"Diante do risco de catástrofe climática, tornou-se crucial pensar saídas. Implica resgatar justiça social do marxismo e anarquismo, mas articulá-la a nova relação com a natureza e a mudança nos modos de produzir, consumir e decidir", escreve Michael Löwy, em artigo publicado por Socialist Register e reproduzido por Outras Palavras [1], 09-08-2019. A tradução é de Sofia Boito.
Michael Löwy é brasileiro, radicado na França. Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo - USP, possui doutorado na Sorbonne. Em Paris, trabalha como diretor de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique - CNRS; também já dirigiu um seminário na École des Hautes Études en Sciences Sociales.
Entre outras, é autor de Centelhas - marxismo e revolução no século XXI, escrito com Daniel Bensaïd (São Paulo: Boitempo, 2014), Afinidades revolucionárias (São Paulo: Unesp, 2016), A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano (São Paulo: Boitempo, 2014) e O que é o cristianismo da Libertação (São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2017).
Se for impossível aplicar reformas no capitalismo
a fim de colocar os benefícios a serviço
da sobrevivência humana, que outra alternativa
existe senão optar por um gênero de economia
planificada no nível nacional e internacional?
Problemas como a mudança climática necessitam
da “mão visível” do planejamento direto (…).
No seio do capitalismo nossos dirigentes
corporativistas não podem de maneira alguma
evitar, sistematicamente, tomadas de decisão
sobre o meio ambiente e a economia que são
errôneas, irracionais e, finalmente, suicidas
em nível mundial dada a tecnologia que eles têm
à sua disposição. Então, que outra escolha
nós temos senão vislumbrar
uma verdadeira alternativa ecossocialista?
Richard Smith [2]
O ecossocialismo tem como objetivo fornecer uma alternativa de civilização radical àquilo que Marx chamava de “o progresso destrutivo” do capitalismo [3]. É uma escolha que propõe uma política econômica visando às necessidades sociais e ao equilíbrio ecológico e, portanto, fundada em critérios não-monetários e extra-econômicos. Os argumentos essenciais que o sustentam têm suas origens no movimento ecológico, assim como na crítica marxista à economia política. Essa síntese dialética – vislumbrada por um grande espectro de autores, de André Gorz a Elmar Altvater, James O’Connor, Joel Kovel e John Bellamy Foster – é ao mesmo tempo uma crítica à “ecologia de mercado” que se adapta ao sistema capitalista, e ao “socialismo produtivista” que fica indiferente à questão dos limites da natureza.
Segundo O’Connor, a meta do socialismo ecológico é uma nova sociedade fundada na racionalidade ecológica, no controle democrático, na igualdade social e na supremacia do valor de uso sobre o valor de troca [4]. Eu adicionaria as condições seguintes a fim de alcançar esses objetivos: a) a propriedade coletiva dos meios de produção (o termo “coletivo” aqui significa propriedade pública, comunitária ou cooperativa), b) um planejamento democrático que possa permitir à sociedade a possibilidade de definir seus objetivos no que concerne ao investimento e à produção e c) uma nova estrutura tecnológica das forças produtivas. Colocando de outra forma, uma transformação revolucionária em nível social e econômico [5].
Segundo os ecossocialistas, o problema das principais correntes da ecologia política, cujos representantes são os partidos verdes, é que elas não parecem levar em consideração a contradição intrínseca que existe entre a dinâmica capitalista – fundada sobre a expansão ilimitada do capital e a acumulação dos lucros – e a preservação do meio ambiente. O resultado disso é uma crítica ao produtivismo, muitas vezes pertinente, mas que não vai muito além das reformas ecológicas derivadas da “economia de mercado”. Consequentemente, os governos de centro-esquerda privilegiam as políticas socioliberais e se justificam, em matéria de ecologia, graças aos partidos verdes [6].
Por outro lado, o problema das tendências dominantes da esquerda durante o século XX – a social-democracia e o movimento comunista de inspiração soviética – é que elas aceitavam o modelo de produção existente. Enquanto a primeira se limitava a uma versão reformada – no melhor do caso keynesiano – do sistema capitalista, o segundo desenvolvia uma forma de produtivismo autoritária e coletivista – ou capitalismo de Estado. Nos dois casos os investimentos ambientais eram negligenciados ou, no mínimo, marginalizados.
Marx e Engels, eles próprios, tinham consciência das consequências destrutivas do modo de produção capitalista sobre o meio-ambiente, como indicam diversos trechos do Capital [7]. E ainda estimavam que o objetivo do socialismo não era produzir cada vez mais bens, mas sim dar aos seres humanos o tempo livre para que pudessem desenvolver plenamente seu potencial. Nesse sentido, pouco compartilham da ideia de “produtivismo”, isto é, da ideia de que a expansão ilimitada da produção é um fim em si mesma.
No entanto, alguns de seus escritos, nos quais a questão consiste na capacidade do socialismo permitir o desenvolvimento das forças produtivas para além dos limites impostos pelo sistema capitalista, sugerem que a transformação socialista não concerne apenas às relações capitalistas de produção, as quais teriam se tornado um obstáculo (o termo empregado mais frequentemente é “amarras”) ao livre desenvolvimento das forças produtivas. “Socialismo” queria dizer, sobretudo, apropriação social dessas capacidades produtivas, colocando-as a serviço dos trabalhadores. Eis aqui, por exemplo, uma passagem do Anti-Dühring de Friedrich Engels, um texto “canônico” para um grande número de gerações marxistas: sob o regime socialista “a sociedade toma posse abertamente e sem rodeios das forças produtivas que se tornaram grandes demais” no sistema existente [8].
O caso da União Soviética ilustra os problemas que decorrem de uma apropriação coletivista do aparelho produtivo capitalista. A tese da socialização das forças produtivas existentes predominou desde o começo. Certamente, o movimento ecológico pôde se desenvolver durante os primeiros anos que se sucederam à Revolução socialista de Outubro e o governo soviético adotou algumas medidas limitadas de proteção ambiental, mas com o processo de burocratização stalinista a aplicação dos métodos produtivistas, tanto na agricultura quanto na indústria, foi imposta por meios totalitários, enquanto os ecologistas eram marginalizados ou eliminados. A catástrofe de Chernobyl é o exemplo final das consequências desastrosas da imitação das tecnologias ocidentais de produção. Se a mudança das formas de propriedade não for seguida por uma gestão democrática e uma reorganização ecológica do sistema de produção, tudo isso levará a um impasse.
Nos escritos de alguns dissidentes marxistas dos anos 1930, tais como Walter Benjamin, já aparecia uma crítica à ideologia produtivista do “progresso” assim como à ideia de uma exploração “socialista” da natureza. Todavia, é sobretudo ao longo dos últimos decênios que o ecossocialismo propriamente dito se desenvolveu como desafio à tese de neutralidade de forças produtivas que tinha predominado no seio das principais tendências da esquerda durante o século XX.
Os ecossocialistas deviam se inspirar nas observações feitas por Marx a respeito da Comuna de Paris: os trabalhadores não podem tomar posse do aparelho capitalista de Estado e colocá-lo a seu serviço. Eles devem demoli-lo e substituí-lo por uma forma de poder político radicalmente diferente, democrático e não estático. A mesma ideia se aplica, mutatis mutandis, ao aparelho produtivo, que longe de ser “neutro”, traz na sua estrutura a marca de um desenvolvimento que favorece a acumulação de capital e a expansão ilimitada do mercado. O que o coloca em contradição com a necessidade de proteger o meio ambiente e a saúde da população. É por isso que nós devemos levar a cabo uma “revolução” do aparelho produtivo no panorama de um processo de transformação radical.
O grande valor dos avanços científicos e tecnológicos da era moderna é incontestável, mas o sistema produtivo deve ser transformado no seu conjunto e isso só é possível graças a procedimentos ecossocialistas, isto é, graças à criação de um planejamento democrático da economia que leva em conta a preservação dos equilíbrios ecológicos. O que pode desencadear a supressão de alguns ramos de produção como as centrais nucleares, algumas técnicas de pesca intensiva e industrial (responsáveis pela quase extinção de numerosas espécies marinhas), o desmatamento das áreas de floresta tropical, etc. A lista é muito longa. Entretanto, a prioridade continua sendo a revolução do sistema energético que devia conduzir à substituição das fontes atuais (sobretudo a energia fóssil), responsáveis pela mudança climática e pelo envenenamento do meio ambiente, por fontes energéticas renováveis: a água, o vento, o sol. A questão da energia é capital já que a energia fóssil é responsável pela maior parte da poluição do planeta e pelo desastre que representa o aquecimento global. A energia nuclear é uma falsa alternativa, não somente em razão do risco de novos Chernobyl, mas também porque ninguém sabe o que fazer com os milhares de toneladas de resíduos radioativos – e com uma grande quantidade de centrais poluídas que se tornaram inúteis. Negligenciada desde sempre pelas sociedades capitalistas (pela sua falta de “rentabilidade” ou de “competitividade”), a energia solar deve se tornar objeto de pesquisas e de desenvolvimento de ponta. Ela deve ter um papel central na construção de um sistema energético alternativo.
A condição necessária para alcançar esses objetivos é o pleno emprego equitativo. Essa condição é indispensável não somente para responder às exigências da justiça social, mas também para assegurar o apoio da classe operária, sem o qual o processo de transformação estrutural das forças produtivas não pode ser efetuado. O controle público dos meios de produção e um planejamento democrático são igualmente indispensáveis, isto é, decisões de ordem pública referentes ao investimento e à mudança tecnológica devem ser retiradas das mãos dos bancos e das empresas capitalistas, se quisermos que elas sirvam ao bem comum da sociedade.
No entanto, não basta colocar as decisões nas mãos dos trabalhadores. No Capital, livro III, Marx define o socialismo como uma sociedade na qual “os produtores associados regulam racionalmente suas trocas (Stoffwechsel)com a natureza.” Entretanto, no primeiro livro do Capital, nós nos deparamos com uma definição mais ampla: o socialismo é concebido como “uma associação de seres humanos (Menschen) livres que trabalham com meios comuns (gemeinschaftlichen) de produção” [9]. Trata-se de uma concepção muito mais apropriada: a produção e o consumo devem ser organizados racionalmente não somente pelos “produtores”, mas também pelos consumidores e, de fato, pelo conjunto da sociedade, seja a população produtiva ou “não produtiva”: estudantes, jovens, mulheres e homens que se dedicam aos trabalhos domésticos, aposentados, etc.
Nesse sentido, o conjunto da sociedade será livre para escolher democraticamente as linhas produtivas que serão privilegiadas e o nível de recursos que devem ser investidos na educação, na saúde ou na cultura. [10] Os próprios preços dos bens de consumo não responderiam mais à lei da oferta e da procura, mas seriam determinados o quanto possível segundo os critérios sociais, políticos e ecológicos. No início, somente impostos sobre certos produtos e subvenções para outros seriam aplicados, mas idealmente cada vez mais produtos e serviços seriam distribuídos gratuitamente segundo a vontade dos cidadãos.
Longe de ser “despótico” em si, o planejamento democrático é o exercício da liberdade de decisão do conjunto da sociedade. Um exercício necessário para se libertar de “leis econômicas” e de “jaulas de ferro” alienantes e reificadas no seio das estruturas capitalistas e burocráticas. O planejamento democrático associado à redução do tempo de trabalho seria um progresso considerável da humanidade em direção ao que Marx chamava de “o reino da liberdade”: o aumento do tempo livre é na realidade uma condição para a participação dos trabalhadores na discussão democrática e na gestão da economia, assim como da sociedade.
Os partidários do livre mercado fazem referência ao fracasso do planejamento soviético para justificar sua oposição categórica a toda forma econômica organizada. Sabemos, sem entrar numa discussão sobre as conquistas e fracassos do exemplo soviético, que se tratava evidentemente de uma forma de “ditadura sobre as necessidades”, para citar a expressão empregada por György Markus e seus colegas da Escola de Budapeste: um sistema não democrático e autoritário que dava o monopólio das decisões a uma oligarquia restrita de tecnoburocratas. Não foi a planejamento que levou à ditadura. Foi a limitação crescente da democracia no seio do Estado soviético e a instauração de um poder burocrático totalitário, depois da morte de Lênin, que deram lugar a um sistema de planejamento cada vez mais autoritário e não democrático. Se é verdade que o socialismo é definido pelo controle dos processos de produção pelos trabalhadores e a população em geral, a União Soviética sob Stalin e seus sucessores estava muito longe de corresponder a essa definição.
O fracasso da URSS ilustra os limites e as contradições de um planejamento burocrático cuja ineficácia e caráter arbitrário são flagrantes: não pode servir de argumento contra a aplicação de um planejamento realmente democrático [11]. A concepção socialista do planejamento não é nada mais que a democratização radical da economia: se é certo que as decisões políticas não devem caber a uma pequena elite de dirigentes, por que não aplicar o mesmo princípio às decisões de ordem econômica? A questão do equilíbrio entre os mecanismos do mercado e os do planejamento é sem dúvida um problema complexo: durante as primeiras fases da nova sociedade, os mercados ainda ocuparão, certamente, um lugar importante, mas à medida que progredir a transição para o socialismo o planejamento se tornará cada vez mais importante por ser oposto à lei do valor de troca [12].
Engels insistia no fato de que uma sociedade socialista “terá que adaptar o plano de produção aos meios de produção, dos quais fazem parte especialmente as forças de trabalho. No fim das contas serão os efeitos úteis de diversos objetos de uso, pesados entre eles e em relação à quantidade de trabalho necessária a sua produção que determinarão o plano” [13]. No sistema capitalista o valor de uso é apenas um meio – e frequentemente uma astúcia – subordinado ao valor de troca e à rentabilidade (isso explica porque há tantos produtos na nossa sociedade sem nenhuma utilidade). Na economia socialista planificada, a produção dos bens e dos serviços responde somente ao critério do valor de uso, o que leva a consequências no âmbito econômico, social e ecológico cuja amplitude é espetacular. Como Joel Kovel observou: “O fortalecimento do valor de uso e as reestruturações subsequentes das necessidades tornam-se o parâmetro social da tecnologia, em vez da transformação do tempo em mais-valia e em dinheiro” [14].
O gênero de sistema de planejamento democrático vislumbrado no presente ensaio concerne às principais escolhas econômicas e não à administração de restaurantes locais, mercearias, padarias, pequenas lojas, empresas artesanais ou de serviços. Da mesma forma é importante sublinhar que o planejamento não está em contradição com a autogestão dos trabalhadores nas suas unidades de produção. Já que a decisão de transformar, por exemplo, uma fábrica de carros em unidade de produção de ônibus, VLTs ou de vagões de trem caberia ao conjunto da sociedade, a organização e o funcionamento interno da fábrica seriam geridos democraticamente pelos próprios trabalhadores. Houve um grande debate sobre o caráter “centralizado” ou “descentralizado” do planejamento, mas o importante continua sendo o controle democrático do plano em todos os níveis, local, regional, nacional, continental – e, assim esperamos, planetário, já que os temas da ecologia, tal como o aquecimento global, são mundiais e só podem ser tratados nesse nível. Esta proposta poderia ser chamada de “planejamento democrático global”. E mesmo nesse nível, trata-se de um planejamento que se opõe àquilo que é frequentemente descrito como “planejamento central” porque as decisões econômicas e sociais não são tomadas por um “centro” qualquer, mas determinadas democraticamente pelas populações envolvidas.
É claro que haveria aí tensões e contradições entre os estabelecimentos autogeridos e as administrações democráticas locais e outros grupos sociais maiores. Os mecanismos de negociação podem ajudar a resolver numerosos conflitos desse gênero, mas em última análise caberia aos maiores grupos envolvidos, e somente se eles forem majoritários, exercerem seu direito de impor suas opiniões. Para dar um exemplo: uma fábrica autogerida decide descartar seus resíduos tóxicos em um rio. A população de toda uma região está ameaçada por essa poluição. Ela pode nesse momento, depois de um debate democrático, decidir que a produção dessa unidade deve ser suspensa até que uma solução satisfatória para controlar esses resíduos seja encontrada. Idealmente, em uma sociedade ecossocialista, os próprios trabalhadores da fábrica teriam consciência ecológica suficiente para evitar decisões perigosas para o meio ambiente e para a saúde da população local. No entanto, o fato de introduzir meios que garantam o poder de decisão da população para defender os interesses mais gerais, como no exemplo precedente, não significa que as questões referentes à gestão interna não sejam submetidas aos cidadãos no nível da fábrica, da escola, do bairro, do hospital ou da cidade.
O planejamento socialista deve ser fundado no debate democrático e pluralista, em cada nível de decisão. Organizados sob a forma de partidos, de plataformas ou de qualquer outro movimento político, os delegados dos organismos de planejamento são eleitos e as diversas propostas são apresentadas a todos aqueles a quem elas concernem. Dito de outra forma, a democracia representativa deve ser enriquecida – e melhorada – pela democracia direta que permite às pessoas escolher diretamente – em nível local, nacional e, por último, internacional – entre diferentes propostas. O conjunto da população se interrogaria então a respeito da gratuidade do transporte público, de um imposto especial pago pelos proprietários de carros para subvencionar o transporte público, da subvenção da energia solar a fim de torná-la competitiva em relação à energia fóssil, da redução da jornada de trabalho para 30 ou 25 horas semanais ou menos, mesmo que isso acarretasse uma redução da produção. Como Ernest Mandel disse: “Os governos, os partidos políticos, os conselhos de planejamento, os cientistas, os tecnocratas ou quem quer que seja podem fazer propostas, apresentar iniciativas e tentar influenciar as pessoas… No entanto, em um sistema multipartidário tais propostas nunca serão unânimes: as pessoas farão sua escolha entre as alternativas coerentes. Assim, o direito e o poder efetivo de tomar decisões deveriam estar nas mãos da maioria dos produtores/ consumidores/ cidadãos e de mais ninguém. Há algo de paternalista ou despótico nessa postura?” [15].
Uma questão se coloca: que garantia temos de que as pessoas farão as escolhas certas, as que protegem o meio ambiente, mesmo que o preço a pagar seja mudar uma parte de seus hábitos de consumo? Uma tal “garantia” não existe, somente a perspectiva razoável de que a racionalidade das decisões democráticas triunfará uma vez abolido o fetichismo dos bens de consumo. É certo que o povo cometerá erros fazendo más escolhas, mas os próprios experts não cometem erros? É impossível conceber a construção de uma nova sociedade sem que a maioria do povo tenha atingido uma grande consciência socialista e ecológica graças às suas lutas, à sua autoeducação e à sua experiência social. Então é razoável estimar que os erros graves – inclusive as decisões incompatíveis com as necessidades relacionadas ao meio ambiente – serão corrigidos [16]. Em todo caso, nós podemos nos perguntar se as alternativas – o mercado impiedoso, uma ditadura ecológica dos “experts” – não são muito mais perigosas que o processo democrático, com todos seus limites…
Certamente, para que o planejamento funcione, são necessários corpos executivos e técnicos que possam fazer funcionar as decisões, mas a autoridade deles seria limitada pelo controle permanente e democrático exercido pelos níveis inferiores, onde existe a autogestão dos trabalhadores no processo de administração democrática. Não podemos esperar, é claro, que a maioria da população empregue a integralidade de seu tempo livre na auto-gestão ou em reuniões participativas. Como Ernest Mandel observou: “A consequência da autogestão não é a supressão da delegação, mas uma combinação entre a tomada de decisão pelos cidadãos e um controle mais estrito dos delegados pelos seus eleitores respectivos” [17].
“A economia participativa” (ou parecon) concebida por Michael Albert foi objeto de debate no interior do movimento altermundista ou Global Justice Movement (o movimento pela justiça global). Apesar de suas sérias limitações, como a ignorância da ecologia ou a oposição entre “parecon” e “socialismo”, este último reduzido ao modelo burocrático e centralista da União Soviética, o “parecon” tem algumas características comuns com o gênero de planejamento ecossocialista proposto no presente documento: a oposição ao mercado capitalista e ao planejamento burocrático, a confiança na auto-organização dos trabalhadores e no antiautoritarismo. O modelo de planejamento participativo de Albert foi fundamentado sobre uma construção institucional complexa: “Os trabalhadores e os consumidores determinam juntos a produção, avaliando de forma aprofundada todas as consequências. As instâncias de assistência decisória anunciam em seguida os índices de preços para todos os produtos, os fatores de produção, dentre os quais estão a mão de obra e o capital fixo. Esses índices são calculados em função do ano precedente e das mudanças ocorridas. Os consumidores (indivíduos, conselhos, federação de conselhos) respondem com propostas, utilizando esses preços como avaliação realista do conjunto de recursos, do material, da mão de obra, dos efeitos indesejáveis (tais como a poluição) e dos benefícios sociais inerentes a cada bem ou serviço. Simultaneamente, os trabalhadores individualmente, assim como seus conselhos e federações, fazem suas próprias propostas, anunciando o que eles preveem produzir e os fatores de produção necessários, baseando-se, eles também, nos preços como estimativa de valor social da produção e dos custos que ela implica. Com base nas propostas tornadas públicas pelos trabalhadores e pelos consumidores, os conselhos decisores podem calcular os excessos de oferta ou de demanda para cada produto e revisar o índice de preços segundo um método que é objeto de um acordo social. É a vez de os conselhos revisarem, então, suas propostas […] Na medida em que nenhum agente tem mais influência do que outro no processo de planejamento, em que cada um avalia os custos e os benefícios sociais com um peso que corresponde a seu grau de implicação na produção e no consumo, esse processo gera simultaneamente equidade, eficácia e autogestão.” [18]
O principal problema dessa concepção – que, na verdade, não é “muito simples” como afirma Michael Albert, mas extremamente elaborada e por vezes bastante obscura – é que ela parece reduzir o “planejamento” a um gênero de negociação entre produtores e consumidores a respeito dos preços, dos recursos, dos produtos finais, da oferta e da demanda. Por exemplo, o conselho de trabalhadores de uma indústria de automóveis se reuniria com o conselho de consumidores para discutir os preços e adaptar a oferta à demanda. O que se omite aqui é justamente o tema principal do planejamento ecossocialista: a reorganização do sistema de transporte reduzindo radicalmente o lugar do veículo individual. Já que o ecossocialismo necessita da supressão total de alguns setores industriais – as centrais nucleares por exemplo – e o investimento maciço nos setores de tamanho reduzido ou quase inexistentes (como a energia solar), como tudo isso pode ser gerado por “negociações cooperativas” entre as unidades de produções existentes e os conselhos de consumidores a respeito dos “recursos” e dos “preços indicativos”?
O modelo de Albert remete às estruturas tecnológicas e produtivas atuais e ele é por demais “economicista” para levar em conta os interesses sociopolíticos e socioecológicos da população – os interesses dos indivíduos enquanto seres humanos e cidadãos, habitantes de um meio ambiente natural ameaçado, e que não podem ser reduzidos a seus interesses econômicos como produtores e consumidores. Na sua concepção, não somente o Estado como instituição é colocado de lado – o que é uma escolha respeitável – mas também a política como confrontação de diferentes escolhas, quer sejam de ordem econômica, social, política, ecológica, cultural e civilizacional em nível local, nacional e internacional.
Esse ponto é muito importante porque a passagem do “progresso destrutivo” do sistema capitalista ao socialismo é um processo histórico, uma transformação revolucionária e constante da sociedade, da cultura e das mentalidades – e a política no sentido mais amplo, tal como definida antes, está inegavelmente no coração desse processo. É importante precisar que uma tal evolução não pode nascer sem uma mudança revolucionária das estruturas sociais e políticas e sem o apoio ativo de uma grande maioria da população ao programa ecossocialista. A tomada de consciência socialista e ecológica é um processo cujos fatores decisivos são as lutas coletivas das populações que, a partir de confrontos parciais em nível local, progridem em direção à perspectiva de uma mudança radical da sociedade. Essa transição não conduziria somente a um novo modo de produção e a uma sociedade democrática e igualitária, mas também a um modo de vida alternativo, uma verdadeira civilização ecossocialista para além do império do dinheiro com seus hábitos de consumo artificialmente induzidos pela publicidade e sua produção ilimitada de bens inúteis e/ou prejudiciais ao ambiente.
Alguns ecologistas estimam que a única alternativa ao produtivismo é parar o crescimento no seu conjunto, ou substituí-lo por um crescimento negativo – chamado às vezes de “decrescimento”. Para fazer isso, é necessário reduzir drasticamente o nível excessivo de consumo da população e renunciar às casas individuais, ao aquecimento central e às máquinas de lavar, entre outros, para baixar o consumo de energia pela metade. Como essas medidas de austeridade draconiana e outras semelhantes correm o risco de ser muito impopulares, alguns advogados do decrescimento jogam com a ideia de um tipo de “ditadura ecológica” [19]. Contra pontos de vista tão pessimistas, alguns socialistas manifestam um otimismo que os leva a pensar que o progresso técnico e a utilização de fontes de energia renováveis permitirão um crescimento ilimitado e a prosperidade, de forma que cada um receba “segundo suas necessidades”.
Parece-me que essas duas escolas partilham de uma concepção puramente quantitativa do “crescimento” – positivo ou negativo – e do desenvolvimento das forças produtivas. Penso que existe uma terceira postura que me parece mais apropriada: uma verdadeira transformação qualitativa do desenvolvimento. Isso implica colocar um fim ao desperdício monstruoso de recursos provocado pelo capitalismo, o qual está fundado numa produção em grande escala de produtos inúteis e/ou danosos. A indústria de armamentos é um bom exemplo, assim como todos esses “produtos” fabricados no sistema capitalista – com obsolescência programada – que não têm outra utilidade que a de gerar lucro para as grandes empresas. A questão não é o “consumo excessivo” em abstrato, mas antes o tipo de consumo dominante cujas características principais são: a propriedade ostensiva, o desperdício maciço, a acumulação obsessiva de bens e a aquisição compulsiva de pseudo-novidades impostas pela “moda”. Uma nova sociedade orientaria a produção em direção à satisfação das necessidades autênticas, para começar por aquelas que poderíamos qualificar como “bíblicas” – água, comida, roupa e habitação – mas adicionando a elas os serviços essenciais: a saúde, a educação, a cultura e o transporte.
É evidente que os países onde essas necessidades estão longe de serem satisfeitas, isto é, os países do hemisfério sul, deverão “se desenvolver” muito mais – construir estradas de ferro, hospitais, esgotos e outras infraestruturas – que os países industrializados, mas isso deveria ser compatível com um sistema de produção fundado nas energias renováveis e, logo, não danosas ao meio ambiente. Esses países terão necessidade de produzir grandes quantidades de alimentos para suas populações já atingidas pela fome, mas – como sustentam há anos os movimentos camponeses organizados em nível internacional pela rede Via Campesina – trata-se de um objetivo bem mais fácil de alcançar por intermédio da agricultura biológica camponesa organizada em unidades familiares, cooperativas ou fazendas coletivas, do que pelos métodos destrutivos e antissociais da indústria do agronegócio, cujo princípio é a utilização intensiva de pesticidas, de substâncias químicas e de alimentos transgênicos. O odioso sistema atual da dívida e da exploração imperialista dos recursos do Sul pelos países capitalistas e industrializados daria lugar a um ímpeto de apoio técnico e econômico do Norte em direção ao Sul. Não haveria nenhuma necessidade – como parecem acreditar alguns ecologistas puritanos e ascéticos – de reduzir, em termos absolutos, o nível de vida das populações europeias ou norte-americanas. Seria necessário simplesmente que essas populações se livrassem de produtos inúteis, aqueles que não satisfazem nenhuma necessidade real e cujo consumo obsessivo é sustentado pelo sistema capitalista. Reduzindo seu consumo, elas redefiniriam a noção de nível de vida para dar lugar a um modo de vida que é na realidade mais rico.
Como distinguir as necessidades autênticas das necessidades artificiais, falsas ou simuladas? A indústria da publicidade – que exerce sua influência sobre as necessidades pela manipulação mental – penetrou todas as esferas da vida humana nas sociedades capitalistas modernas. Tudo é modelado segundo suas regras, não somente a alimentação e as roupas, mas também domínios tão diversos como o esporte, a cultura a religião e a política. A publicidade invadiu nossas ruas, nossas caixas de correio, nossas telas de televisão, nossos jornais e nossas paisagens de uma maneira insidiosa, permanente e agressiva.
Esse setor contribui diretamente para os hábitos de consumo ostensivo e compulsivo. E ainda desencadeia um desperdício fenomenal de petróleo, de eletricidade, de tempo de trabalho, de papel e de substâncias químicas, dentre outras matérias-primas – tudo pago pelos consumidores. Trata-se de um ramo de produção que não é somente inútil do ponto de vista humano, mas que está também em contradição com as necessidades sociais reais. Enquanto a publicidade é uma dimensão indispensável em uma economia de mercado capitalista, ela não teria espaço numa sociedade em transição para o socialismo. Ela seria substituída por informações sobre os produtos e serviços fornecidos pelas associações de consumidores. O critério, para distinguir uma necessidade autêntica de uma necessidade artificial, seria sua permanência depois da supressão da publicidade. Está claro que durante um certo tempo os antigos hábitos de consumo persistirão porque ninguém tem o direito de dizer às pessoas o que elas precisam. A mudança dos modelos de consumo é um processo histórico e um desafio educacional.
Alguns produtos, tais como o automóvel particular, levantam problemas mais complexos. Os automóveis particulares representam um prejuízo público. Na escala planetária eles matam ou mutilam centenas de milhares de pessoas a cada ano. Eles poluem o ar das grandes cidades – com consequências nefastas à saúde das crianças e das pessoas idosas – e contribuem consideravelmente para a mudança climática. Aliás, o automóvel particular satisfaz as necessidades reais nas condições atuais do capitalismo. Nas cidades europeias onde as autoridades se preocupam com o meio ambiente, experiências locais – aprovadas pela maioria da população – mostram que é possível limitar progressivamente o lugar do automóvel particular para privilegiar os ônibus e VLTs. Em um processo de transição ao ecossocialismo, o transporte público seria amplamente difundido e gratuito – tanto sobre a terra como sob a terra –, ao passo que as vias seriam protegidas para os pedestres e ciclistas.
Consequentemente, o automóvel individual teria um papel muito menos importante do que na sociedade burguesa onde se tornou um produto-fetiche promovido por uma publicidade insistente e agressiva. O automóvel é um símbolo de prestígio, um signo de identidade (nos Estados Unidos, a carteira de habilitação é a carteira de identidade reconhecida). O automóvel hoje está no coração da vida pessoal, social e erótica [20]. Nessa transição para uma nova sociedade, será mais fácil reduzir drasticamente o transporte rodoviário de mercadorias – responsável por acidentes trágicos e por níveis de poluição elevados – para substituí-lo pelo transporte ferroviário, ou o “ferroutage” [21]: apenas a lógica absurda da “competitividade” capitalista explica o desenvolvimento do transporte por caminhão.
A essas propostas os pessimistas responderão: sim, mas os indivíduos são motivados por aspirações e desejos infinitos que devem ser controlados, analisados, inibidos e mesmo reprimidos, se necessário. A democracia poderia então sofrer algumas restrições. Ora, o ecossocialismo está fundamentado sobre uma hipótese razoável, já sustentada por Marx: a predominância do “ser” sobre o “ter” em uma sociedade sem classes sociais nem alienação capitalista, isto é, a prioridade do tempo livre sobre o desejo de possuir inumeráveis objetos: a realização pessoal por meio de verdadeiras atividades culturais, esportivas, lúdicas, científicas, eróticas, artísticas e políticas. O fetichismo da mercadoria incita à compra compulsiva através da ideologia e da publicidade, próprias ao sistema capitalista. Nada prova que isso faz parte da “eterna natureza humana”. Como Ernest Mandel sublinhou: “A acumulação permanente de bens cada vez mais numerosos (cuja “utilidade marginal” está em baixa) não é de nenhuma forma um traço universal ou permanente do comportamento humano. Uma vez que as necessidades de base foram satisfeitas, as motivações principais evoluem: desenvolvimento de talentos e de propensões gratificantes por si mesmas, preservação da saúde e da vida, proteção das crianças, desenvolvimento de relações sociais enriquecedoras…” 22
Como foi abordado anteriormente, isso não significa, sobretudo durante o período de transição, que os conflitos seriam inexistentes – conflitos entre as necessidades de proteção ambiental e as necessidades sociais, entre as obrigações relacionadas à ecologia e a necessidade de desenvolver as infraestruturas de base, notoriamente nos países pobres, entre os hábitos populares de consumo e a falta de recursos. Uma sociedade sem classes sociais não é uma sociedade sem contradições nem conflitos. Esses últimos são inevitáveis, e o papel do planejamento democrático será, em uma perspectiva ecossocialista livre da pressão do capital e do lucro, resolvê-los graças a discussões abertas e pluralistas conduzindo a própria sociedade à tomada de decisões. Uma tal democracia, comum e participativa, é o único meio, não de evitar erros, mas de corrigi-los pela própria coletividade social.
Trata-se de uma utopia? No sentido etimológico – “alguma coisa que não existe em lugar nenhum” –, certamente. No entanto, as utopias, isto é, as visões de um mundo alternativo, as imagens ideais de uma sociedade diferente, não são uma característica necessária a todo movimento que visa a desafiar a ordem estabelecida? Como explica Daniel Singer no seu testamento literário e político, A qui appartient l’avenir? em um potente capítulo intitulado “Une utopie realiste”: “Se o establishement parecetão sólido apesar das circunstâncias, e se o movimento dos trabalhadores – ou a esquerda em geral – está tão débil e paralisado, é porque em nenhum lugar se apresenta um projeto alternativo radical […] A regra do jogo consiste em não colocar em questão nem os princípios de raciocínio nem os fundamentos da sociedade. Apenas uma alternativa global, rompendo essa resignação e essa capitulação poderá dar ao movimento de emancipação uma real envergadura”23.
A utopia socialista e ecológica é apenas uma possibilidade objetiva. Ela não é o resultado inevitável das contradições do capitalismo nem das “leis de ferro da história”. Só se pode prever o futuro sob forma condicional: a lógica capitalista levará a desastres ecológicos dramáticos, ameaçando a saúde e a vida de milhões de seres humanos e inclusive a sobrevivência da nossa espécie, se não assistirmos a uma mudança radical do paradigma civilizacional e a uma transformação ecossocialista.
Sonhar com um socialismo verde ou ainda, nas palavras de alguns, com um comunismo solar, e lutar por esse sonho, não quer dizer que não nos esforcemos para aplicar reformas concretas e urgentes. Se não devemos nutrir ilusões sobre um “capitalismo limpo”, devemos entretanto tentar ganhar tempo e impor aos poderes públicos algumas mudanças elementares: a proibição dos gases CFC que estão destruindo a camada de ozônio, uma moratória geral da produção de organismos geneticamente modificados, uma redução drástica da emissão de gases que causam o efeito estufa, uma regulamentação estrita da pesca industrial e da utilização de pesticidas como substâncias químicas na produção agroindustrial, uma taxa sobre os automóveis poluentes, um desenvolvimento muito maior do transporte público, a substituição progressiva de caminhões por trens. Trata-se de um progresso no âmbito da política, que permitiu, desde a manifestação de Seattle em 1999, a convergência de movimentos sociais e ecológicos em um combate comum contra o sistema. Essas reivindicações ecossociais urgentes podem conduzir a um processo de radicalização com a condição que elas não sejam adaptadas às exigências da “competitividade”. Segundo a lógica do que os marxistas chamam de “programa de transição”, cada pequena vitória, cada avanço parcial conduz a uma reivindicação mais importante, a um objetivo mais radical. Essas lutas em torno de questões concretas são importantes, não somente porque as vitórias parciais são úteis elas mesmas, mas também porque contribuem para uma tomada de consciência ecológica e socialista. Além disso, essas vitórias favorecem a atividade e a auto-organização a partir de baixo: são duas pré-condições necessárias e decisivas para alcançar uma transformação radical, isto é, revolucionária, do mundo.
As experiências no nível local, tais como as zonas sem automóveis em diversas cidades europeias, as cooperativas de agricultura orgânica lançadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil (MST), ou o orçamento participativo de Porto Alegre são exemplos limitados, mas não desinteressantes de uma mudança social e ecológica. Com suas assembleias locais que decidiam as prioridades do orçamento, Porto Alegre era talvez, apesar de seus limites e até a derrota da esquerda nas eleições municipais em 2002 o exemplo mais interessante de um “planejamento a partir de baixo” [24]. Devemos entretanto admitir que mesmo que alguns governos tenham adotado algumas medidas progressistas, as coalizões de centro-esquerda ou “vermelhos/verdes” na Europa e na América Latina foram decepcionantes porque ajustadas aos limites das políticas socioliberais de adaptação à globalização capitalista.
Não haverá transformação radical enquanto as forças engajadas em um programa radical socialista e ecológico não forem hegemônicas, no sentido em que o entendia Antonio Gramsci. Num certo sentido, o tempo é nosso aliado, porque nós trabalhamos para a única mudança capaz de resolver os problemas do meio ambiente, cuja situação apenas se agrava com ameaças – tais como a mudança climática – que estão cada vez mais próximas. Por outro lado, o tempo está contado, e em alguns anos – ninguém saberá dizer quantos – os estragos poderão ser irreversíveis. Não há razão para otimismo: o poder das elites atuais no comando do sistema é imenso e as forças de oposição radical são ainda modestas. No entanto, elas são a única esperança que temos para colocar um freio ao “progresso destrutivo” do capitalismo. Walter Benjamin propunha definir a revolução não como “locomotiva da história”, mas como ação salvadora da humanidade que puxa os freios de emergência antes que o trem mergulhe no abismo… [25]
[1] Título original: “Ecossocialismo e Planejamento Democrático”. Artigo publicado em Socialist Register, 2007. Tradução de Sofia Boito. Revisão de Isabel Loureiro.
[2] R. Smith, “The engine of ecocollapse”, Capitalism, Nature and Socialism, vol.16, n°4, 2005, p.35.
[3] R. Smith, “The engine of ecocollapse”, Capitalism, Nature and Socialism, vol. 16, n° 4, 2005, p.35.
[4] J. O’Connor, Natural Causes. Essays in ecological marxism, The Guilford Press, New York, 1998, p.278, 331.
[5] John Bellamy Foster emprega o conceito de “revolução ecológica”, mas explica: “Uma revolução ecológica em escala planetária, digna desse nome, só pode ter lugar no quadro de uma revolução social – e eu reitero, socialista – mais ampla. Uma tal revolução… necessitaria, como Marx sublinhava, que a associação dos produtores pudesse regular racionalmente a relação metabólica entre o homem e a natureza… Ela deve ter se inspirado nas ideias de William Morris, um dos mais originais e ecologistas dos herdeiros de Karl Marx, nas de Gandhi e de outras figuras radicais, revolucionárias e materialistas, entre os quais o próprio Marx, chegando até Epicuro.” (J. B. Foster, “Organizing ecological revolution”, Monthly Review, vol.57, n°5, 2005, p.9-10).
[6] Ver o capítulo VII de The enemy of nature de Joel Kovel para uma crítica ecossocialista da “eco-política realmente existente” – a economia verde, a ecologia radical, o bioregionalismo, etc.
[7] Ver J. B. Foster, Marx’s ecology. Materialism and nature, Monthly Review Press, New York, 2000.
[8] F. Engels, Anti-Dühring, Éditions Sociales, Paris, 1950, p. 318.
[9] K. Marx, Das Kapital, Volume 3, Berlin: Dietz Verlag, 1968, p.828 e volume 1, p.92. Nós encontramos uma problemática semelhante no marxismo contemporâneo. Ernest Mandel, por exemplo, defendia uma “planejamento centralista mais democrática sob a autoridade de um congresso nacional constituído por diversos conselhos de trabalhadores cujos membros seriam em grande parte trabalhadores reais.” (E. Mandel, “Economics of transition period”, in E. Mandel (org.), 50 years of world revolution, Pathfinder Press, New York, 1971, p.286). Em escritos mais recentes, ele faz preferencialmente referência aos “produtores e consumidores”. Nós seremos levados a citar alguns trechos dos escritos de Ernest Mandel pois ele é o mais esclarecido teórico socialista da planejamento democrática. Entretanto, devemos mencionar que ele não havia incluído o tema da ecologia como um aspecto central de seus argumentos referentes à economia.
[10] Ernest Mandel definia a planejamento da seguinte maneira: “Uma economia planificada significa (…) para os recursos relativamente raros na sociedade, que eles não sejam repartidos cegamente (sem que o produtor consumidor se dê conta) pela ação da lei do valor, mas que eles sejam conscientemente atribuídos segundo as prioridades estabelecidas previamente. Em uma economia de transição, onde a economia socialista reina, o conjunto de trabalhadores determina democraticamente a escolha dessas prioridades.” (E. Mandel, op. cit., p.282).
[11] “Do ponto de vista da massa salarial, os sacrifícios impostos pela burocracia arbitrária não são nem mais nem menos ‘aceitáveis’ do que aqueles que são impostos pelos mecanismos do mercado. Os dois tipos de sacrifícios são apenas duas formas diferentes de alienação” (ibid., p.285).
[12] Em seu notável livro lançado recentemente sobre o socialismo, o economista marxista argentino Claudio Katz sublinha que a planejamento democrática supervisionada a partir dos níveis locais pela maioria da população, “difere conforme se trata de uma centralização absoluta, de uma estatização absoluta, de um comunismo de guerra ou de uma economia planificada. A supremacia da planejamento sobre o mercado é necessária para a transição, mas não seria necessário suprimir as variáveis do mercado. A associação das duas instâncias deveria ser adaptada a cada situação e a cada país.” Entretanto, “o objetivo do processo socialista não é manter um equilíbrio imobilizado entre o plano e o mercado, mas promover uma supressão progressiva do lugar do mercado.” (C. Katz, El porvenir del Socialismo, Herramienta/Imago Mundi, Buenos Aires,2004, p.47-48).
[13] F. Engels, Anti-Dühring, op. cit.,p.349.
[14] J. Kovel, The enemy of nature, op. cit., p.215.
[15] E. Mandel, Power and money, Verso, Londres, 1991, p.209.
[16] Mandel observou: “Nós não pensamos que a ‘maioria tem sempre razão’(…) Todo mundo comete erros. Isso é verdade para a maioria dos cidadãos, para a maioria dos produtores e para a maioria dos consumidores. No entanto, haverá uma diferença essencial entre eles e seus predecessores. Em todo sistema em que o poder é desigual (…) aqueles que tomam más decisões sobre a atribuição de recursos são raramente aqueles que pagam as consequências de seus erros (…) Considerando o fato de que exista uma real democracia política, escolhas culturais reais e informação, é difícil acreditar que a maioria prefira ver seus bosques desaparecerem (…) ou seus hospitais com poucos funcionários, em vez de corrigir os erros de atribuição.” (E. Mandel, “In defense of socialist planning”, New Left Review, n°1, vol.159, 1986, p.31).
[17] E. Mandel, Power and money, op. cit., p.204.
[18] M. Albert, Après le capitalisme. Éléments d’économie participaliste, Agone, col. Contre-feux, Marseille, 2003, p.121-122.
[19] Sobre o “decrescimento” ver: M. Rahnema (com V. Bawtree) (org.), The post-development reader, Zed Books, Atlantic Highlands, 1997, e M. Bernard et al. (org.), Objectif Décroissance. Vers une société harmonieuse, Parangon, Lyon, 2004. O principal teórico francês do decrescimento é Serge Latouche, autor de La planète des naufragés. Essai sur l’après-développement, La Découverte, Paris, 1991.
[20] Ernest Mandel mostrava-se cético quanto à rapidez das mudanças nos hábitos de consumo, como o veículo individual, por exemplo: “Se, apesar dos argumentos de peso tais como a defesa do meio ambiente dentre tantos outros, eles (os produtores e os consumidores) quiserem perpetuar a dominação do veículo individual a carburador e continuar a poluir suas cidades, isso seria direito deles. Quanto às orientações de consumo enraizado, as mudanças são frequentemente lentas. Poucos são aqueles que pensam que os trabalhadores americanos renunciariam a seus carros no dia seguinte ao de uma revolução socialista” (Mandel, “In defense of socialist planning”, op. cit., p.30). Certamente, Mandel tem razão em insistir na ideia de que a mudança dos modelos de consumo não deveria ser imposta, mas ele subestima muito o impacto que teria um sistema de transporte público generalizado e gratuito, assim como a adesão da maioria dos cidadãos – é já o caso em muitas cidades européias grandes – à aplicação de medidas capazes de reduzir a circulação de automóveis.
[21] [N.T.] Transporte de carga que combina trechos em estradas de ferro e trechos em rodovias.
[22] E. Mandel, Power and money, op. cit., p.206.
[23] D. Singer, À qui appartient l’avenir? Pour une utopie réaliste, Complexe, Bruxelles, 2004, p.304-305.
[24] Ver S. Baierle, The Porto Alegre Thermidor, in Socialist Register, 2003.
[25] W. Benjamin, Gesammelte Schriften, Volume I/3, Suhrkamp, Frankfurt, 1980, p.1232.