09 Abril 2020
“Devemos temer que, como resultado da pandemia, o Ocidente também acabe retornando ao estado policial e à sociedade disciplinar que já superamos? Por culpa do vírus, o liberalismo e o individualismo ocidentais logo serão coisa do passado? Ou a epidemia descontrolada e suas incontáveis mortes são o preço que temos a pagar pela liberdade?”, questiona Byung-Chul Han, filósofo e ensaísta sul-coreano que dá aulas na Universidade de Artes de Berlim. Autor, entre outras obras, de Sociedade do Cansaço em artigo publicado por Clarín-Revista Ñ, 07-04-2020. A tradução é do Cepat.
A pandemia está colocando em risco o liberalismo ocidental. Estamos vendo que é difícil compatibilizar o liberalismo com a pandemia. O Ocidente está enfrentando uma ameaça de retorno à sociedade disciplinar? Nos aeroportos, devido ao risco de terrorismo, já nos submetemos, sem dar um pio, às medidas de segurança que parecem absurdas e por vezes humilhantes. Cada um de nós é um potencial terrorista. O vírus representa outro tipo de terrorismo incomparavelmente mais perigoso que vem do ar e se espalhou pelo mundo inteiro. É invisível e onipresente e mata muito mais pessoas que o terrorismo. O vírus será capaz de transformar permanentemente a sociedade liberal ocidental em uma sociedade disciplinar, na qual todos nós, sem exceção, somos tratados como seus potenciais portadores?
Já no século XVII, com a epidemia de peste, foram adotadas medidas disciplinares na Europa que hoje pareceriam inconcebíveis e que, desde, então caíram em um esquecimento absoluto. Michel Foucault faz uma impactante descrição delas em suas análises da sociedade disciplinar. As casas são fechadas por fora com a chave. As chaves devem ser entregues às autoridades. As pessoas que quebram clandestinamente a quarentena são condenadas à morte. Matam os animais que correm soltos. A vigilância é total. Exige-se uma obediência incondicional. Todas as casas são vigiadas.
Durante as verificações, todos os habitantes da casa precisam aparecer na janela. Aqueles que moram no fundo dos quintais recebe uma janela voltada para a rua. Cada um chamado pelo seu nome e perguntam como estão. Quem mente se expõe à pena de morte. Estabelece-se um sistema de registro exaustivo. O espaço se integra a uma rede de células impermeáveis. Cada um encadeado em seu lugar. Quem se move arrisca a vida. O poder penetra até os mínimos detalhes da existência. Toda a sociedade se torna um panóptico e é penetrada por completo pelo olhar panóptico.
Como consequência da pandemia, a Europa perdeu todo o seu carisma. No momento, a Europa olha para a Ásia com espanto e inveja. Os países asiáticos conseguiram controlar muito rapidamente a epidemia. O que os asiáticos fazem melhor do que os europeus? Apesar do neoliberalismo, os estados asiáticos continuam sendo, diferentemente do Ocidente, uma sociedade disciplinar. Na Ásia, impera o coletivismo com uma forte tendência à disciplina. Nela é possível impor, sem grandes problemas, medidas disciplinares radicais, que nos países europeus enfrentariam forte rejeição. Mais do que restrições dos direitos individuais, são percebidas como o cumprimento de deveres coletivos. As necessidades individuais são relegadas em favor dos interesses coletivos.
Países como China e Cingapura possuem um regime autocrático. Na Coréia do Sul e Taiwan, até algumas décadas atrás, também havia. Os regimes autoritários educam as pessoas para fazer delas obedientes sujeitos disciplinares. Na Ásia, acima de tudo, está sendo implementado um regime de vigilância digital. Os asiáticos se submetem a ele praticamente sem protestar. Todas essas peculiaridades se mostraram vantagens que seu sistema oferece para conter a pandemia. Portanto, o modelo asiático acabará sendo imposto em escala global? Esse seria o fim do liberalismo.
Com um rigor e uma disciplina que para os europeus seriam inconcebíveis, os asiáticos estão vencendo o vírus. Suas medidas rigorosas evocam aquela sociedade disciplinar que foi estabelecida na Europa, durante o período da epidemia de peste, e que desde então caiu em um esquecimento absoluto.
Segundo Naomi Klein, a comoção é um momento propício que permite estabelecer um novo sistema de governo. Viktor Orbán olha com inveja para os estados autocráticos da Ásia. Já não confia na Europa. Devido à pandemia, decreta-se por lei o estado de alarme por tempo indefinido. Portanto, devemos temer que, como resultado da pandemia, o Ocidente também acabe retornando ao estado policial e à sociedade disciplinar que já superamos? Por culpa do vírus, o liberalismo e o individualismo ocidentais logo serão coisa do passado? Ou a epidemia descontrolada e suas incontáveis mortes são o preço que temos a pagar pela liberdade?
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Estamos a caminho de uma nova sociedade disciplinar? Artigo de Byung-Chul Han - Instituto Humanitas Unisinos - IHU