19 Março 2020
"Uma certa intransigência católica que defende a irrenunciabilidade das missas e de outras celebrações em comum também é o resultado de um tempo em que a Igreja se fundava mais no poder do que na Eucaristia, e a Bíblia fora tirada das mãos do povo cristão; e agora que a Igreja deu razão aos reformadores mais iluminados e querigmáticos reconhecendo como fonte e cume de tudo a Eucaristia e as Escrituras, eles vivem como uma infidelidade, se não mesmo uma apostasia, a ausência dessa evidência visível".
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 18-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "a verdade é que, no momento das grandes provações, não é preciso mais religião, mas mais fé. E a fé consiste em não dizer nunca mais, diante da "desgraça", "e onde está Deus? Onde está? Onde estava?”, mas em saber que justamente naquele momento a graça é abundante".
Os pobres da Igreja, que é de todos, mas sobretudo dos pobres, estão consternados porque leram no "Repubblica" que sem a Eucaristia dominical para os cristãos não é possível viver, e quem afirma isso é um mestre respeitado. Por serem pobres, não vivem em santuários ou mosteiros, não moram em seminários ou nas casas do clero, mas em suas casas fechadas por causa do vírus, e se, aliás, estão na Amazônia ou em outras terras cristãs depredadas, mas desprovidas de clérigos, eles nem podem sonhar com a Eucaristia dominical, e ficam preocupados ao ouvir que assim não podem nem mesmo viver e, de qualquer forma, não como cristãos. Portanto, para eles, e são muitos, o Senhor teria vindo e morrido em vão.
Isso é sério e, portanto, não podemos ir adiante sem nos sentirmos questionados, sem buscar, se houver, outra resposta para os pobres e os pequenos que todos nós somos. E é ainda mais necessário porque, junto com esse lamento pela falta da Eucaristia e pelos sinais materiais dos outros sacramentos, levantam-se apelos aqui e ali "à Igreja", para que nesta tragédia da pestilência se faça ouvir, levante sua voz, diga palavras fortes, "palavras da verdade", faça gestos exemplares de invocação e súplica, organize orações e suba nos pináculos, como se em tempos normais a Igreja não falasse e não se fizesse Palavra, não transmitisse verdade, não rezasse, não invocasse perdão e não suplicasse ao Deus da misericórdia e como se hoje fosse ainda mais inadimplente.
Evidentemente, não há razão para se escandalizar com essas posições exigentes e ansiógenas que poderiam perturbar ainda mais os fiéis. Nada de novo; afinal, até os melhores podem forçar as coisas de Deus. Basta pensar em São Tomé, que alegava que uma criança que morresse no deserto sem encontrar água para batizá-lo não seria salva para a eternidade, o que realmente era "pelagiano" porque pressupunha como inderrogável uma obra humana. E basta pensar no juízo cortante de São Paulo sobre os judeus que pedem milagres e os gregos que buscam a sabedoria enquanto nós anunciamos Cristo crucificado, para ver como existe uma excedência, uma pretensão mundana que não confia na ação de Deus, ele quer integrá-la e substituí-la, não percebe a simplicidade da obra de Deus à qual não por acaso se referiu o Papa Francisco em sua homilia na segunda-feira passada em Santa Marta.
Mesmo nesta conjuntura, o Papa Francisco deve segurar o impacto: de um lado adverte os bispos, começando com seu vigário em Roma, que as medidas drásticas como aquelas de fechar as igrejas "nem sempre são boas"; pelo outro, ele mostra uma extraordinária sobriedade para não incentivar derivas milagreiras e mágicas. Uma coisa é que a Igreja pensada por Francisco como hospital de campanha não feche suas portas justamente quando toda a sociedade se torna um hospital, uma coisa é que os padres como ministros da outra saúde estejam na linha de frente para ajudar e consolar os fiéis, e outra coisa é pretender que as assembleias se reúnam para os ritos, das missas às "lectio divine", das novenas, aos "Sepulcros" (e os tradicionalistas também falam das piscinas de Lourdes), com a motivação de que a religião com seus ritos é livre da lei e não dar atenção às "medidas burocráticas" e ao interesse comum de todos os cidadãos.
Aqui realmente Deus está afastado do sagrado. Uma reunião que seria um crime se fosse por uma "balada", seria ao contrário um sacrossanto direito e dever se fosse para uma missa ou para uma vigília, como se os corpos não fossem os mesmos: e aos "leigos", aos cidadãos comuns, quem vai contar isso a eles? É mais um ícone da santa obediência o papa que sozinho percorre o deserto da via del Corso em direção à igreja dos Servi di Maria para invocar o crucifixo, vestindo uma túnica branca como um cilício, como escreveu Antonio Padellaro no "Fatto".
Uma certa intransigência católica que defende a irrenunciabilidade das missas e de outras celebrações em comum também é o resultado de um tempo em que a Igreja se fundava mais no poder do que na Eucaristia, e a Bíblia fora tirada das mãos do povo cristão; e agora que a Igreja deu razão aos reformadores mais iluminados e querigmáticos reconhecendo como fonte e cume de tudo a Eucaristia e as Escrituras, eles vivem como uma infidelidade, se não mesmo uma apostasia, a ausência dessa evidência visível. "A escolha religiosa" não era a reforma mais avançada que a Igreja poderia fazer? E agora como renunciar a ela?
A verdade é que, no momento das grandes provações, não é preciso mais religião, mas mais fé. E a fé consiste em não dizer nunca mais, diante da "desgraça", "e onde está Deus? Onde está? Onde estava?”, mas em saber que justamente naquele momento a graça é abundante.
A dificuldade reside no fato de “como a Igreja deve ser”, nós o pedimos às nossas culturas, às nossas teologias ou aos nossos perfeccionismos e não do Evangelho. Mas justamente no primeiro domingo em que a Eucaristia não pôde ser celebrada em comum (e sim, conectados ou não, a do coração), o Evangelho contava que Jesus em um contexto que não poderia ser mais secular e comum, dizia para a mulher samaritana que chegaria a hora de adorar a Deus não no templo de Jerusalém ou naquele alternativo construído no monte Garizim, mas os verdadeiros adoradores iriam adorar a Deus em espírito e verdade.
Alguns pensaram que Jesus quisesse falar sobre um tempo, quem sabe quão distante, em que a pura fé tomaria o lugar da religião e, portanto, não haveria mais necessidade de templos e ritos. Mas Jesus havia dito: chega um tempo e é este. Este é o tempo em que a religião continua, continuam existindo templos e ritos, e também a Eucaristia, os funerais e os outros sacramentos, mas estes de nada valeriam sem o Espírito e sem a verdade e, como ele disse em outra ocasião, sem perdão e reconciliação entre os irmãos; um templo sem fé não é nada, mas adorar a Deus em espírito e verdade, mesmo que não exista templo, rito ou clero, é tudo e, aliás, diz Jesus, façam isso também em seu quarto quando ninguém vos vê.
Nenhuma pulsão iconoclasta nisso: os grandes recursos devocionais e sacramentais da instituição religiosa, com a devida discrição e discernimento, permanecem todos, no entanto, estão no reino do relativo, do medicinal, do pedagógico e também do necessário, mas não como campos absolutos. O monge mais santo que conhecemos, padre Benedetto Calati, camaldolense, quando chegou à hora de sua morte foi prevenido por um monge seu discípulo, que depois testemunhou o fato, e que lhe disse: "Padre, chegou a hora: quer a Extrema Unção?". E padre Benedetto, com um sorriso luminoso, mas agora já um pouco irônico, respondeu: “Innocenzo! Você ainda pensa nessas coisas!”. Como se dissesse: depois de todos aqueles Salmos!
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Se faltar água. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU