09 Janeiro 2018
O ano se encerrou em todo o continente com enormes retrocessos para os trabalhadores. Macri e Temer aprofundam pacotes de ajustes e aceleram megaempreendimentos ligados à mineração e ao agronegócio nos dois maiores países, o Chile vive o aprofundamento de seu já consolidado modelo neoliberal e a Venezuela segue imersa em grave crise. No campo e na cidade, o avanço das direitas e a incapacidade de articulação das esquerdas são traços desta conjuntura, sobre a qual entrevistamos Raúl Zibechi, jornalista e cientista político uruguaio que estuda movimentos sociais de todo o continente há mais de 20 anos.
Logo no começo, Zibechi explica o que define como modelo extrativista. Resumidamente, um modelo que no campo social e cultural destrói todo tecido comunitário para, no campo político e econômico, desenvolver o modelo neoliberal a partir da subtração dos bens comuns que as democracias, em teoria, deveriam defender.
E sobre essa “crise das sociedades democráticas”, vê com importância tanto um “rearranjo do campo popular”, como “um processo de transição também no terreno das classes dominantes”. Zibechi ainda explica que a perda de hegemonia de antigas formas de controle social ligadas à igreja e à fábrica - ao panóptico de Foucault - faz com que o sistema aja no sentido de sofisticar velhos métodos e criar novos.
“As ONGs são uma forma de controlar dissidências, outra é o endividamento de que falava Deleuze e hoje no Brasil tem um papel muito importante. Os feminicídios, o narcotráfico e a Polícia Militar, é claro, também são formas de controle social, pelo medo e violência. E as classes dominantes estão investindo em pesquisas sobre como ampliar esse leque de táticas de controle social através da inteligência artificial, de todo o rol cibernético e das novas tecnologias – além, é claro, de apagar experiências libertadoras como a de Paulo Freire da memória das pessoas, como vemos nas intenções do movimento Escola Sem Partido”, analisou.
Embora veja em todo o campo popular o interesse compartilhado em derrotar o modelo extrativista, Zibechi alerta que especialmente no Brasil e na Argentina há uma tendência dentro do campo popular que pode se chocar internamente: a que antes de combater os avanços do grande capital está mais preocupada em devolver Lula e Cristina aos governos dos seus países.
“Os movimentos populares estão nos indicando que para construir um futuro coletivo, primeiro temos de derrubar este modelo neoliberal, financeiro e extrativista. E que não é possível conseguir isso a partir dos governos, tal derrubada tem de partir das ruas. Isso implica que os setores populares, para darem fim ao modelo neoliberal, devem sair às ruas e colocar em xeque a governabilidade atual”, criticou.
A entrevista é de Raphael Sanz, publicada por Correio da Cidadania, 06-01-2018.
Fonte: Youtube.
Eis a entrevista.
Em setembro do ano passado, traduzimos um artigo teu aqui no Correio intitulado “O cenário regional depois de Dilma”, no qual analisou que o encerramento de um ciclo progressista no Brasil faria uma espécie de efeito dominó em toda a América Latina. Como avalia o continente hoje, das disputas na Patagônia e nos rios amazônicos brasileiros ao novo golpe eleitoral em Honduras?
Sem dúvidas vivemos um processo de direitização muito forte em todo continente. Esse processo, a meu modo de ver, começa em junho de 2013 porque a esquerda não foi capaz de compreender que havia uma demanda na sociedade por mais igualdade e democracia, e assim deixou o campo livre para a direita.
Depois, veio a derrota de Cristina Kirchner na Argentina e o triunfo de Macri. E logo um processo de mudanças muito forte no Equador – onde apesar do novo presidente Lenin Moreno ser do partido de Correa, fez uma guinada primeiro contra o ex-presidente; agora, não se sabe se irá para a direita ou não. Podemos dizer que o progressismo chegou a um limite. Inclusive em um país como a Venezuela é evidente que o processo de governabilidade enfrenta muitas dificuldades e são os setores populares que encaram as maiores dificuldades decorrentes.
Finalmente, temos a atual situação de Honduras que também mostra uma forte presença da direita, a gestar a atual fraude eleitoral no país. Resumindo, esta ofensiva da direita tem duas partes. Por uma parte, a ascensão de uma nova direita, muito mais militante e ativa nas ruas como é o caso do Movimento Brasil Livre e do Escola Sem Partido, no Brasil.
Por outro lado, essa direita se aproveita das debilidades da esquerda que, por sua vez, não foi capaz de tomar a ofensiva contra a direita e os meios de comunicação da direita – contra toda a estrutura social e econômica que favorece a direita. E desse modo deixou o campo aberto para a ofensiva que estamos vivendo.
O que define como “modelo extrativista” e como este modelo contribuiu para a derrocada dos governos progressistas?
O extrativismo é um modelo econômico, político, social e cultural. No terreno econômico consiste na transformação dos bens comuns – por exemplo a água – em mercadorias. Pode ser definido como a hegemonia do capital financeiro e a acumulação por usurpação. É o roubo dos bens naturais. Seu principal efeito social é destruir as relações sociais a partir da destruição de todo tecido social e comunitário.
Ao destruir o tecido social e comunitário este modelo gera um reposicionamento das classes médias, altas e da burguesia; uma despolitização dos setores populares que são integrados ao pacto proposto pelos de cima, através do consumo – e o consumismo despolitiza e desorganiza. Dessa maneira, contribui com os dois principais aspectos da conjuntura atual, que são a ofensiva de uma nova direita e o enfraquecimento profundo do campo popular e dos movimentos sociais. Esses fatores têm, sim, muito a ver com o triunfo do modelo extrativista.
Qual o papel dos governos progressistas durante a formação da aliança entre elites e classes médias – especialmente no Brasil e na Argentina?
Acredito que a aliança entre as classes altas e médias é uma aliança política para a luta de classes a partir da direita. A direita aprendeu que tem um inimigo.
Hoje no Brasil, esse inimigo é visto - no caso do Escola Sem Partido - nos professores, docentes e em tudo o que lembre Paulo Freire e a politização da pedagogia. O MBL também tem seus inimigos bem definidos. Já a esquerda em nenhum momento foi capaz de dizer “este é o meu inimigo”. Lula sempre dizia que o Brasil não tinha inimigos. E seu próprio governo não identificava inimigos. Tanto que negociava com a Rede Globo até que finalmente a Globo jogou um importante papel na derrubada de Dilma.
O fato de não olhar para um inimigo implica que não há organização para lutar contra esse inimigo. Ou seja, não há um objetivo político determinado. Lula se pôs a governar sem conflitos, sem luta de classes, negociando permanentemente e isso funcionou enquanto a economia crescia. Quando terminou o ciclo das commodities e a economia começou a cair, era preciso agir no sentido das prometidas mudanças estruturais.
No final das contas o milagre lulista – e também dos progressismos em geral – foi melhorar a situação dos pobres sem fazer reformas estruturais. Portanto, quando termina o ciclo dos altos preços das commodities não sobra nenhuma margem para melhorar a situação dos pobres, senão tocar a riqueza. E esse passo o lulismo não se atreveu a dar no Brasil, e nem o kirchnerismo na Argentina. Entre outras coisas, afetaria diretamente os interesses do agronegócio e vale lembrar que este setor do grande capital integrou o governo Dilma até o seu último minuto – o que indica que existe uma aposta de aprofundar o modelo extrativista independentemente do presidente que sente na cadeira. Tudo sem tocar a riqueza e os interesses das elites, é claro.
Esta situação gerou uma crise política na qual o PT no Brasil e o kirchnerismo na Argentina não foram capazes de apontar para os setores populares quem era seu inimigo. Nesse sentido, se olharmos para meio século atrás, para a última carta de Getúlio Vargas, quando se suicidou, claramente mirava um inimigo. E Perón também. Eva Perón, idem. Todos viam um inimigo: fosse o imperialismo ou a oligarquia, havia um inimigo.
Ao não demarcar um inimigo, estes governos passam a mensagem de que estão renunciando à luta e nesse momento, no mundo, não se pode viver sem lutar. As forças políticas que não lutam contra um inimigo ficam presas pelas forças políticas que, essas sim, definem um inimigo, como é a direita hoje.
O que as lutas populares têm em comum, hoje, no continente? Qual a importância delas na construção de um futuro que não seja o neoliberalismo total?
Na minha opinião, o que todas elas têm em comum é que lutam contra o extrativismo e a hegemonia do capital financeiro sobre suas vidas.
Os Mapuches contra as empresas que mandam na Patagônia, os estudantes no Brasil contra o modelo neoliberal aplicado na educação, os indígenas equatorianos e bolivianos e os camponeses paraguaios contra o agronegócio e a mineração; todos vão contra diferentes pilares do extrativismo. As próprias AFPs (Associação de Fundos de Pensão), no Chile, alvos de grandes mobilizações, são parte fundamental do domínio do capital financeiro naquele país.
Esses movimentos estão nos indicando que para construir um futuro coletivo, primeiro temos de derrubar este modelo neoliberal, financeiro e extrativo. E não é possível conseguir isso a partir de governos, mas tal derrubada tem de partir das ruas.
Isso implica que os setores populares, para porem fim ao modelo neoliberal, devem sair às ruas e colocar em xeque a governabilidade. Da mesma maneira como sucedeu durante os ciclos das privatizações, quando a governabilidade neoliberal acabou e não foi possível concluir o processo, que agora é retomado.
Nem no Equador, nem na Bolívia, nem na Argentina e nem na Venezuela se abriu uma nova conjuntura. É preciso colocar em xeque a governabilidade atual. E não pode ser feito de maneira gradual, com pressões internas, dentro dos governos, mas de forma combativa nas ruas.
Vocês no Brasil sabem muito bem que as medidas de Temer (e de todo o parlamento e imprensa que o apoiam) não podem ser neutralizadas do gabinete do governo. Se amanhã ganhar o Lula, as reformas do Temer não serão tocadas. Apenas as ruas podem anular os ajustes.
Podemos afirmar que as destituições de Lugo no Paraguai e Zelaya em Honduras possam ter servido como laboratório para a tomada de influência das direitas em países mais centrais como Brasil e Argentina?
É provável que sim. É muito provável que haja esta relação, ou seja, que os casos de Paraguai e Honduras – com Lugo e Zelaya – tenham sido laboratórios para destituir governos legalmente, sem que houvesse a necessidade de colocar tanques nas ruas, como eram os clássicos golpes de Estado no continente. O que há em comum, por exemplo, com o caso do Brasil, é ativar e colocar em funcionamento um jogo de mecanismos constitucionais, legais – que completamente fora de contexto podem se tornar ilegítimos – para derrubar ou direcionar um processo político.
É impossível saber a resposta com exatidão porque a burguesia internacional não diz isso claramente. Mas sim, é muito provável que possamos pensar esses casos, de Paraguai e Honduras, como exitosos, uma vez que outras burguesias tomaram o mesmo caminho.
Que tipo de setor das elites latino-americanas se apropriou do poder após essa virada? Concorda com o termo dado pelo economista argentino Jorge Benstein que o chama “lumpemburguesia”?
Para compreender a situação é preciso ter em conta que o mundo está vivendo uma mudança hegemônica muito profunda. E tal mudança implica que as velhas burguesias já não têm a força ou a capacidade de articular a sociedade como tiveram em seu momento.
Nesse período de transição parece que surgem setores oportunistas. Como dizia o historiador Fernand Braudel, que caracterizava a burguesia como “ave de rapina que aproveita o momento certo para capturar a presa”. Assim, temos personagens muito curiosos, como os que integram o MBL, Kim Kataguiri e outros que realmente não vêm da velha burguesia como os políticos do DEM, do PMDB ou os tucanos. Ainda que em determinado momento eles dialoguem, é um erro dizer que vêm do mesmo lugar.
O mesmo ocorre no caso de Macri, que vem de uma burguesia que nasce no amparo dos negócios do Estado. É outro tipo de classe dominante e é provável que isso leve a uma ampliação das classes dominantes com elementos que poderiam se caracterizar como “lumpemburguesia”, que crescem à sombra do Estado e ligados à corrupção e a negócios muito duvidosos.
A esquerda também não é muito alheia a este processo, não é? Se olharmos para o caso da Odebrecht e dos irmãos Batista da JBS no Brasil, vemos uma aliança entre esta nova burguesia e o governo do PT. Uma burguesia oportunista – não é a clássica burguesia especializada em um setor produtivo, mas uma burguesia de ocasião.
É possível que Benstein tenha razão. Estamos em um processo de transição também no terreno das classes dominantes.
No seu último texto publicado pelo Correio da Cidadania, “O fim das sociedades democráticas na América Latina”, você elenca quatro pontos que destacariam o que chamou de erosão das bases culturais e políticas das democracias. Entre esses pontos, destaco o quarto – no qual afirma que “nós que queremos derrotar o capitalismo devemos ter em mente que o sistema está se desintegrando e levar em conta que nosso ativismo fomentou a ascensão dos governos direitistas”. De que maneira é possível notar esta desintegração capitalista em um momento em que muitos analistas apontam para uma consolidação do sistema?
Por um lado podemos ver a crise de desintegração do sistema através das crises das democracias. Por exemplo, o triunfo de governos como o de Trump. Ou mesmo o que está acontecendo em Honduras. Ou o Brexit. Ou a reação espanhola a respeito da independência da Catalunha. Todos podem ser sintomas dessa desintegração.
Um sintoma claro é o que Benstein aponta como a lumpemburguesia. Outro é que hoje os territórios populares já não podem ser governados sem o narcotráfico e os feminicídios. É preciso entender tais fatores como uma nova forma de governar, de controle social, no sentido do que Foucault colocava do controle a céu aberto sobre os setores populares em um momento no qual o velho panóptico já foi desmontado pelos de baixo. Parece-me que aqui há um terreno de análise muito importante porque a crise do panóptico, a crise do fordismo e a do Estado-nação têm muita relação com este período de transições caóticas que estamos vivendo.
Acredito que para compreender a desintegração das sociedades é preciso olhar para a situação comparada com o que se vivia nos nossos países há cinquenta anos. Nos anos 60, uma favela era completamente diferente do que é uma favela hoje. As periferias urbanas da América Latina eram completamente diferentes.
Hoje, grande parte da população sob o modelo financeiro-extrativo não tem direito à saúde, moradia, educação e simplesmente não tem direito a nada. Tem um ou outro benefício. O Bolsa Família, por exemplo, é um benefício, não é um direito. E a diferença de ser um cidadão com direitos ou um excluído com benefícios marca, a partir dos setores populares, a diferença entre esses dois períodos: um de certa estabilidade no sistema e outro de desintegração sistêmica, o que estamos vivendo agora.
Como vê a questão do narcotráfico, do racismo e do feminicídio como controle social, em especial no Brasil, um país que atinge anualmente a cifra de 60 mil homicídios por ano?
O importante é ver que tanto o panóptico quanto o fordismo foram desmontados pelos trabalhadores e pelos setores populares. Ou seja, as formas de controle anteriores foram derrubadas por baixo. E por isso eu digo que nós jogamos um papel fundamental na crise atual. Pois o sistema, em seu movimento natural, vai desenvolvendo novas formas de controle.
Diferentemente de outros analistas, não acredito que o panóptico tenha caído por questões tecnológicas, muito menos o fordismo. Foi a luta dos oprimidos que os neutralizaram. Assim, hoje, no caso do fordismo, em vez das linhas de produção tradicionais, temos automatização e robôs nas fábricas de automóveis – e um menor número de trabalhadores nesse setor da economia.
E na reorganização do controle, aparecem as ONGs fazendo um papel claramente designado pelo grande capital de controlar as dissidências, uma vez que o panóptico fracassa.
Como “panóptico”, me refiro ao tempo em que família, igreja, escola, quartel e fábrica tinham um papel central e eficaz no controle social. Eram espaços de contenção e disciplina muito rígidos que hoje vivem decadência e buscam reinvenção. Ou seja, é um momento em que o poder busca uma gama mais ampla de possibilidades de exercer o controle sobre a população.
As ONGs são uma forma de controlar dissidências, outra é o endividamento que falava Deleuze e que hoje no Brasil tem um papel muito importante – o endividamento é uma forma de disciplinar e controlar. Os feminicídios, o narcotráfico e a Polícia Militar, é claro, também são formas de controle social, pelo medo e pela violência. E as classes dominantes estão investindo em pesquisas sobre como ampliar esse leque de táticas de controle social através da inteligência artificial, do todo o rol cibernético e das novas tecnologias – além, é claro, de apagar experiências libertadoras como a de Paulo Freire da memória das pessoas, como vemos nas intenções do movimento Escola Sem Partido.
Resumindo, a burguesia está buscando em muitos sentidos novas formas de controle porque os partidos de esquerda e os sindicatos que também funcionaram em muitos momentos como formas de controle, no sentido de limitar a luta popular aos seus programas e impedir o crescimento de radicalismos. Nesse sentido, o PT foi muito importante no Brasil. Mas quando esses partidos e sindicatos começam a fracassar, aparece uma multiplicidade de formas de controle para evitar que os setores populares se autonomizem em relação ao capital e ao Estado.
E pensando na crise que enfrentam os partidos de esquerda e sindicatos dentro desse contexto, como entra a questão das ONGs?
Há um modelo de ONG que é o do George Soros e vem para tomar para si as mesmas palavras de ordem da esquerda e dos movimentos populares, bem como muitas das suas formas de ação e organização para, assim, neutralizá-los. As ONGs que funcionam dessa forma são como um vírus introduzido nas lutas populares.
Isto ocorre porque constituem organizações que aparentemente são para a luta mas que buscam, no final das contas, neutralizar a luta. Isto gera enorme confusão. Há um sábio que disse que é mais fácil sair do erro do que da confusão. E a burguesia através dessas ONGs e de movimentos confusos está introduzindo a confusão no campo popular.
No Brasil, parte da confusão pode ser ilustrada pela organização “Fora do Eixo”, de Pablo Capilé. Não é um movimento popular, nem social, nem político. É uma criação artificial das elites, nesse caso progressistas, mas no mesmo sentido que fazem organizações semelhantes pela direita, como as do método Soros, para derrubar a luta popular, quando o sindicato e o partido não conseguem mais organizar os jovens que estão fora dessas organizações – a maioria deles hoje.
Na época de Lula, há quarenta anos, os jovens eram operários e se organizavam em sindicatos, em comunidades eclesiais de base, no PT e no MST. Hoje em dia, há um grande número de jovens que estão fora de qualquer organização e há uma disputa no sentido de poder organizá-los. E nesse sentido, o Fora do Eixo e o MBL cumprem o mesmo papel – cada um, obviamente, para o lado que defende e para onde e quem, desde a elite, foram concebidos.
É possível um fortalecimento das resistências que se oponham a estes avanços do capital para 2018?
Sem dúvidas há condições para um fortalecimento das resistências porque a ofensiva das direitas é muito dura.
O caso do Equador, por exemplo, pode se repetir em outros países. Na Argentina há um aumento das lutas como vimos nestes últimos meses e na maioria dos países temos uma situação de tensão muito forte porque os setores populares rechaçam reformas propostas pela direita.
Mas aqui surge um problema. No seio dessas lutas há duas tendências, na Argentina e no Brasil sobretudo. Há aqueles que lutam para derrubar as reformas da direita e o modelo extrativista e há aqueles que lutam para que Lula e Cristina Kirchner retornem aos governos dos seus países.
Observei que no Brasil a CUT tem freado lutas porque seu objetivo não é derrubar Temer agora, mas sangrá-lo para que Lula possa ganhar as eleições de 2018. Significa que, mesmo em condições de fortalecimento das lutas populares, também há problemas internos dentro do campo popular que podem desviar a luta para o terreno eleitoral novamente.
Como avalia a situação na região amazônica, onde vemos a mineração e setores hidrelétricos em verdadeira ofensiva sobre territórios indígenas – cobertos pelas pretensões de um dos eixos do plano IIRSA?
Os povos indígenas são novamente a vanguarda da luta contra o modelo extrativista. Não apenas os indígenas, como também todos os povos originários: ribeirinhos, pescadores, quilombolas – todos os povos originários estão diretamente interessados na derrubada do modelo neoliberal. E neste período começa a surgir um novo ator político que são os povos afrodescendentes, os negros. E a luta negra, nos quilombos rurais e periferias urbanas, está fazendo um papel muito importante nas resistências.
Acredito que o extrativismo só possa ser derrotado localmente. Por exemplo, a luta contra a hidrelétrica de Belo Monte, tem que ser em Belo Monte. Não é possível lutar contra o modelo extrativista no Palácio do Planalto, mas em cada um dos lugares onde tal modelo se desenvolve.
Como foi a luta contra o fordismo: nas fábricas. Acredito que esses atores, tais sujeitos sociais e políticos são os que estão questionando a fundo o modelo extrativista, as obras da IIRSA, todo o projeto de hidrelétricas, de mineração e de soja, pois são os que estão mais afetados diretamente por este modelo.
Também é importante olhar para os movimentos das periferias urbanas e das populações das favelas, que têm um interesse objetivo de lutar junto com esses movimentos do campo. Não de lutar na mesma organização, mas de confluir no mesmo objetivo. Por exemplo, o Ocupa Alemão do Morro do Alemão no Rio de Janeiro lutando contra a violência policial, e os Munduruku no rio Tapajós contra os projetos hidrelétricos e mineradores, no final das contas estão lutando contra o mesmo projeto, querem derrubar o mesmo modelo. Suas lutas vão na mesma direção naturalmente.
O que está colocado para a América do Sul no próximo período?
Diferentemente do que opinam os analistas que acreditam que o principal é tirar a direita dos governos, eu acredito que o fundamental é derrubar o modelo extrativista. Porque este modelo é o que está causando danos aos setores populares da cidade e do campo. É o que está facilitando a volta das direitas aos governos e sua continuidade.
Na minha opinião, a tarefa principal do próximo período é organizar as forças para derrotar o modelo extrativista da mesma maneira que se lutou contra o modelo das privatizações.
Imagino os próximos anos com os povos lutando fortemente em cada um dos lugares onde este modelo se manifesta. Contra a ferrovia de Carajás, contra as 300 hidrelétricas que querem construir na Amazônia, contra a soja e toda sorte de transgênicos, contra a violência policial nas cidades e por aí vai. Esta é a luta principal que, creio, nos ocupará nos próximos anos.
Nota da IHU On-Line:
Raúl Zibechi estará no IHU no dia 28 de maio, segunda-feira, às 11h, ministrando a conferência "Populismo pós-estrutural e multidão. Possibilidades à reinvenção política brasileira e latino-americana". A atividade integra o 3º ciclo de estudos "A esquerda e a reinvenção da política no Brasil contemporâneo. Limites e perspectivas". Saiba mais aqui.
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“Maior erro dos progressismos foi não ter tocado a riqueza; agora vemos avanço continental das direitas”. Entrevista com Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU