20 Novembro 2019
Em análise sobre a crise da esquerda e as conjunturas brasileira e chilena, o filósofo Vladimir Safatle é enfático ao criticar o Estado Brasileiro e a violência por ele perpetuada conta sua população. Para ele, "O Estado brasileiro tem como única função operar em graus inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no extermínio, no desaparecimento, é um Estado baseado nas formas mais brutais de morte sem sepultura que você possa imaginar; e isso como prática normal de governo. A prática normal de governo no Brasil é essa".
Segundo professor, para renovar a política, é necessária a "constituição de novos horizontes", algo que, conforme aponta Safatle, a esquerda não consegue fazer porque a "capacidade de constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula". Além disso, Safatle também avalia que a crise chilena se dá em virtude do processo de acumulação primitivo gerado pelo modelo neoliberal.
Professor na USP, o filósofo comenta seu último livro, Dar corpo ao impossível: O sentido da dialética a partir de Theodor (São Paulo: Autêntica, 2019), e explica que a obra tem como finalidade "mostrar as estruturas dinâmicas da dialética negativa que podem orientar, ainda no presente, uma reflexão crítica a respeito do existente, a respeito das possibilidades de transformação, a respeito das dinâmicas gerais de movimento dentro do nosso processo histórico, da nossa sociedade".
A entrevista é de Edison Urbano, publicada por Ideias de Esquerda, 17-11-2019.
Pode começar nos falando um pouco sobre seu último livro, “Dar corpo ao impossível”? Em que sentido você vê a importância do resgate da dialética para entender e atuar no mundo de hoje? Qual a relação disso com a ideia do “dar corpo”, que está no título?
Acho que a dialética é uma das figuras fundamentais do pensamento crítico, que ainda guarda muito de sua atualidade, especialmente em sua última tradição, que é a dialética negativa adorniana.
A ideia fundamental do livro era mostrar as estruturas dinâmicas da dialética negativa que podem orientar, ainda no presente, uma reflexão crítica a respeito do existente, a respeito das possibilidades de transformação, a respeito das dinâmicas gerais de movimento dentro do nosso processo histórico, da nossa sociedade. “Dar corpo” vem muito do fato de insistir que a dialética é uma teoria da realização dos impossíveis, de uma certa forma, da incorporação dos impossíveis; esse é um dos elementos fundamentais da sua dinâmica transformadora: sair de uma teoria aristotélica do movimento, baseada numa ideia do par “possível” e “atual”, “potência” e “ato”, para uma teoria mais elaborada, na qual aquilo que, para uma situação atual, é impossível, acaba sendo o embrião fundamental de uma outra forma.
Isso leva a uma segunda pergunta que queríamos fazer. No livro, você propõe um resgate do pensamento de Theodor Adorno, um teórico geralmente associado ao pessimismo histórico ou até ao ceticismo quanto à luta de classes e a revolução social. No entanto, a apropriação de Adorno que o livro propõe se afasta dessa leitura e parece sugerir quase um “Adorno revolucionário”, talvez. Até que ponto, em sua visão, a interpretação corrente recai em incompreensões ou lacunas sobre os textos de Adorno, ou em que medida seria de fato uma (re)interpretação criativa aquela que você propõe?
Olha eu diria o seguinte, essa interpretação mais usual de uma espécie de Adorno conservador, se podemos dizer assim, é muito fruto dos fantasmas que assombram a sociedade alemã, com a crença atávica e necessária numa espécie de pacto geral produzido pelo Estado e traduzido pela economia social de mercado, pelo “Estado de bem-estar social”, e com o colapso desses dispositivos de gestão social, a função que os intelectuais tiveram dentro desse horizonte, ao serem simplesmente uma espécie de portadores um tanto nostálgicos da recuperação desse modelo, muito vinculado a uma dinâmica que não é nem social-democrata, é uma dinâmica social-democrata/democracia-cristã. Aí, de uma certa forma, seria importante para esses intelectuais que o Adorno aparecesse como um niilista, como um derrotista, alguma coisa dessa natureza.
O que eu acho que está longe, mas muito longe de ser verdade, é alguém que em momento algum abandona o horizonte de transformação revolucionária como elemento normativo fundamental do pensamento. O que ele faz é compreender a complexidade da efetivação desse processo dentro da situação que ele viveu, que era o momento dos 30 gloriosos, o momento um pouco áureo dos modelos de coalizão e consenso dentro da democracia liberal. Ele insiste um pouco no colapso da constituição dos sujeitos históricos, vinculados à classe operária, ao proletariado… o que não significa de maneira nenhuma que ele abra mão, isso que eu queria dizer: compreender a complexidade do processo não significa você abrir mão dele. É isso que ele faz: quais são as condições para que uma dinâmica revolucionária realmente se realize no interior das sociedades ocidentais, esse é um problema fundamental para o Adorno. Eu desafio qualquer pessoa que o leia de fato com interesse a provar o contrário.
Passando já então para o nosso segundo bloco, que é mais internacional, a primeira pergunta parte de constatar que estamos diante de um cenário extremamente dinâmico na América Latina, com grandes revoltas de massas como as do Equador e agora no Chile, e tentativas de golpe de direita, como vimos também agora na Bolívia. Como você analisa esses processos? Considera pertinente a hipótese de que o processo dos Coletes Amarelos na França, no final do ano passado, abriu um novo período para formas novas de expressão da luta de classes?
É, eu não sei se o marco são mesmo os Gilets Jaunes [Coletes Amarelos] franceses, acho que é um processo que vem na verdade, desde a Primavera Árabe, que vai se consolidando de uma forma paulatina como uma dinâmica animada por lutas de classes; agora, eu acho que na verdade o que faz o ponto de viragem é o movimento chileno, que aí fica muito explícito. É claro que há questões econômicas muito profundas na pauta dos franceses, mas no caso dos chilenos você tem as pautas econômicas e a exigência de uma transformação social radical, uma transformação institucional radical e uma articulação transversal das lutas, com uma hegemonia muito, muito forte, ligada a pautas de reconhecimento, de opressões, da opressão dos mapuches, de uma outra reconfiguração do vínculo social.
O processo francês foi paulatinamente em direção a isso: como todo movimento de rua, ele começa um pouco com contradições internas, e essas contradições vão se amainando, inclusive com a capacidade que alguns grupos tiveram de conseguir intervir no processo de construção de hegemonia. Mas o que eu acho é que, a partir de agora, a gente tem uma tendência que deve ser explorada de recondução da luta de classes para o centro das lutas políticas, dos processos de mobilização e manifestação; isso seria uma coisa absolutamente fundamental daqui pra frente, para que a gente conseguisse ter uma capacidade não só aglutinadora maior, mas também uma capacidade de transformação efetiva.
Nós íamos passar para outra pergunta, mas aproveitando então o interesse da questão do Chile, só uma última pergunta, porque uma das demandas que tem sido discutida a partir do movimento, e que o próprio governo Piñera tentou abordar à sua maneira, é a questão da Assembleia Constituinte. Como você vê a relação disso com esse desejo de ruptura institucional que você acabou de comentar?
Eu acho fundamental, fundamental. E é muito engraçado que isso volte, porque esse é o modelo da luta dos islandeses. Os islandeses fizeram suas lutas contra os pactos financistas ligados às receitas do Fundo Monetário Internacional, e uma questão fundamental é uma nova Assembleia Constituinte, uma nova Constituição. Porque eles percebem que a crise não é só econômica, a crise é política também, a questão fundamental é que tipo de regime político é esse que permite uma crise econômica dessa natureza. Que não é exatamente uma crise, diga-se de passagem, é simplesmente uma nova volta do processo de acumulação primitiva. O caso islandês é um caso clássico, porque eram quatro bancos que tinham dívidas enormes fora do país e que diziam que agora o estado socializasse suas dívidas, preservando sua dinâmica de acumulação.
E o caso chileno, bem, é a crítica a um processo de concentração que é o elemento fundamental do horizonte neoliberal, o qual não é exatamente uma forma de gestão social, é uma forma de recolocar no centro do processo econômico uma dinâmica de acumulação primitiva. Então eles percebem que, se isso aconteceu, é porque você tem uma estrutura política que não é imune a isso, que é completamente permeada por esse tipo de pressão, então é necessário você quebrar institucionalmente o processo que garante isso, e reconstituir a institucionalidade da vida nacional.
Recentemente, você fez comparações, em artigos e palestras, entre a esquerda brasileira e figuras como Jeremy Corbyn e Bernie Sanders. E, em outra chave, também fez uma colocação que repercutiu bastante, sobre a necessidade de “dividir, para depois poder unir”. Pode falar um pouco de como analisa esses personagens do cenário internacional, Corbyn e Sanders, que aparecem como contraponto a uma onda de direita e extrema-direita que vinha, e resgatar para os nossos leitores o sentido daquela comparação com a esquerda brasileira?
Então, essa discussão, não é que eu reconheça o Bernie Sanders e o Corbyn como uma espécie de horizonte normativo para as lutas da esquerda mundial, não era isso. Era simplesmente para insistir: veja que vergonha, olha que coisa pavorosa, onde a esquerda brasileira chegou? Um candidato do Partido Democrata e o líder do Partido Trabalhista, estão a anos-luz de radicalidade de qualquer partido ou de qualquer organização da esquerda brasileira que seja minimamente relevante eleitoralmente. Acho que é uma questão a se pensar: pega o programa do Sanders, ele tem tópicos que ninguém na esquerda brasileira, ninguém, nem PT, nem PSOL, nem nada, chegou sequer a cogitar colocar como programa. Por exemplo, a ideia de que 20% das ações de todas as empresas devem ser dispostas para os trabalhadores; de que os boards [conselhos de administração] das empresas devem ter pelo menos metade de trabalhadores na sua constituição; leis de restrição a concentração e oligopólio financeiro, nada disso tem nenhum programa brasileiro; ou o programa ecológico do Corbyn…
Para um país que passou por três catástrofes ambientais em um ano, catástrofes monstruosas, você tem um autismo ecológico da esquerda que é uma coisa inacreditável. Então é simplesmente para dizer: o Brasil é um país onde até a esquerda radical é moderada, então isso deve ser realmente pensado, no sentido forte do termo. Aí o que acontece, quando a gente tem uma situação de radicalização como agora? A esquerda é a primeira a fazer um horizonte legalista, um horizonte de frente ampla, de defesa da democracia…
Esse é um horizonte que é o horizonte clássico, tradicional da política brasileira, se você pega, por exemplo, o Marighella falando do papel do PCB nos anos 40 e 50, ele vai fazer o mesmo tipo de crítica: vocês entraram numa lógica aliancista, de aliança com setores ditos progressistas da burguesia, que só conseguiu travar qualquer possibilidade de auto-organização da classe trabalhadora. E é isso que vai acontecer de novo, na verdade, vai acontecer uma coisa ainda pior, vai acontecer uma coisa como a que ocorreu na Itália: todo mundo se organiza contra o Berlusconi, você vai criando uma massa completamente indigesta e indiferenciada, e no final das contas quando o Berlusconi cai ainda aparece um sujeito mais radical, que é o único que fez política, enquanto os outros ficam lá tentando reagir, ou resistir, ou qualquer coisa que o valha. Eu temo que esse é o verdadeiro modelo da esquerda brasileira.
Passando para o nosso último bloco, que é justamente sobre o Brasil. Em primeiro lugar, saber como você tem analisado o próprio governo Bolsonaro e suas principais medidas.
Eu diria o seguinte, o governo Bolsonaro faz tudo certo. Infelizmente, se tem alguém que sabe fazer política nesse país, é o Bolsonaro. Dentro da lógica dele, ele fez tudo correto: chamá-lo de inepto, de inapto, é simplesmente uma espécie de delírio de superioridade moral e intelectual que acomete a esquerda nesses momentos dramáticos. Ele sabe que o Brasil é ingovernável, que não é possível governar o Brasil, não nesse modelo. E ele faz um pouco a velha dinâmica “eu contra todos”: eu estou no governo, mas eu não consigo governar; não consigo, porque o Supremo Tribunal não deixa, porque o Parlamento não deixa, porque meu partido não deixa, porque a imprensa não deixa, porque ninguém deixa. Ou seja, isso lhe permite entregar muito pouco, e ainda continuar mobilizando um setor fundamental da sociedade, que é mais ou menos 30%, e que se consolidou ideologicamente em torno dele, ou seja, ele conseguiu criar um bastião ideológico.
Esses 30% não vão cair, porque eles têm uma adesão ideológica, no sentido tradicional do termo, toda a pauta ideológica, neofascista, de extrema-direita, ele conseguiu consolidar. Então o que ele faz? Ele espera um momento de ruptura, porque ele sabe que esse momento vai vir, ele sabe que você vai ter… você vai vendo, as convulsões sociais à sua volta, uma hora isso vai chegar no Brasil. E ele já está preparado para isso, e a esquerda não está preparada. Ele está preparado, porque ele vai fazer duas coisas, ele vai agir de uma forma brutal, como já tem dito, e ele vai dizer: “olha, eu preciso fortalecer o governo, porque tem um caos, e eu nunca consegui governar porque todas essas instituições me atrapalharam, e a situação agora é uma situação excepcional, então agora a gente vai partir para uma experiência ditatorial mais explícita”; é isso, esse é o seu horizonte.
Pegando um aspecto específico do governo, que se liga a uma ideia que está presente em algumas das suas últimas palestras: como você vê o Sérgio Moro, que veio da operação Lava Jato e, agora, com esse pacote anticrime, qual a relação dele com esse projeto, e na verdade, talvez mais amplamente, aquela ideia que temos visto em algumas colocações suas, de que aos olhos do próprio Estado no Brasil existe uma separação na sociedade entre os brasileiros “matáveis” e os “não-matáveis”. Como se relaciona com esse pacote anticrime do Moro e com a crítica da transição pós-ditadura que a gente teve aqui no Brasil?
Bom, a primeira coisa é que o Moro é uma peça fundamental de todo esse processo, ele é o segundo na linha sucessória, assim que o Bolsonaro cair ele, vai estar à frente, então você já tem uma linha sucessória em operação desde o início. Os seus interesses eleitorais são explícitos. Ele é uma figura própria das tragédias mais sórdidas de Shakespeare, é uma coisa da ordem do Eduardo II, um sujeito que na verdade se serve da posição de juiz para prender o candidato que poderia ocupar o cargo que ele quer ocupar. Tudo que ele fez foi porque ele quer ser presidente da República, é uma coisa próxima do inimaginável. Agora, é claro, a despeito dessas questões da ordem dos interesses pessoais, é claro que ele expressa de uma maneira muito clara a natureza necropolítica, necrofascista, do Estado brasileiro. O seu pacote é muito evidente nesse sentido.
O Estado brasileiro tem como única função operar em graus inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no extermínio, no desaparecimento, é um Estado baseado nas formas mais brutais de morte sem sepultura que você possa imaginar; e isso como prática normal de governo. A prática normal de governo no Brasil é essa. Independentemente de qual seja o partido, isso nunca mudou, pode ter ficado mais explícito em alguns momentos, ou mais implícito em outros momentos, mas era uma questão de visibilidade, não era uma questão de mudança de práticas.
Então se tem alguma coisa que é necessário fazer nesse país é quebrar a máquina necropolítica do Estado brasileiro, que opera cotidianamente, que teve na sua experiência ditatorial a consolidação do seu aparato institucional, a consolidação das polícias militares, as práticas ostensivas de tortura, as operações punitivas nas periferias, os assassinatos a esmo, como forma de gestão do medo social; todo esse tipo de coisas que nós conhecemos muito, muito bem, e preferimos não lembrar. Ele [Moro] é a expressão máxima disso, a expressão descomplexada disso. Então, de fato, de todos os personagens talvez ele seja de fato o pior. E é claro que esse pacote anticrime entra nesse horizonte onde você tem medidas econômicas que são medidas concentracionistas, são medidas econômicas de destruição de qualquer possibilidade de resistência econômica da classe trabalhadora, e é claro que eles sabem fazer contas, sabem que isso produz conflito social. Então por isso que vai uma medida junto com a outra, vai o aprofundamento da estrutura destruidora do Estado brasileiro junto com essas medidas econômicas.
Chegando a nossa última pergunta. É comum ouvir discursos vindos dos próprios centros dirigentes da esquerda brasileira de que não há lutas mais radicalizadas até o momento, apesar dos enormes motivos para tal, porque os trabalhadores e o povo não querem. Em certa medida esses setores terminam se apoiando num senso comum, elaborado ideologicamente pelas classes dominantes, do mito do brasileiro pacífico e cordial. E esse é um dos elementos sobre o qual a esquerda brasileira tradicional se apoia para projetar nos trabalhadores e no povo uma passividade que é criada por ela. Como você avalia isso hoje, frente a fatos como a soltura do Lula e as esperanças eleitorais que isso deflagra? E como romper esse ciclo de passividade e conciliação e abrir caminho para uma alternativa de esquerda distinta?
Olha, esses setores da esquerda tradicional, eles são cúmplices de todo o aparato de violência que produz essa ilusão de passividade, porque eles no governo não fizeram nada, absolutamente nada para desmontá-lo. Ao contrário, eles deixaram isso operar e eles se aproveitaram dessa situação. Então eles são parte do problema, eles não são parte da solução. Porque falar uma coisa dessas é de uma demência absoluta, porque na verdade o que acontece é que você tem uma população que… bem, eu sugiro o seguinte: suba o Complexo do Alemão, e você vai poder encontrar barricadas nas ruas contra os caveirões da polícia, você vai poder ouvir as mães de filhos assassinados dizendo do tipo não só de assassinato a seco, mas também a humilhação cotidiana mesmo com os filhos assassinados, você vai poder encontrar balas de fuzil nos tetos, que mostram cotidianamente o que ocorre, daí você vai entender por que o povo não se revolta; talvez aí eles consigam entender um pouco quando eles perceberem o grau de política de extermínio ao qual essa população está submetida…
Talvez eles possam entender, então, o que isso significa. E mesmo assim, ao contrário: esse povo se revolta, eles fazem mobilização, eles fazem manifestação, eles desafiam a polícia, eles desafiam as milícias, eles desafiam o tráfico, então isso, até do ponto de vista moral, é uma das coisas mais ignóbeis que se possa falar do povo brasileiro. Porque o povo brasileiro é um povo de uma história, que é uma história de luta contínua.
Agora, é claro, eles precisam desse tipo de coisa para poder justificar sua própria inércia, para poder justificar seu próprio modelo de compreensão de luta política, que é uma luta política própria da Nova República; são as lutas palacianas, são as lutas florentinas, são as lutas dos conchavos, são as lutas dos processos eleitorais travados. Porque são processos eleitorais em que você vai tendo certas coalizões que são feitas para te travar, para depois você entrar no governo e falar “olha, eu não posso fazer nada porque a correlação de forças não me permite”, todo esse tipo de coisa.
Isso está insuportavelmente jogado na cara do povo brasileiro há décadas, então eu diria o seguinte: a gente precisa lembrar de uma outra história da esquerda brasileira, que não é essa história do populismo de esquerda que nos assombra desde os anos de 1940, desde um certo alinhamento da esquerda brasileira com o varguismo, e que continuou, continuou com o petismo, e tende a continuar, infelizmente. Eu diria que a gente precisa recuperar uma outra história, que é uma história de radicalização e de luta; que é constitutiva da nossa experiência. E compreender que o que aconteceu no Brasil nesses últimos anos foi o colapso desse modelo populista de esquerda.
Entrando agora na questão sobre a soltura do Lula, porque o Lula é a expressão máxima disso: o que o Lula faz é exatamente o que as figuras dentro desse modelo de corporação social fazem, ele vai tentar articular alianças, ele vai fazer aquele tipo de promessas contraditórias: ele promete pra você uma coisa, vai prometer pra você radicalização, vai prometer pro outro moderação; pra você uma mudança de processo econômico, pro outro ele vai dizer que não, não, vamos preservar o parque produtivo; aquela coisa de sempre. E tentar reinstalar e reinstaurar, mais uma vez, isso, é só repetir uma catástrofe. É claro que como você tem desespero enorme da sociedade brasileira diante dessa ascensão neofascista, então o que aparecer as pessoas seguram…
Só que o fato é que a política não vive disso, ela não vive de resistência, ela vive da constituição de novos horizontes, e a capacidade de constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula. E é por isso que ela não consegue sair dessa sua posição defensiva, ela é incapaz de dizer para a sociedade brasileira: “olha, o que a gente quer agora do processo econômico?, o que a gente quer da institucionalidade política?”. A única coisa que ela consegue falar é sobre questões vinculadas a dinâmicas sociais de reconhecimento, que são absolutamente fundamentais, essas questões que dizem respeito à situação de vulnerabilidade e de opressão de vários setores da sociedade brasileira, mas essa é a única coisa que ela consegue colocar na pauta, porque ela não tem coragem de oferecer mais nada, e isso infelizmente não é suficiente.
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“A capacidade de constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula”. Entrevista com Vladimir Safatle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU