14 Março 2020
Mulher e homem são semelhantes e diferentes, e a sua diferença é penhor do reconhecimento recíproco e é apelo a se tornarem uma só carne, princípio a partir do qual é normatizada já aqui a unidade indissolúvel dos dois universos humanos, o masculino e o feminino.
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 13-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Enquanto a crise provocada pelo Vírus Inimigo atinge o seu ápice, uma novidade extraordinária atravessa o pontificado do Papa Francisco e o entrega ainda mais ao futuro: uma releitura da Bíblia oferecida à Igreja (e não só) pela Pontifícia Comissão Bíblica, sob o misterioso e crucial título: “O que é o homem?”.
Trata-se de um documento recém-publicado, que se concretiza em um percurso, e não em uma sistematização dogmática, que descobre a realidade do ser humano no seu “devir”, e não na fixidez de uma fotografia instantânea, que se apresenta como uma investigação de antropologia bíblica, mas, na realidade, é uma releitura teológica, um “quem é” de Deus, também em virtude de uma nova percepção da semelhança do ser humano, seu filho, com Ele.
É um documento que o próprio Sandro Magister (o que é uma festa para nós) promove como “o mais belo documento deste pontificado”, tendo sido solicitado pelo Papa Francisco e posto como tema de todas as sessões plenárias do Instituto Bíblico desde o início deste pontificado.
Resulta daí uma visão fascinante da antropologia cristã e da antropologia tout-court, que más leituras da Bíblia, muitas vezes indiretas, mediadas pelas culturas mundanas ou achatadas pelos mitos, ofuscaram e desviaram, até à catástrofe da suposta legitimação bíblica da inferioridade da mulher, obtida pelo homem, tolamente seduzida pelo tentador e portadora do pecado ao mundo: mítica origem daquela cultura patriarcal que, tendo chegado até nós, está levando à apostasia das mulheres da Igreja.
Por singular coincidência, nestes dias, foi publicado pela editora Gabrielli um livro intitulado “Non sono la costola di nessuno” [Não sou a costela de ninguém], em que não só feministas e teólogas, mas também outras mulheres e homens refutam as nefastas interpretações e consequências que foram extraídas do relato do Gênesis sobre a criação e o pecado de Eva.
E é precisamente esse texto fundador que o documento da Comissão Bíblica assume como objeto da sua investigação, a fim de rastrear depois inúmeros córregos e desdobramentos em todas as páginas da Escritura; e isso porque o mistério do ser humano tem a sua raiz e o seu cumprimento final no evento da origem, evocado pelos primeiros capítulos do Gênesis.
E exatamente aí estão as surpresas. Acima de tudo, é revogada a suposta antítese entre imagem e semelhança presente em muitas teologias, para as quais todo ser humano seria à imagem de Deus, mas se assemelhar seria algo totalmente diferente.
Pois bem, a verdadeira tradução daquela expressão capital que se encontra nas primeiras páginas da Bíblia não é “Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança”, o que poderia levar a uma justaposição, mas sim, literalmente, “criou-o à imagem de acordo com a sua semelhança”; de fato, em outras passagens do Gênesis, uma vez se usa “imagem”, em outra, “semelhança”, como termos equivalentes, que fazem do ser humano a “figura” de Deus, o seu interlocutor especular. De acordo com uma tradução dinâmica sugerida pelo documento, pode-se dizer que o ser humano foi feito “à imagem semelhante” d’Ele.
E depois há a questão da costela do macho, da qual a mulher teria sido tirada. Na realidade, não há macho e não há costela. Em toda a Escritura, o termo hebraico sēlac, traduzido para o grego e depois para o latim como “costela”, nunca designa uma parte específica do corpo, mas simplesmente um lado ou um flanco de algum objeto, como se diz, por exemplo, “a costela de um livro”, e, portanto, sugere que homem e mulher, na sua natureza constitutiva, estão lado a lado, um ao lado do outro, como ajuda e aliado recíprocos. São semelhantes e diferentes, e a sua diferença é penhor do reconhecimento recíproco e é apelo a se tornarem uma só carne, princípio a partir do qual é normatizada já aqui não a instituição do casamento, mas sim a unidade indissolúvel dos dois universos humanos, o masculino e o feminino.
De fato, com a vinda de Eva, “não é a solidão do macho, mas sim a do ser humano que é socorrida, mediante a criação de homem e mulher”.
Quanto ao macho, não há aquela precedência sobre a fêmea, a partir da qual uma cultura de marca masculina quis derivar a ordem hierárquica da subalternidade da mulher na família e na sociedade. O apóstolo Paulo – reconhece o documento da Pontifícia Comissão – vai nessa linha quando diz, na Primeira Carta aos Coríntios, “nem o homem existe sem a mulher, nem a mulher sem o homem”, ou quando, na Primeira Carta a Timóteo – tão sofrida para as mulheres – diz que “primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, pecou”.
A Comissão Bíblica diz que essa perspectiva sociológica (isto é, ligada à cultura da época) “não é universalmente aceita hoje, até porque o texto bíblico postula uma leitura diferente, exegeticamente mais rigorosa”. De fato, até a aparição da mulher, o Adão de que fala o Gênesis nunca é o macho, mas o ser humano independentemente de qualquer conotação sexual, no qual estão incluídos em potência tanto a mulher quanto o homem: um mistério, certamente, tanto que, para ser resolvido, o Adão deve passar pelo sono, o “não conhecido”, no qual se realiza o maravilhoso prodígio de Deus que, a partir de um único ser, forma dois. E é a isso que o Papa Francisco alude quando diz poeticamente que o ser humano, para que haja a mulher, primeiro deve sonhar com ela.
Quanto à tentação de Eva, não é que o tentador tenha se aproveitado do sujeito mais fraco e irreflexivo; porque, ao contrário, dizem os biblistas do papa, a figura feminina é na Bíblia a imagem privilegiada da sabedoria, de modo que, nessa perspectiva, “a comparação não ocorre entre um ser muito astuto e uma tola, mas, pelo contrário, entre duas manifestações de sabedoria, e a ‘tentação’ se enxerta precisamente na qualidade alta do ser humano que, no seu desejo de conhecer, corre o risco de pecar por orgulho”.
Há muitas outras coisas nesse texto que abrem o coração e as mentes; como na evocação da nudez sem vergonha, como prova de que o amor conjugal é puro, na medida em que, na carne, expressa o amor segundo o desígnio de Deus; ou como na enunciação de um princípio hermenêutico de caráter geral, para o qual, mesmo diante de normas ou de mandamentos expressados de modo apodítico, como por exemplo o relativo à indissolubilidade do matrimônio, é necessário discernir a sua justa aplicação, de modo que, por exemplo, infringir esse mandamento não é o fato de se separar de quem ameaça a paz ou a vida dos familiares, de se constatar que “a relação esponsal não é mais expressão de amor”.
Também é muito importante a tematização da passagem da imagem indiscriminada do Deus juiz, criticada no próprio texto bíblico, à do pai que anseia passar da acusação ao perdão. Todo o Novo Testamento atesta a realização desse evento final da controvérsia com Deus, como cumprimento “do que havia sido anunciado como sentido da história”, estendido “a todos os povos, reunidos sob o mesmo selo da misericórdia, em uma nova e perene aliança”.
Essas são notícias de primeira página, mas ninguém nos deu esse “furo” jornalístico. E o próprio documento não está online; foi publicado em um livro de 336 páginas pela Livraria Editora Vaticana, em letras pequenas, com tinta cinza e desbotada, e em um número limitado de cópias, como se tivesse que ser lido apenas por olhos jovens e em círculos restritos de acadêmicos e professores.
Por isso, pedimos urgentemente ao prefeito do Dicastério para a Comunicação, Paolo Ruffini, que coloque esse documento na rede, que o divulgue nos outros meios de comunicação, eclesiásticos e seculares, favorecendo a sua recepção entre o povo cristão.
Assim, quando saímos do tormento do Vírus, nos encontraremos mais enriquecidos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Uma releitura teológica do ser humano em seu “devir”. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU