22 Fevereiro 2020
Emiliano Terán Mantovani, sociólogo, mestre em Economia Ecológica, doutorando em Ciência e Tecnologia Ambientais. Participa do Grupo de Trabalho Permanente sobre Alternativas ao Desenvolvimento, da Fundação Rosa Luxemburgo, e no Grupo de Trabalho sobre Ecologia Política, do CLACSO. Colaborou com o projeto EjAtlas - Justiça Ambiental, em conjunto com Joan Martínez Alier, e é membro do Observatório de Ecologia Política da Venezuela. A nível teórico e político, trabalha principalmente na crítica ao extrativismo e às problemáticas socioambientais de nossa Terra, que supõe uma nova proposta para pensar a América Latina.
A entrevista é de Andrés Kogan Valderrama, publicada por OPLAS, 17-02-2020. A tradução é do Cepat.
Em relação à “Conferência Nacional e Internacional: Construindo Justiça Climática e Transição Energética”, realizada em Bogotá, nos dias 28 e 29 de novembro de 2019, na qual você fez uma exposição, no marco dos 30 anos do Censat Água Viva, gostaria que comentasse como foi o evento, quais questões foram tratadas em nível geral, quais foram os pontos críticos.
Considerei bastante positiva, digo a você com emoção porque o Censat completa 30 anos e tem uma trajetória importantíssima na Colômbia. Sobre temáticas que foram abordadas, estiveram presentes a transição energética, a mudança climática, os conflitos socioambientais e as transformações das sociedades latino-americanas. Também foram discutidos tópicos sobre a soberania alimentar. Reencontramos muitos companheiros de vários países.
Pudemos compartilhar o que estava acontecendo em nossos países, como no Equador, Bolívia, Colômbia, Argentina, Chile, Venezuela, Brasil. Era um espaço de confluências, de experiências territoriais, de duras lutas sociais na Colômbia, por exemplo, onde sempre há muito violência. Mas também fiquei bastante contagiado pelas mobilizações em Bogotá, após percorrer as ruas da cidade e me pareceu fantástico e muito estimulante.
Em relação à sua apresentação nesse evento em Bogotá, é muito interessante a forma como você entende essa ideia de crise civilizacional, como uma crise que vai além do capitalismo e que é anterior à modernidade. Assume como referência o que foi abordado por Murray Bookchin, que com uma visão crítica transcende o delineado pelas esquerdas tradicionais, muito centradas na contradição capital-trabalho. Ao contrário, essa outra visão, muito mais profunda, talvez venha com um questionamento à revolução neolítica, com a agricultura, com as grandes civilizações sedentárias.
Sim, penso que aí está o centro do debate, que é importantíssimo, que tem várias veias. Por exemplo, no que diz respeito ao debate sobre o Antropoceno, em nossa visão, estamos em um momento particular do planeta Terra, o que não é apenas um problema do humano. Ou seja, chegamos a um ponto de inflexão sobre a vida no planeta. Estamos em um ponto de uma história de 4 milhões de anos, mas se o vemos do ponto de vista dos seres humanos, estamos em um ponto específico na história do Homo Sapiens, de cerca de 300.000 anos. Embora seja útil a crítica ao que chamo de Império dos combustíveis fósseis, isso ainda é algo muito recente na história.
Claro, a partir da revolução industrial, há 200 anos.
Sim, e também é preciso considerar a história da modernidade colonial, de cerca de cinco séculos, que também é fundamental, uma vez que implica outro ponto histórico de inflexão. Mas considero que é preciso voltar muito ao passado para entender a atual crise civilizacional, para poder desnaturalizar a construção de hierarquias e estruturas de poder.
Essa visão crítica mostra como se configura um padrão civilizatório dominante fundamentado em estruturas hierarquizadas, economias do excedente, organização social para a guerra, patriarcado e ressaltaria uma lógica de dominação da natureza. Mas, ao mesmo tempo, sempre houve alteridade, outras formas de organização que mostravam que essa evolução civilizatória não era a única que tinha que ocorrer, e que havia muitas outras lógicas e cosmovisões diferentes para construir a sociedade e estar na Terra.
Contudo, teorias fundamentais e praticamente todo o pensamento moderno dominante naturalizaram essa concepção civilizatória. Foram teorias que ontologizaram a ideia de que o ser humano é individualista, competitivo e uma máquina predatória da natureza. Além disso, coloca-se tudo no mesmo pacote, ao não observar que estamos falando de uma formação civilizatória específica, que emergiu em diferentes partes do mundo, mas que logo teve um formato global, com um epicentro desse processo histórico colonial na Europa, o que hoje chamamos de Ocidente.
Então, acredito que é importante desnaturalizar isso, pois nos permite pensar que como alternativa não será suficiente apenas desmantelar o capitalismo, mas, sim, devemos recuperar a ideia de que as sociedades também funcionam como os ecossistemas, de maneira cooperativa, em formas de interdependência. Que o humano não é ontologicamente predatório, como se ouve muito nesses tempos, com essa odiosa ideia de que nós, humanos, somos uma “praga” devoradora.
Ideia que inclusive ouvi até de grupos ambientalistas conservadores, que, por fim, possuem uma perigosa proposta de extinção ou ecofascista. E dizer também que o humano não é patriarcal por natureza, que as sociedades não têm razão para ser patriarcais. Digo tudo isso não para nos romantizar, mas, sim, questionar essas leituras verticais sobre o humano e, acima de tudo, para reivindicar nossa enorme diversidade cultural global e a complexidade que nos define.
Além disso, um olhar de transformação social tem que ser pós-capitalista, mas também precisamos nos repensar hoje como humanidade. Repensarmos nosso papel aqui na Terra, repensarmos nossa forma de estar nela, de estar com a Natureza. E não estou pensando em “voltar ao passado”, 7.000 ou 9.000 anos atrás, antes da chamada Revolução Neolítica, mas em como os humanos precisam procurar, hoje, neste preciso momento político, a forma de nos reinserirmos simbólica, espiritual e materialmente com os ritmos, os ciclos e as dinâmicas ecológicas da natureza.
John Bellamy Foster, por exemplo, falou da “ruptura metabólica”, e poderíamos dizer que a ruptura que ocorre nas relações natureza-humano também ocorre no âmbito cultural, espiritual e emocional. Esse processo de ruptura que é fundado com a emergência do padrão civilizatório é o que poderíamos chamar de “Verdadeira Grande Divergência”.
O que não tem a ver com a tese de Pomeranz, já que ele falava de uma “grande divergência” gerada com a decolagem imperial do Ocidente. Estou me referindo a uma espécie de divergência que começa a ocorrer nas construções holísticas dos seres humanos com a Natureza, e essa decolagem atinge um pico com a configuração do ego ocidental moderno. Isso é muito perceptível hoje, especialmente para os habitantes das cidades e aqueles que dedicam inúmeras horas do dia ao mundo virtual (redes sociais, internet, etc.), onde a experiência vital pode estar muito desligada material e simbolicamente dos ciclos da Natureza, da interação com seus ecossistemas vitais e, por outro lado, mais vinculada a produtos processados, tecnologias, infraestruturas, que geram uma tremenda perca de vínculo.
A esse respeito, você dizia naquele evento dos 30 anos do Censat Água Viva, que os binarismos esquerda/direita, neoliberalismo/progressismo, imperialismo/anti-imperialismo, não servem muito, não contribuem muito.
Não contribuem, permanecem profundamente dominantes, e o esquema binário não contribui, primeiro porque não explica a realidade. Nós precisamos de explicações que possam nos orientar para um caminho diferente, e o binarismo é fundamentalmente um discurso estratégico. É um discurso estratégico do poder para o poder. Este discurso coloca tudo no branco ou preto, gera explicações lineares. Mas, além disso, talvez a coisa mais importante, está totalmente em divergência com um projeto biodiverso ou de pluriculturalidade. A pluralidade é totalmente divergente com essa ideia binária que tem sido dominante, tanto no pensamento conservador, como no pensamento dominante de esquerda.
Até mesmo a representação do próprio gênero foi atravessada por uma construção binária dominante. Certamente, dá conta de algumas diferenças, mas merecemos um debate sobre a construção binária de gênero, para poder buscar transcendê-la. O gênero no binário não explica necessariamente toda uma diversidade de corporalidades, de composições dos corpos, de formas de sentir a vida, de formas de ser a partir do corpo. Tampouco ajuda a transcender uma visão branco/preto ou boa/ruim sobre as relações de dominação patriarcal, nem a abrir o caminho para novas e múltiplas masculinidades. Uma sociedade emancipada é uma sociedade que, na minha opinião, também transcenderá o binarismo de gênero.
Temos que nos repensarmos em uma ideia não binária. A esquerda dominante, por exemplo, também foi atravessada por uma ideia de que é necessário massificar, reunir massas e impulsionar uma revolução de cima. Ao passo que tudo o que tem sido diferente desse cânone, é criminalizado e até perseguido. São os casos de governos de esquerda que, ao replicar o padrão civilizatório, não possuem nenhuma viabilidade como projeto emancipatório, razão pela qual precisamos aprender a conviver e a pensar em uma possibilidade de transformação a partir da diversidade, caso contrário, não existe diálogo.
A respeito dos diferentes processos constituintes da América Latina, como são os casos venezuelano, boliviano e o equatoriano, geraram novos direitos, como Direitos da Natureza, Plurinacionalidade, mas, na prática e com o tempo, ficaram apenas no papel, já que aumentaram o extrativismo e a repressão. Como você avalia esses novos constitucionalismos? Como o Chile poderia encarar essas experiências, estando em um processo constituinte? O que poderia aprender e levar em consideração, para não reproduzir as mesmas lógicas autoritárias?
O tema é muito interessante, bastante amplo e complexo, poderia expor algumas ideias pontuais. A primeira coisa é que penso esses processos constituintes como um ponto de inflexão das lutas populares que atingem tal nível de correlação de forças positivas e tal nível de posicionamento de suas demandas reivindicativas, que força o status quo a reformular o marco político e jurídico. Não apenas a nível formal, mas também o marco geral de produção e representação da política, de fato falando. Por isso, acredito que a constituinte não pode ser apenas lida ou entendida como o processo prévio à transformação do marco jurídico, é muito mais do que isso.
Dar centralidade a aspectos legais e formais costuma invisibilizar essas lutas e processos sociais constitutivos desse momento político particular. No caso do chamado período progressista, as novas constituições que surgiram em fins dos anos 1990 (Venezuela) e na década passada foram precedidas de grandes explosões sociais e de grandes mobilizações populares, mas os presidentes varões do progressismo surgiam como os criadores daqueles processos constituintes, o que na realidade supôs a apropriação de narrativas e ideias que nasceram nas bases e nas organizações sociais.
Outro fator é que sabemos que, mudada a Constituição, isso não garante que o que está escrito acabe se materializando. Pensemos na Constituição venezuelana, equatoriana ou boliviana, para citar exemplos. Alguns podem interpretar a promulgação de uma nova Constituição como uma conquista final ou a culminação bem-sucedida de um processo de mobilização social, mas acredito que, embora pareça o surgimento de um novo contrato social, o dito aí continua sendo um campo em disputa. Apenas inaugura outro momento das lutas políticas nesse país.
Parece-me que isso nos coloca permanentemente em um paradoxo como sociedade mobilizada, que então é a consecução de um novo marco jurídico, que pode se tornar uma conquista e, paradoxalmente, um elemento desmobilizador, porque parece que algo importante foi alcançado, que no caso chileno, certamente, sim, mas que em termos de poder acabar transferindo algo que se configurou como demanda popular, uma demanda territorial, nas ruas, nos campos, nos territórios indígenas e que, finalmente, acaba se traduzindo em um conjunto de leis fundamentais.
Pensemos no caso venezuelano, na Constituição e o conjunto de leis que foram se oficializando no papel, que refletiam muitas dessas demandas sociais anteriores. Refletiam inclusive, em alguns sentidos, propostas muito radicais para a gestão da água, gestão do território, inclusão cultural, participação política. Mas um processo que foi muito rico e poderoso a partir de baixo, parece-me que foi se canalizando para a burocratização, o normativismo, o centralismo tanto no Estado como na liderança de Chávez, e foi desativando e bloqueando essa potencialidade e efervescência para mudar tudo.
Gramsci chama esse tipo de processo de “estadolatria”, um ponto no qual alcançado o controle do Estado por parte de representantes da classe popular, gera-se uma espécie de sentimento, de efervescência da confiança no Estado, como uma nova fé política que se dirige a ele. Eu acredito que nesse ponto particular, nesses momentos iniciais, decidir o rumo de muitos desses processos e a forma como se lida a partir das bases e das organizações sociais é determinante. Isto que digo não implica outro binarismo, entre o abandono total do espaço do Estado ou ir de cheio com ele, mas, sim, em destacar a importância de manter o comum, as demandas territoriais, as demandas locais, as agendas particulares, no centro da política, sem que isso signifique um localismo, mas, sim, que se projete para diversas escalas. Essa espécie de estadolatria que foi gerada na Venezuela, e em diversos graus no Equador e na Bolívia, e não sabemos se algo assim poderá acontecer no Chile. A ideia é que não acabe absorvendo o potencial insurgente e transformador das mobilizações, nem acabe finalmente transformando tudo para não mudar nada.
São esses tipos de pontos que teríamos que avaliar no campo dos progressismos. Avaliar o que diz respeito às transformações nas políticas de inclusão popular, de uma distribuição de renda mais favorável às classes populares em um determinado período, mas também de um extrativismo que não só não foi tocado, mas também se aprofundou. De fato, fronteiras que o neoliberalismo não havia alcançado, os progressismos alcançaram. Comunidades que não puderam ser derrotadas pelo neoliberalismo, o progressismo as derrotou ou fragilizou.
Por exemplo, foi Chávez quem acabou abrindo o processo de expansão da mineração na Reserva Florestal de Imataca, com o Decreto 3.110, de 2004, coisa que Caldera não tinha conseguido concretizar, nos anos 1990, devido às resistências sociais. Depois surgiria a monstruosidade do projeto Arco Mineiro do Orinoco, em 2011. Foi no Governo de Evo Morales que várias organizações de base foram cooptadas e enfraquecidas, enquanto ocorria uma extraordinária expansão da fronteira do agronegócio sojeiro.
Então, essas experiências prévias nos convidam a uma reflexão honesta e sincera, principalmente para evitar que acabe se reconfigurando um novo recentramento na política no Estado, que é o que penso que deveríamos transcender.
O que acontece no caso da Venezuela, com a questão das comunas, especificamente? O que aconteceu com as comunas na Venezuela?
Diferente de outros países latino-americanos, na Venezuela, a organização social do tipo comunal foi menos numerosa e ampla. A tradição de construção política na Venezuela tem sido muito determinada pelo Estado e as receitas do petróleo. Antes do processo bolivariano, existiam algumas experiências desse tipo, mas não eram muito numerosas. Poderíamos mencionar a tradição cooperativista no oeste do país, associações de bairro ou a organização comunal própria dos povos indígenas do país. Com a virada política que ocorre no processo bolivariano, houve uma radicalização, inicialmente discursiva, em torno do Socialismo do Século XXI, e se delineou essa ideia das comunas, mas que estariam amparadas em torno do estado petroleiro chavista.
Era assim que o Petro-Estado ‘socialista’ as legalizava, financiava, promovia, formava e patrocinava. O que acabou acontecendo é que, antes que germinasse as sementes do empoderamento popular e do desenvolvimento da autogestão territorial, o comunal foi se formatando em torno dos delineamentos burocráticas do Estado. Isso não quer dizer que não houve tensões e disputas entre essas lógicas de controle de cima e os genuínos impulsos de comunalização que existiram em parte das bases populares do chavismo. Sim, houve. Mas nesses processos de tensão e disputa, a correlação de forças foi absolutamente favorável à construção de uma espécie de Estado corporativo, que alcançou maior nível de penetração na formação das comunas e um claro processo de instrumentalização delas, enquanto uso eleitoral e político.
Algumas experiências pontuais, poucas, mas que me parecem muito valiosas, foram formadas de maneira mais autogestionada, mais autônoma. Poderíamos dizer, como saldo positivo, que essas experiências foram criadas no calor do processo bolivariano e acabaram se tornando independentes, mas são muito poucas. É o caso em Lara, onde existe uma comuna chamada El Maizal, que tem uma afiliação com o governo, mas desenvolveu uma base produtiva autogestionada muito interessante, ao mesmo tempo em que supôs um desafio, em muitos sentidos, ao governo no território, e vale lembrar o lançamento de sua própria candidatura no município onde estão, não sendo reconhecida pelo governo de Maduro.
Gostaria de mencionar mais uma coisa. No calor dos debates que ocorreram dentro dos movimentos comunais no país, havia praticamente um consenso de que o horizonte de união e articulação das comunas era o chamado “Estado comunal”. Consta-me que chegou a ser problematizado, mas me parece que isso não foi abordado como um paradoxo fundamental, já que, na realidade, a comuna e o Petro-Estado extrativista lideraram, na realidade, dois projetos absolutamente divergentes. O que me parece que se falou muito menos é que a expansão das comunas tinha que entrar, necessariamente, em uma disputa inicialmente cultural e posteriormente política com o Estado (e isso passava por disputar com o Governo). Ao final, as tensões entre esses dois projetos foram se agravando e precisamos dizer que essa disputa foi muito melhor administrada pelo Estado, razão pela qual muitas comunas foram evaporando, parando ou se degradando. Parece-me que, a partir daí, não se gerou um desafio a essa visão e lógica estadocêntrica, não houve um salto qualitativo que potencializasse uma visão centrada no comum e na autonomia, que foi se enfraquecendo.
Continuando nessa crítica a essa visão estadocêntrica, parece-me que também continua presente em boa parte da intelectualidade de esquerda na América Latina, em detrimento a visões alternativas que foram questionadas por evidenciar essas lógicas binárias que você apresenta. São alguns os casos de Maristella Svampa, Edgardo Lander, Alberto Acosta e Raúl Zibechi. Por exemplo, em relação ao golpe de estado na Bolívia, chamou-me muito a atenção as críticas realizadas por esses setores estadocêntricos a pessoas como Rita Segato, Silvia Rivera Cusicanqui, María Galindo, Raquel Gutiérrez Aguilar, Luis Tapia, Pablo Solón, por questionarem práticas autoritárias e patriarcais dos governos progressistas. Como você vê essa intelectualidade, talvez representada por intelectuais orgânicos como Atilio Borón, que, com sua análise, parece quase um porta-voz dos governos progressistas da região. O mesmo acontece com Álvaro García Linera e, inclusive, com Ramón Grosfoguel, que é um pensador decolonial, mas, apesar disso, tem uma visão bastante stalinista, autoritária e muito machista.
Sim, embora eu não falaria em intelectualidade, trataria, ao contrário, de falar de toda uma tradição dominante na esquerda. Talvez o ponto crítico a ser mencionado seja sua recusa em repensar esses cânones dominantes historicamente, apesar de já termos sobre os nossos ombros não poucas derrotas, e de a esquerda estar vivendo uma encruzilhada que agora é existencial. Mas, para alguns, parece que a responsabilidade sempre será dos outros, assim, sempre é necessário olhar para o outro lado. Eu acredito que essa tradição política dominante tem alguns traços de crença religiosa no Estado, assim como existe uma crença religiosa dos liberais no mercado, algo inquestionável.
Parece-me que, na realidade, essa esquerda tem pouca fé no agenciamento social, na criação popular. Está absolutamente ancorada à chave nacional-estatal, e a visão territorial lhe parece insignificante, ou coisa pequena. Os dramas que ocorrem concretamente, nos territórios, nos bairros populares, parecem secundários porque o primordial é a consecução e a manutenção do poder do Estado. Na realidade, invertem a relação entre os meios e os fins. Por isso, os impactos que sofrem aqueles que esta esquerda considera marginal e secundário são assumidos como danos colaterais. Na realidade, parece-me que sua política no fundo é muito pessimista e conservadora, o que se traduziu em propor uma política que fecha as possibilidades a partir de baixo.
Um dos fatores que está no centro é o próprio problema da colonialidade. A esquerda dominante não só teve atitudes abertamente patriarcais e de lógicas autoritárias, como também altamente coloniais, apesar de alguns se fazer chamar de decoloniais, defendem ao extremo um Governo repressor, entreguista e espoliador como o de Nicolás Maduro. Não é possível ser decolonial dando carta branca ao colonialismo interno, isso não pode ser, não faz sentido algum. Também não é possível ser decolonial com um império e com os outros não, porque, se assim for, a crítica não é transversal, a crítica não vai ao pilar do problema histórico-civilizatório.
De nada adianta, para dar um exemplo de algo que está acontecendo justamente agora na Venezuela, que a Chevron não esteja mais no consórcio que explorava carvão na Serra de Perijá, para que agora venha a empresa russa Vostok Coal para executar a expansão de novas minas, degradando os territórios yukpa, wayuu e barí, a bacia do rio Socuy e as reservas de água de Zulia. Tudo isso é colonialismo russo, pelas mãos agora de empresas militares do Estado venezuelano.
A Venezuela é um exemplo emblemático de como foram replicados todos os padrões coloniais, tanto da estrutura extrativista, da neodependência colonial que temos, até os elementos da cultura do consumo, mas agora em nome do Socialismo e pelas mãos da China e Rússia. Porque se nós criticamos por décadas a cultura do America Way of Life, baseada em telefones, aparelhos de ar condicionado e carros, etc.; se criticamos a prostração da dívida externa e a dependência dos Estados Unidos e se tudo isso se mantém e apenas se torna chinês, não deixa de ser a outra cara do mesmo colonialismo. Que, além disso, evidentemente gera agressão cultural contra os territórios, já que busca novos recursos e atravessa novas fronteiras. Então, alguns decoloniais deveriam muito mais ser chamados de ‘anti-Monroe’, já que criticam apenas o império dos Estados Unidos, ao deixar de lado outras formas de imperialismo e colonialismo.
Por último, parece-me também que essa esquerda dominante teve uma visão muito antropocêntrica, que vê a reivindicação ecológica como um tema infantil, como um tema que deveria ser abordado posteriormente. Penso que, ao contrário, o que deveria ser ressaltado é que o capital coloniza não apenas os seres humanos, o trabalho, mas a vida em geral. Ou seja, cria uma nova configuração do espaço geográfico, modela ecossistemas. Não apenas despoja comunidades, mas simultaneamente captura recursos, configura metabolismos sociais, gera desigualdade social, atingindo uma colonização sobre os corpos humanos e sobre a Natureza, simultaneamente.
Então, nossa tarefa é procurar abrir espaços alternativos de pensamento que tentem abrir brechas de possibilidade a algo diferente do que estamos vivendo na América Latina. Acredito que, com certa soberba, esses setores da esquerda dominante criminalizaram e demonizaram a crítica, bloqueando outras possibilidades de ação política. As propostas que delineamos, assim como muitas outras, também são éticas. Porque simplesmente não vale tudo para levar adiante e manter uma “Revolução”.
Não se pode falar de um projeto emancipatório ou progressista e virar as costas aos dramas sociais que estão acontecendo por estruturas de poder concretas em governos desse tipo. E por concretas me refiro a coisas como o deslocamento e perseguição de comunidades para a imposição de projetos, o racismo policial, a perseguição de sindicatos, a preferência ao pagamento da dívida externa e seus serviços, antes que à importação de alimentos ou remédios, para citar exemplos. Não podemos ser indiferentes a isso só porque pensamos que a fonte do problema é apenas o império americano.
Com tudo isso que menciono, não pretendo propor uma visão maniqueísta, de uma esquerda boa esquerda e uma esquerda má. Ao contrário, na realidade, há muitas coisas para discutir crítica e autocriticamente, e temos que as discutir. Mas precisamos discutir tudo, repensarmos os próprios pilares de um projeto de transformação radical, deslocar os dogmatismos, abrir outras janelas de possibilidades e, sobretudo, parar a criminalização e perseguição do pensamento dissidente, que evidencia muito mais algumas lógicas policiais e inquisitivas que, na verdade, me parecem muito deprimentes.
Para terminar, no que diz respeito a alternativas, como você está vendo processos como a agroecologia, o decrescimento, o bem viver, ecoaldeias, economias ecológicas, economias feministas, economias comunitárias e muitas outras experiências.
Bom, essa é outra questão também bastante ampla e complexa, já que possui muitas arestas. Acredito, para iniciar, antes de considerar algo concreto, que as alternativas precisam ser pensadas sob uma visão de múltiplas escalas. Ou seja, reivindicamos a centralidade do comum na política, essa é uma aposta que temos. Com isso, não significa que a política deva ser pensada a partir de uma escala local, mas também e simultaneamente a partir de âmbitos mais amplos, como é a escala das bacias hidrográficas, biorregiões, em níveis nacional-estadual, regional-continental e global.
O outro ponto é justamente reconhecer que as alternativas estão navegando em um sistema hipercomplexo, de alta instabilidade, com tendência ao caos. Ou seja, não podemos, como fez a esquerda tradicional, sentarmos sozinhos para fazer um macroprojeto nacional, pensando, além disso, que este irá discorrer de maneira linear até chegar ao comunismo sonhado, de maneira etapista. Estamos, ao contrário, diante de um tempo muito instável e volátil, que também está se apresentando a nós em um cenário muito complicado para a própria reprodução da vida. Parece-me que isso temos que assumir como o tempo que nos toca viver. Sendo assim poderíamos continuar sonhando com a ideia de uma transformação emancipadora, mas também precisamos assumir a construção de comunidades e sociedades resilientes, dadas as possibilidades de altas perturbações sociais, políticas e ecológicas que poderão se desenvolver ou que já estão se desenvolvendo no planeta.
Dito isto, eu acredito que uma transição socioecológica, se é que podemos chamar assim, parte precisamente da possibilidade da autodeterminação dos povos em seus territórios e de uma organização da vida em torno de outros metabolismos, de outras formas de viver, pela defesa da vida, das lógicas cooperativas e solidárias, que ultrapassem o Estado. Isso implica que, para além de uma transformação da política, temos que territorializar essas mudanças. A opção emancipatória deve ser expressa em novas territorialidades, em transformações radicais dos usos da terra, da gestão social da mesma, dos sentidos de comunidade entre humanos e não humanos, do respeito pelas dinâmicas e ciclos específicos dos ecossistemas, mas também de uma reconsideração do planeta Terra como a casa comum de todos. Sem essa reformulação territorial, a opção emancipatória não terá materialidade.
Nesse mesmo sentido, também é necessário repensar a cidade, pois hoje é inviável. As grandes cidades estão devorando de uma maneira brutalmente acelerada os recursos e os bens de consumo provenientes do setor secundário. Há, então, além da mobilização social que pressione por mudanças, uma série de políticas “de cima” que também são fundamentais, porque são determinantes para a transformação dos usos das terras, que não privilegie a expansão da fronteira extrativista e procure uma progressiva substituição desse extrativismo por outros tipos de economias orientadas para a vida, podendo se abrir a opções como o ecoturismo e as vinculadas à agricultura sustentável para a soberania alimentar dos povos.
O lema do combate à pobreza, que é uma reivindicação central, foi utilizado para justificar inúmeras políticas, entre elas, a expansão dos empreendimentos extrativistas. Daí a ideia de que ‘temos’ que destruir uma floresta ou que vamos abrir uma mina a céu aberto de cobre, porque precisamos da renda para o Estado, para construir escolas e hospitais. É um argumento muito repetido que coloca o foco na resolução desse problema na expansão e crescimento de empreendimentos extrativos, e não no problema da distribuição das rendas e riquezas existentes. E isso porque, antes de sacar mais da natureza, teríamos que revisar quem são os que concentram mais riqueza e por qual razão, para onde vão os fundos públicos, como a propriedade da terra e a gestão territorial são distribuídas, etc.
O que aconteceria se, por exemplo, em vez de abrir novas plantações florestais, novas minas de cobre, novas minas de ouro, novos campos de petróleo, toda a arquitetura tributária do país fosse reformulada e se tributasse principalmente os setores mais ricos? O que aconteceria, como chegou a ocorrer no Equador, se, em vez de abrir a exploração de petróleo em Yasuní, na Amazônia equatoriana, houvesse um aumento de 1,4% no imposto para as 300 famílias mais ricas do Equador? Aconteceria que seria possível obter a mesma quantidade de divisas de 25 anos de exploração no Yasuní. O que aconteceria se houvesse um aumento de impostos para as 300 famílias mais ricas do Chile, e como isso poderia deter o avanço do extrativismo?
Existem muitos debates a serem feitos sobre o tema das transições e das alternativas. Eu dou outro exemplo enérgico. Há anos, querem abrir novas minas de carvão na Venezuela, e a desculpa do governo é que será para resolver o problema elétrico no estado de Zulia, através da instalação de usinas termelétricas, com capital chinês, russo e turco. Ao mesmo tempo, muito perto de Zulia, onde seria realizada essa exploração, foi construído um parque eólico, que tem um potencial de geração de mais de 2000 megawatts, que poderia alimentar esse estado e uma parte da área noroeste, que é uma zona semiárida e com altíssima potência eólica e solar.
Se você for fazer um inventário de alternativas por país na América Latina, obterá muitos exemplos como estes. No campo do uso da terra, por exemplo, no campo da substituição de rendas, de possibilidades de pensar em outras formas de ingressos para o país, e assim por diante. Evidentemente, essa transição não pode ser de um dia para outro, porque as pessoas podem morrer de fome, mas deveria ser considerado o impacto que a exploração de coltan pode ter na Venezuela, por exemplo, e decidir encerrar completamente um empreendimento como esse para dar possibilidade a projetos de ecoturismo, gerenciados por comunidades indígenas da região, sob suas próprias concepções culturais, com uma reivindicação da paisagística, deixando assim de assediar as economias locais.
Se os estados continuarem promovendo produtos importados, continuarão minando as economias locais tradicionais e continuarão promovendo a migração para as cidades, sendo assim continuarão tornando insustentáveis os modelos latino-americanos.
Há muitas coisas para serem pensadas, mas a conclusão a que se deve chegar é que existem propostas em todos os âmbitos que é possível imaginar. O problema é poder assumir isso com a população e que possa ser considerado uma possibilidade, portanto, tornar-se uma demanda geral. A ideia é poder posicionar essa possibilidade de pensar que é possível essas outras alternativas, por parte de comunidades, territórios e organizações, que já estão no presente. E evidenciar que essas formas diferentes de ser e estar na Terra existem. Faltou-nos mais astúcia para torná-las mais visíveis. Essa transformação precisa nos entusiasmar muito mais.
Obrigado pela entrevista Emiliano.
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Crise civilizatória e processos constituintes na América Latina. Entrevista com Emiliano Terán Mantovani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU