24 Janeiro 2020
"Considerações sobre a conexão da Eucaristia com o mundo material nos desafiam – especialmente numa época de mudanças climáticas catastróficas – a repensar a relação entre o nosso culto sacramental e o modo como vivemos", escreve Daniel P. Horan, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 22-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Daniel P. Horan é frade franciscano e professor assistente de teologia sistemática e espiritualidade na Catholic Theological Union, em Chicago. O seu mais recente livro intitula-se Catholicity and Emerging Personhood: A Contemporary Theological Anthropology.
Uma das características distintivas da segunda pessoa da Trindade Santa é que o Verbo eterno – e somente o Verbo, não o Pai nem o Espírito – adentra a criação como parte da criação. Deus livremente e com amor rende-se às armadilhas da divindade a fim de se tornar um com o – e parte do – mundo material (Filipenses 2,6-11).
O nosso calendário litúrgico marca uma série de momentos em que reconhecemos esta verdade profunda da fé. No Natal, celebramos a encarnação, quando Deus, o Filho, torna-se carne do mundo (sarx, em grego) e constrói um lar entre a humanidade e a família inteira da criação. O tempo ordinário reconta a pregação e os feitos de Cristo, bem como o seu engajamento milagroso com o mundo natural. Durante a Semana Santa, comemoramos os últimos dias da vida do Senhor, recordamos a real precariedade e vulnerabilidade de sua paixão e morte e nos regozijamos em sua ressurreição corporal dentre os mortos.
Mas a presença de Cristo no mundo não é um evento que ocorre uma única vez somente, um evento marcado pela vida e morte de Jesus de Nazaré, como se fosse um marcador histórico meramente digno de comemoração post-factum. Em vez disso, a presença contínua de Deus entre nós no mundo material é precisamente o que constitui a vida sacramental da Igreja. Isso é especialmente verdadeiro na missa.
Quando nos reunimos na Eucaristia, celebramos as múltiplas formas pelas quais Jesus continua a adentrar a realidade concreta da criação. A constituição dogmática sobre a liturgia, do Concílio Vaticano II, o documento Sacrosanctum Concilium, nos lembra que Cristo está “sempre presente na sua igreja” e que durante a celebração da missa Cristo se faz presente na pessoa do ministro, na assembleia dos batizados, nas escrituras sagradas proclamadas e nas espécies eucarísticas do pão e do vinho compartilhados. Quer consideremos a presença de Cristo no próximo, quer consideremos a presença sacramental de Cristo nos dons do altar, ambas as coisas refletem a auto-oferta e a proximidade de Deus junto de toda a criação.
O Papa Francisco ecoa a profundidade da escolha divina de nos comunicar o eu de Deus na ordinariedade do tempo e espaço. Em Laudato Si’ – Sobre o cuidado da casa comum, ele assim diz: “Não fugimos do mundo, nem negamos a natureza, quando queremos encontrar-nos com Deus”.
Mais que isso, o papa destaca que os sacramentos são em si significativos não apenas como um meio da graça divina para a família humana, mas para toda a criação.
“Os sacramentos constituem um modo privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em mediação da vida sobrenatural. Através do culto, somos convidados a abraçar o mundo num plano diferente. (…) Segundo a experiência cristã, todas as criaturas do universo material encontram o seu verdadeiro sentido no Verbo encarnado, porque o Filho de Deus incorporou na sua pessoa parte do universo material, onde introduziu um gérmen de transformação definitiva.”
De certo modo, assim como dizemos com confiança que o Natal é uma solenidade de todas as criaturas divinas, podemos também dizer que a vida sacramental da Igreja tem uma importância ecológica. Por essa razão, quando nos reunimos para celebrar a Eucaristia, celebramos algo de significação cósmica.
A Eucaristia não é só um meio pelo qual a humanidade recebe a presença sacramental de Cristo, como se o pão e o vinho fossem meros veículos do divino para nós somente. Em vez disso, a Eucaristia é o lugar privilegiado onde Deus está agora presente no mundo como parte deste mundo. Como explica Francisco, de novo em Laudato Si’:
“A criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia. A graça, que tende a manifestar-se de modo sensível, atinge uma expressão maravilhosa quando o próprio Deus, feito homem, chega ao ponto de fazer-Se comer pela sua criatura. No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico.”
Da mesma forma, outros vincularam a celebração da Eucaristia – na qual as criaturas humanas em toda a nossa corporalidade e fragilidade finita se reúnem em ação de graças para receber a presença sacramental de Cristo em elementos terrenos formados a partir de trigo e vinho – a uma comunidade mais ampla da criação. O padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin compôs uma reflexão poética sobre este tema intitulada “Missa sobre o mundo” em seu livro de 1961, Hino do universo.
Mais recentemente, a falecida filósofa e escritora espiritual Beatrice Bruteau escreveu, em 1990, em artigo intitulado “Ecologia eucarística e espiritualidade ecológica” [1], que precisamos renovar a narrativa que contamos sobre a Eucaristia e o mundo. Ela convida a uma visão compartilhada do nosso “planeta eucarístico”, com o que buscou dizer que os cristãos devem levar a sério a significação da presença divina no mundo material, especialmente à luz das catástrofes ambientais e da aplicação idolátrica das escrituras cristãs para justificar o nosso abuso ecológico da criação não humana. Bruteau explica:
“Uma percepção do Planeta Eucarístico, da Presença Real do Divino no mundo, é algo que precisamos agora para a proteção do planeta. Pode ser que a religião bíblica encorajou a civilização ocidental a tirar vantagem injusta do meio ambiente natural sob a crença de que este foi dado por Deus para os propósitos da exploração humana e que não tem direitos próprios. Pode ser que precisemos contar a nós mesmos uma nova história sobre como nos enquadramos no cenário geral e o que isso tudo tem a ver. Não discuto isso. Mas gostaria de enfatizar que, com base no Evangelho, podemos dizer algo bastante construtivo e muito animador que nos dará a nova história e uma visão da totalidade do planeta.”
Tais considerações sobre a conexão da Eucaristia com o mundo material nos desafiam – especialmente numa época de mudanças climáticas catastróficas – a repensar a relação entre o nosso culto sacramental e o modo como vivemos.
Conforme escrito em Sacrosanctum Concilium, a celebração dominical da Eucaristia é a fonte e a meta da nossa fé. Trazemos todo o nosso ser à mesa do Senhor e saímos desta celebração renovados em nosso chamado batismal a seguir as pegadas de Jesus Cristo. É um tempo de renovação e recomposição, uma oportunidade: “Sede o que vedes, e recebei o que sois”, como exortou Santo Agostinho aos fiéis em uma exortação sobre a Eucaristia 1.600 anos atrás (Sermão 272).
Quando olhamos para o sacramento abençoado, não enxergamos a teia terrena, material, frágil e finita da criação da qual fazemos parte e que Deus, com amor, escolheu adentrar?
Quando dizemos “amém” à proclamação “do corpo de Cristo”, reconhecemos que estamos reafirmando a bondade do mundo que Deus livremente criou e também que estamos renovando a nossa responsabilidade de cuidar deste mundo como ele já cuida de nós?
Quando consideramos a importância do sábado judaico, reconhecemos aquilo Francisco proclama em Laudato Si’, que “o domingo é o dia da Ressurreição, o ‘primeiro dia da nova criação, que tem as suas primícias na humanidade ressuscitada do Senhor, garantia da transfiguração final de toda a realidade criada”?
Que possamos nos aproximar de Cristo na Eucaristia com um senso renovado da significação ecológica do sacramento que compartilhamos, do dom divino que recebemos, da comunhão à qual somos chamados a participar e do dever que temos enquanto membros do corpo de Cristo, de “cuidar da casa comum”. Na melhor das hipóteses, qualquer coisa menos que isso pode constituir um pecado ecológico de omissão, e na melhor das hipóteses pode constituir uma forma de idolatria.
[1] Disponível aqui em inglês.
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A significação ecológica da Eucaristia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU