, mas da liberdade.
De convicções liberais, Arendt sempre defendeu o império da lei, o constitucionalismo e a razão política. Não se pode obrigar o indivíduo a se envolver na vida pública, pois isso é o que faz totalitarismo, mas é preciso enfatizar que a defesa do bem comum é uma obrigação cidadã. Se cada um se dedicar exclusivamente ao cultivo de seu jardim, um dia a vegetação rasteira penetrará em sua casa, destruindo sua existência idílica. Hannah Arendt é uma humanista. Daí sua firme oposição ao poder totalitário, que considera o indivíduo supérfluo: um corpo que pode ser destruído e uma alma suscetível a ser manipulada.
É absurdo pensar que a Shoah e o Gulag pertencem ao passado. Podem voltar. De fato, não desapareceram os centros de internamento, o populismo governa em muitos países e o nacionalismo cresce em uma Europa em crise permanente. Apesar de tudo, o mal sempre acaba retrocedendo frente ao bem, pois “carece de profundidade e de qualquer dimensão demoníaca. Só é extremo, nunca radical”. Nisso consiste sua banalidade. “Só o bem tem profundidade e pode ser radical”. Devemos interpretar essa diferença como um sinal de esperança.
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Hannah Arendt: o caminho para o humano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU