Em meados dos anos 1970, aparecem duas obras centrais na filosofia contemporânea, publicadas com pequena distância temporal entre si: apenas um ano. Em 1975, surge Vigiar e punir, de Michel Foucault, que parte da leitura dos métodos e dispositivos de controle sobre a população como próprios de uma mudança histórica. Deixava-se para trás um poder soberano e de punição por métodos de vigilância que, em lugar de punir o crime, buscavam preveni-lo. Daí a prisão no sentido contemporâneo, um espaço que (ao menos no papel) tem a intenção de produzir um conhecimento científico sobre o sujeito que permita eliminar nele qualquer rastro milimétrico de maldade, para que retorne à sociedade.
A reportagem-entrevista é de Fernando Bogado, publicada por Página/12, 12-04-2020. A tradução é do Cepat.
Na sequência, Foucault confirma esta mudança dentro de seus estudos com o surgimento do primeiro tomo de sua “História da sexualidade”. O poder passaria, então, de exercido de uma maneira centralizada na vontade do soberano, a um modo de conhecimento, onde esse mesmo poder se torna mais difuso, dividido em inumeráveis dispositivos não hierárquicos que constroem a borda por onde aparece ou se cria o sujeito: a medicina, os censos populacionais, a sociologia, a psicanálise, inclusive, a economia. Todas disciplinas “humanas” que tinham como objeto o “humano”. Como cuidá-lo, como vigiá-lo, como entender suas mudanças, como prevenir suas doenças...
O poder passou de “fazer morrer e deixar viver” a “fazer viver e deixar morrer”. O ano de 1976 é quando surge o segundo dos dois livros que citamos. Onde entra este exercício sutil e científico da biopolítica, descoberto por Foucault, na história argentina que emergiu no dia 24 de março do mesmo ano [Golpe de Estado na Argentina]?
Maurizio Lazzarato (sociólogo e pensador italiano, nascido em 1955), em seu livro El capital odia a todo el mundo, estabelece uma profunda discussão no próprio coração desta linha de pensamento de Foucault e os pensadores que a ele se vinculam ou que o retomam, sobretudo, Giorgio Agamben e Roberto Esposito, além de Deleuze, Guattari, Derrida, Toni Negri e Michael Hardt. A ideia é muito clara: o que este conjunto identificado com a intelectualidade posterior a 1968, o Maio Francês, e as numerosas revoltas que tomaram conta do mundo pelo mesmo período perderam de vista foi que a violência real e os ciclos de luta e revolução não desapareceram do cenário da vida cotidiana, do imediatismo da práxis, mas, ao contrário, se transferiram para espaços não-europeus.
Ou seja, enquanto Foucault pensava em uma linha que iria aproximá-lo de sua ideia de micropolítica, de pequenas resistências como ato de resposta ao poder, enquanto identificava um pensamento liberal que havia se encarregado de diluir, disseminar, estender as estratégias de controle por meio de mecanismos sutis que deveriam ser identificados, perdia de vista que inumeráveis atos de violência política e militar real estavam ocorrendo em países como o nosso [Argentina], em territórios que formavam as antigas colônias e que eram consideradas repúblicas de segunda linha por parte de um poder que continuava sendo colonialista em seu coração, e que havia provocado a mutação do sistema capitalista em sua variante neoliberal, iniciada por uma segunda longa crise (1978-1991), algo que Lazzarato retoma do economista egípcio Samir Amin. Isto é, se a primeira longa crise (1873-1890) produziu o mundo que acabou explodindo com as duas guerras mundiais, esta segunda longa crise teria como resultado o nascimento de um tipo de neoliberalismo que iria se centrar na construção de um oligopólio mundial, onde um número contado de empresas se converteriam em poderosos agentes financeiros e produtivos em escala global. O mundo dominado por esse famoso 1%.
“Considero que o pensamento filosófico dos anos 1960 e 1970 não conseguiu renovar o conceito de luta de classes”, afirma Lazzarato, incisivo, em uma entrevista exclusiva. “Houve duas atitudes fundamentais e opostas: uma que abandonava a luta de classes acreditando justamente que, por exemplo, a dialética já não servia para pensar os conflitos políticos contemporâneos, mas sem, por isso, propor qualquer outro termo que estivesse à altura teórica e política desse conceito que tanto criticaram. A outra atitude apenas reproduziu o conceito de luta de classes, limitando-o ao conflito capital-trabalho no sentido do ensino marxista clássico. Quando na realidade, segundo me parece, o problema era (e é) a passagem da luta de classes no sentido singular à luta de classes no sentido plural”.
Considera que os pensadores biopolíticos não veem ou não querem ver esta centralidade do enfrentamento de classes?
Cinquenta anos de neoliberalismo demonstraram que, por exemplo, a saúde pública, um dispositivo biopolítico por excelência, se encontra completamente investida pelo capital, privatizada, com fundos cortados, com a introdução de uma gestão “just in time”, com uma lógica de zero camas desocupadas, que representam zero “stock” de camas disponíveis, como se se tratasse de uma indústria automobilística. Daí a falta de camas, de respiradores. Não produziam porque não queriam armazenar, não queriam perder dinheiro guardando e planejaram a produção para não haver dinheiro ocioso.
A lógica atual de intervenção do Estado não é aquela do “cuidado da saúde da população”, mas a que assegura a produtividade do hospital e da estrutura sanitária. Aqui, está a luta de classes que se desenvolve no terreno da biopolítica e que os patrões e o Estado são os únicos que nunca a abandonaram, são os únicos que estão dispostos a levar tudo até as últimas consequências, isto é, a guerra e o fascismo, se necessário.
E o fato de o dispositivo biopolítico ser o objeto da luta de classes não é só uma realidade do neoliberalismo, mas também do Estado de Bem-estar surgido no século XIX e de suas extensões e institucionalizações, ao longo do século XX. Em definitivo, o que Foucault nunca compreendeu, como a quase totalidade do pensamento filosófico, é a natureza do capitalismo em geral e do neoliberalismo em particular.
Chamará a atenção de qualquer leitor local o gesto disruptivo de Lazzarato em relação à produção intelectual europeia. Em algum ponto, reconhece os vícios do eurocentrismo. Embora sempre seja pouco agradável quando alguém do Velho Continente “explica” uma situação cotidiana para qualquer um que viva por esses lados, Lazzarato tem a astúcia e a sagacidade para reconhecer que a implantação do atual neoliberalismo tem sua data de início nos golpes de Estado sul-americanos dos anos 1970. Tudo começa com a queda de Allende e o nosso trágico 24 de março. Com isso, ficou evidente algo que começa a ser tangível para todo o mundo ocidental, hoje em dia, e que Lazzarato chama de “máquina de guerra” do capital. Retomando a noção de Félix Guattari, o sociólogo italiano decide substituir a ideia de “máquina social” pela de “máquina de guerra”. O poder militar e sua violência como origem da ordem da relação entre “vencedores” e “vencidos”.
A filosofia contemporânea, então, deixou de lado apenas o tratamento desta luta de classes, ou há outros conceitos que acompanham esta retirada?
Acredito que outra coisa que escapou do pensamento de 68 é a natureza do ciclo de luta e revolução posterior à Segunda Guerra Mundial. Nesse período, pela primeira vez, ocorreu a possibilidade de uma revolução com características mundiais. O pensamento filosófico/político que produziu rupturas e inovações impressionantes no plano conceitual, era ainda fundamentalmente de cunho europeu, ao passo que o centro das revoluções há tempo já não era. Os comunistas da primeira metade do século XX, após perceberem que a revolução não havia ocorrido no Ocidente, focaram sua ação política no “povo oprimido” do Oriente, do sul, do colonialismo.
Talvez tenha sido a ruptura política mais importante do século XX, porque a divisão entre centro e colônia, que constituía o modo de funcionamento do capitalismo, desde o momento da acumulação primitiva (1492 e o processo da Conquista da América), se encontrava colocada em perigo pelos movimentos revolucionários anticolonialistas. Este ciclo de luta e revolução encontra sua conclusão política na América Latina, com a intervenção do imperialismo norte-americano e de seus economistas. É um ponto de inflexão a respeito do qual Foucault e seus seguidores evitam falar. O pensamento de 68 abandona o conceito de revolução justamente quando, no que se refere à história da humanidade, nunca houve tantas revoluções como no mesmíssimo século XX.
O grande erro, então, foi separar uma leitura da realidade mundial de um panorama mais concentrado nestas micropolíticas. Você não nega a leitura de Foucault e companhia, mas, sim, destaca suas falhas em relação à leitura do presente, não é verdade?
A separação do “devir revolucionário” da “revolução” em Deleuze ou a divisão do “processo de liberação” e da “prática da liberdade” em Foucault, penso que foi nefasta. As duas coisas não podem andar separadas, caso contrário, o que nos resta é uma derrota segura, se é que finalmente já não ocorreu. No período do pós-guerra surgiram novos temas políticos. Penso especificamente no movimento de mulheres e nos movimentos anticoloniais. Movimentos que começaram, justamente, criticando as posturas revolucionárias e seus correspondentes modelos organizativos no período da primeira metade do século XX. Ou seja, um modelo construído a partir da experiência soviética e do processo revolucionário asiático (China, Vietnã). Acredito que sem uma nova forma de organização que contemple uma ruptura radical com o capitalismo não será possível realizar qualquer retomada da iniciativa política. É um fato, a social-democracia morreu com a derrota da revolução. Ela existia somente como um instrumento de integração da ruptura revolucionária. Quando a revolução se ofuscou, a social-democracia ficou sem sentido e desapareceu.
O prognóstico crítico de Lazzarato também é propositivo. Não observa apenas esta falta de atenção histórica por parte de pensadores do 68, contrapondo um intelectual economista do terceiro-mundismo como Samir Amin a Esposito, Agamben e Toni Negri, mas também observa que o desenvolvimento dos coletivos feministas e dos movimentos anticoloniais encontram uma chave que pode ser proveitosa para um mundo que, caso não mude, será consumido pelo capitalismo em sua fase neoliberal. Esses grupos consideram que a oposição é real, segue uma lógica de luta de classes.
Em El capital odia a todo el mundo, Lazzarato considera que a novidade deste momento histórico é que o modelo imperialista de dominação militar, que antes implicava em levar a ação bélica a países não-europeus, agora se transformou na guerra ao interior da população, com grupos em luta direta que, lentamente, começam a tomar consciência da oposição entre conjuntos com diferentes interesses.
O movimento dos “coletes amarelos” na França é um caso que o leva a refletir sobre a guerra civil como base da política e a economia, cujo custo negativo é a ascensão de novos fascismos no Brasil, com Bolsonaro, e nos Estados Unidos, com Trump. O que pode dizer acerca destas leituras presentes em El capital odia a todo el mundo, no contexto de uma pandemia mundializada?
Em um artigo que terminei no dia 29 de março, que espero que saia logo em espanhol, retomo justamente esta ideia que me parece fundamental. A atual crise provocada pela Covid-19 é uma demonstração de um capitalismo moribundo, o que não significa que vá desaparecer assim porque sim: já sabemos que é um sistema que vive de crises. O problema é que, para o capitalismo, até mesmo a vida é um problema de geração de renda. Não há nada humanitário nele, porque tudo está em função da circulação e concentração de dinheiro, de poder econômico. Por isso, relaciono a crise ecológica como parte desta crise pandêmica: uma está ligada à outra.
Amin, em sua ideia da segunda longa crise, observa um tríptico de concentração, mundialização e financeirização na origem de todas as guerras, catástrofes econômicas, financeiras e sanitárias, inclusive ecológicas que conhecemos e iremos conhecer. E esse tríptico produz e é produzido pelos oligopólios internacionais, ou por acaso a produção agrícola não está controlada por algumas poucas mãos que destroem a vida natural para obter mais lucro? Ou não é Bolsonaro o presidente fascista de um país que viveu a catástrofe ecológica da Amazônia há pouco tempo? E isso não acontece apenas na produção agrícola.
Com a financeirização, muito oligopólios farmacêuticos fecharam suas unidades de pesquisa e se limitam a comprar patentes de empresas novas para possuir o monopólio da inovação. Graças ao controle monopolista, depois oferecem medicamentos a preços exorbitantes, o que reduz o acesso por parte dos doentes. Gilead Sciences Inc., por exemplo, além de ter enormes dividendos pela patente do medicamento contra a hepatite C, é também quem tem o medicamento mais auspicioso contra a Covid-19. Mas se estes chacais não são expropriados, se os oligopólios das Big Pharms não são destruídos, qualquer política de saúde pública é impossível. Os setores de “saúde” não se regem pela lógica biopolítica de “cuidar da população”, nem pela “necropolítica”, igualmente genérica. Estão ordenados por dispositivos precisos, meticulosos, racionais em sua loucura, violentos em seu desempenho, para a produção de lucros e receitas.
O mesmo acontece com este panorama apocalíptico da quarentena. O fechamento que estamos experimentando é muito similar a uma prova geral da próxima crise “ecológica” (ou atômica, como preferir). Fechados em casa para nos defender de um “inimigo invisível”, sob a ameaça organizada pelos responsáveis da situação que surgiu. O capitalismo contemporâneo generaliza a guerra contra os vivos, mas fez isso desde o início de sua história, porque são objeto de sua exploração e, para explorá-los, deve submetê-los. A vida dos humanos, como todos podem ver, deve estar sujeita à lógica contável que organiza a saúde pública e decide quem vive e quem morre. A vida dos não humanos está nas mesmas condições, porque a acumulação de capital é infinita e se a vida, com sua finitude, constitui um limite para sua expansão, o capital o enfrenta como todos os demais limites que encontra, superando-os. Esta superação implica necessariamente a extinção de cada espécie.
Então, propõe a retorno à leitura marxista da situação mundial como a única que pode apresentar ferramentas para oferecer uma alternativa à destruição produzida pela máquina de guerra do capital?
O pano de fundo teórico mais importante da revolução é o marxismo, que sem dúvidas conserva um ponto de vista eurocêntrico (e os marxismos do norte ainda o tem). Mas a revolução soviética já foi uma revolução “contra O Capital de Marx”, segundo as palavras de Gramsci. As revoluções asiáticas adaptaram, mudaram e inclusive enriqueceram o marxismo do qual haviam tomado algumas coisas. Temos que seguir estes exemplos, justamente porque acredito que a Europa não irá nos prover das categorias que precisamos (e acredito também que o pensamento dos anos 1960 e 1970 também não é muito útil para tais fins).
Se a revolução pode voltar a tomar a iniciativa, deverá fazer isso em nível mundial (a última revolução vitoriosa no Ocidente foi a francesa de finais do século XVIII!). E a elaboração teórica não poderá a não ser seguir esta dimensão global. As revoluções do século XX são as primeiras que adquiriram uma dinâmica mundial, enquanto que o capital teve uma estratégia global desde o ano 1492, razão pela qual conta com muita experiência em torno de um possível conflito nesta escala. E, com efeito, deslocou o movimento dos anos 1960 e 1970, organizando uma ulterior e ainda mais profunda mundialização.
Como avalia, finalmente, o estado atual das lutas contra este quadro de situação?
Houve três ciclos de luta e revolução: o socialista e europeu, do século XIX, o comunista e internacionalista, da primeira parte do século XX, e o da revolução mundial e social (no sentido em que não discutiu apenas os problemas na relação capital-trabalho) do período pós-guerra. Com o neoliberalismo, termina este ciclo de lutas e revoluções. A luta dos últimos quarenta anos foi pura e exclusivamente defensiva, nunca esteve na posição de colocar em crise a máquina capitalista. Deveríamos começar a pensar seriamente o ciclo de lutas e revoluções que se abriu em 2011 e 2019 e analisar sua dimensão mundial e a diferença entre o norte e o sul. Em síntese, acredito que os índices mais auspiciosos para uma autêntica revolução não vêm, precisamente, do norte do mundo.