07 Fevereiro 2020
"A proposta de Piketty não vai além de uma tentativa de restaurar a social-democracia europeia, acrescentando a participação dos cidadãos em todas as ordens da vida social, política, econômica e cultural. Isso não invalida a importância de sua análise em relação à libertação dos mecanismos de dominação do capital (e a auto-subordinação dos trabalhadores), produzindo irradiação da ideologia da desigualdade para apoiar e reproduzir sociedades desiguais e proprietárias. Mecanismos ideológicos historicamente desenvolvidos para a naturalização, combinados com o sistema político, jurídico, econômico...", escreve Isabel Rauber, argentina, educadora popular e professora do Instituto de Filosofia de Havana (Cuba), em resenha sobre Capital e Ideologia, último livro do economista francês Thomas Piketty.
A filósofa critica que "em relação à América Indo-Afro-Latina, o texto mostra marcadas fraquezas, lacunas ou inadequações. O vazio é perceptível. Nessas latitudes, não seria suficiente para os trabalhadores, por exemplo, comprar ações e participar de uma assembleia de donos de empresas, para regulá-la; temos mais do que experimentado ao longo da história que, quando o capital é ameaçado, apela a qualquer meio para acabar com os direitos sociais e recuperar seu “comando único” para continuar pilhando e destruindo nossas sociedades, semeando mais do que desigualdades, exclusão social crescente".
O artigo é publicado por ALAI, 03-02-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Faz relativamente pouco tempo que chegou a nós o texto Capital e Ideologia, de autoria de Thomas Piketty, muito conhecido pelo livro O Capital no século XXI.
Thomas Piketty e a capa da versão espanhola do livro "Capital e Ideologia". Crédito: ALAI
Impressiona um pouco quando se entra em contato com o volume de papel cheio de páginas a se enfrentar caso deseje conhecer suas reflexões, análises e propostas. Porém, se realmente começar a lê-lo não o colocará como adorno na biblioteca, e rapidamente os temores se desvanecem. Trata-se de um livro escrito em uma linguagem simples, linear e muito compreensível para os leitores, sejam esses economistas ou não. Minha apreciação é que Piketty não escreve para economistas; está na sociedade e fala para ela, convencido como esta que é a cidadania global, com sua participação, a única que pode mudar – para bem –, o estado de putrefação atual do mundo gerado pelo capitalismo.
No desenvolvimento histórico do capitalismo resultou predominante sua vertente neoliberal, cujo irrefreável afã de lucros criou rendas incontroláveis ao seu componente especulativo; este cresceu e emergiu como o gênio que sai da lâmpada e implantou sua irracionalidade com uma ferocidade e velocidade inusitada quase imperceptível para nós, salvo por suas consequências: guerra, roubos, misérias, genocídios, predomínio do luxo e o alarde, especulação financeira, apropriação de recursos naturais para lucrar com a vida. Essa deixou de ser um direito inalienável da humanidade para ser um ativo financeiro exposto – como todos os ativos – aos vaivéns do mercado e sua sede de lucros. Estamos vivendo – em outras palavras – em um mundo dominado pelo que Bauman chama de capitalismo líquido, dentro do qual se desenvolvem vidas líquidas em evaporação constante. Fricção e velocidade, são suas características desestabilizadoras. Nada permanece mais além do tempo necessário para o mercado do capital e fora dele, nada tem valor.
A vida, apreciada, única e irrepetível, é um dom que cada ser humano possui, e se faz fumaça diante das exigências do mercado do capitalismo neoliberal. É essa a primeira e principal ferocidade irracional do capital que Piketty critica, analisando a produção ideológica das justificativas que o poder faz para mostrar como supostamente “inevitável” e “natural” a existência das desigualdades sociais, ao qual, obviamente, se opõe.
Como saída positiva a essa situação, digamos, ele elabora uma proposta alternativa que expõe em Capital e Ideologia: “(...) é possível construir um relato mais equilibrado e esboçar o contorno de um novo socialismo participativo para o século XXI. É possível conceber um novo horizonte igualitário de alcance universal, uma nova ideologia da igualdade, da propriedade social, da educação, do conhecimento e da repartição do poder que seja mais otimista com a natureza humana. Essa nova ideologia pode ser mais precisa e convincente que os relatos precedentes, ao estar melhor ancorada nas lições da história global” (p.14).
Não recomendo tirar conclusões apressadas por tal enunciado. Para compreender sua proposta é preciso recorrer ao conteúdo do livro. Ali aparecem as linhas que somam interesse e fazem mais atraentes sua leitura, particularmente tudo referido aos mecanismos de produção ideológica do capital em aras de garantir a naturalização-aceitação das desigualdades sociais entre os seres humanos em cada tempo histórico. “Toda sociedade humana necessita justificar suas desigualdades, e essas justificativas guardam sempre uma parte de verdade e de exagero, de imaginação e de baixa moral, de idealismo e de egoísmo. Um regime desigual, tal e como se define nesta pesquisa, caracterizado por um conjunto de discursos e de mecanismos institucionais que buscam justificar e estruturar as desigualdades econômicas, sociais e políticas da sociedade em questão (p.13).
“[...] As elites econômicas das distintas sociedades, em qualquer época e em qualquer lugar, tendem a ‘naturalizar’ as desigualdades; isso é, tratam de associá-las com fundamentos naturais e objetivos, a explicar que as diferenças sociais são (como deve ser) benéficas aos mais pobres e para a sociedade em seu conjunto, que em qualquer caso sua estrutura presente é a única possível e que não pode ser modificada sem causa imensas desgraças” (p.19).
Em virtude disso – para evidenciar o desenvolvimento histórico das ideologias da desigualdade e para expressar que “as mudanças são sempre possíveis” –, o autor apresenta um grande panorama da produção-justificação ideológica das desigualdades desde a escravidão até a nossos dias. E põe em jogo duas categorias que considera centrais: a fronteira e a propriedade. “[...] todo regime desigualitário, toda ideologia desigualitária, repousa sobre uma teoria das fronteiras e uma teoria da propriedade” (p.16). As dimensões destas se definem claramente em interação com os regimes políticos de cada tempo histórico, incendiados pelos interesses expansionistas do capital. Isso, ao mesmo tempo, vai interdefinindo o alcance de cada dimensão e perfilando em função disso, variações claras no que refere a direitos e desigualdades.
Neste recorrido histórico põe em manifesto que as recorrentes crises identitárias e desigualitárias estiveram sempre vinculadas com o regime político imperante em – no que define como – as sociedades proprietárias. Neste sentido emerge o conceito de “regime desigualitário”, “(...) que engloba tanto o conceito de regime político como o regime de propriedade (...)” e ao redor do qual se vertebra o estudo (p.17).
Dito isso, Piketty deixa claro – ainda que assim não o busque, nem expresse diretamente – que dentro dos regimes desigualitários de qualquer origem e projeto, não é possível por fim à desigualdade e construir – o que seria – um “regime igualitário”, por exemplo, segundo sua proposta, um socialismo participativo para o século XXI. É preciso esmiuçar isso...
Destaca o estudo que o autor faz sobre como se produz, reproduz e naturaliza ideologicamente a desigualdade, isso é, como se constrói a ideologia da desigualdade que busca – e em certa medida consegue – com que os próprios golpeados por ela cheguem a se assumir como responsáveis de sua situação. “A desigualdade não é econômica ou tecnológica, afirma, é ideológica e política”.
Habitualmente, tenta-se aludir a esse aspecto com os estudos sobre hegemonia, não vou entrar aqui em debates sobre o tema, porém quero destacar a contribuição de Piketty ao explorar e expor historicamente como se gera a ideologia da desigualdade em cada tempo histórico e político, quais são os pilares que a sustentam em cada momento. Com isso permite enfocar desde outro ângulo os cenários das contendas sociais, políticas e culturais pela igualdade e justiça.
Certamente, fica exposta também ali a ausência de interstícios incontestáveis, aqueles que se configuram mediante a inter-relação, interdefinição, interdependência e interpenetração existente entre economia e ideologia. Porque, embora seja verdade que o ideológico ocupa um lugar central no apoio ao regime desigual em nível global, concluir que o ideológico tem autonomia absoluta (“autêntica autonomia”) em relação ao econômico (e propriedade que considera um fator central da desigualdade), mostra o calcanhar de Aquiles de sua análise e, portanto, de suas conclusões. A explicação do apoio e, em certa medida, a criação ideológica de desigualdades não explica ou propõe modificar – eliminar a gênese de tais desigualdades.
Porém a isso, desvelar como a ideologia atuou no desenvolvimento histórico do capital buscando fundir seus tentáculos no metabolismo social naturalizando as desigualdades crescentes por múltiplas vias, é a contribuição sobressaliente de Capital e Ideologia. Para seu autor, é a ideologia a qual faz o capital e não o inverso. Afirmação polêmica sem dúvida, porém não por isso, se resolve com um sim ou não. Piketty chama a tomar decididamente em conta um aspecto, o ideológico, geralmente secundarizado pelos economistas e pelas correntes marxistas que se construírem – e construíram – uma doutrina de pensamento determinista, absoluta, mecanicista.
Isso, ao mesmo tempo, “significa que há que levar a sério a diversidade ideológica e institucional das sociedades humanas e desconfiar de todos os discursos que buscam banalizar as desigualdades e negar a existência de alternativas” (p.25).
Em meio a uma bruta guerra ideológica pelo domínio das mentes para naturalizar não somente a desigualdade, mas também a ausência de alternativas, Piketty sustenta que existem alternativas a esse mundo de caos e morte e, obviamente, com o desenvolvimento do estudo avança suas bases, pressupostos e sua forma de governo, quando afirma que é possível o que ele define como “socialismo participativo”.
“Olhando para trás – explica – se constata que sempre existiram e sempre existirão alternativas. Seja qual for o estágio de desenvolvimento de uma sociedade, existem múltiplas formas de estruturar um sistema econômico, social e político (...). Sempre existem diversas maneiras de organizar uma sociedade e as relações de poder e de propriedade que se dão em seu seio” (p.20).
O sistema de propriedade, de justiça e o sistema político articulados pela ideologia e a educação, são pilares-chaves a atender para argumentar a proposta alternativa. Nesse empenho, Piketty apoia-se fundamentalmente no que ele considera “ganhos do socialismo democrático” da Europa ocidental no século XX, ou social-democracia para nós. Assim começa a se aclarar no horizonte o seu socialismo participativo para o século XXI: uma versão melhorada do socialismo democrático do século XX, isso é, um aggiornamento da social-democracia europeia com intenções de universalização.
Isso por si só não é condenável, nem desejável, porém certamente, é notório como – nas suas mais 1100 páginas – seus enfoques começam a tomar um tom crescentemente idílico, ao não considerar seriamente os interesses geopolíticos, geoeconômicos, geoespaciais... dos poderosos que os levarão a enfrentar sua proposta. Com educação democrática sobre direitos, justiça e participação o repartir econômico será possível e o bem-estar social poderá efetivamente superar o regime desigualitário do capital, defende.
Porém, o que aconteceria com o capital? Por que seus personagens se resignariam aos desígnios das maiorias participantes e cederiam seus privilégios e seus lucros ante os quais estiveram subordinados e explorados por séculos para lhes extrair as riquezas? Na realidade, a expropriação e redistribuição da riqueza seria um ato de justiça histórica, uma devolução imprescindível para construir bases sólidas de justiça social. Porém, chegado a esse ponto, o planejamento de Piketty fica incompleto, lhe falta sustento, sustância... Pensa à margem dos interesses concretos das classes e das relações concretas de poder existentes, como se por ter razão e ser maioria, lhe deixarão fazer; não é o que a história ensina, precisamente.
Um conceito-chave da sua obra, o do capital, assumido e compreendido tendenciosamente por ele, é truque sujo, não somente ao finalizar seu estudo, mas sim atravessando todo o desenvolvimento de sua análise. O desconhecimento das abordagens e definições chaves de Marx no Capital faz-se evidente e golpeia o leitor quando espera que o autor calque sua análise com sustentação de fundo, indo mais além do capital (de Marx). Porém, Piketty considera que o capital é riqueza, e isso condiciona e modifica todas as leituras e conclusões possíveis de seus enfoques e proposta.
Ao se referir criticamnte aos modelos inspiradores das democracias de cogestão trabalhador-empresário “germânicas e nórdicas”, aponta que há – pelo menos – dois caminhos que parecem interessantes para ir além: “Por uma parte a desconcentração do capital através da fiscalidade progressiva (imposto progressivo), a dotação de capital e a circulação de bens (...) pode facilitar que os empregados adquiram ações de sua empresa e resultam determinantes para conformar uma maioria (acrescentando os votos que o corresponderiam como acionistas à metade que os corresponde como empregados). Por outro lado, as normas que vinculam os aportes de capital e o direito de voto devem ser repensadas. Se alguém investe todos seus fundos em um projeto que o apaixona, não é absurdo que disponha de mais votos que um empregado recém-contratado que, talvez, inclusive se dispõe a poupar dinheiro para colocar em marcha seu próprio projeto” (p.1153).
“A desconcentração do capital e a limitação dos direitos de voto dos grandes acionistas são as duas formas mais naturais de ir mais além da cogestão germânica e nórdica. Há outras, como as propostas recentes no Reino Unido, consistentes em que uma parte dos administradores sejam eleitos por assembleias mistas de empregados e acionistas. Isso permitiria o desenvolvimento de novas formas de deliberação (...). Não teria nenhum sentido encerrar o debate aqui e agora (...). O que é seguro é que existem diferentes maneiras de ir mais além da cogestão e de superar o capitalismo através da propriedade social e a divisão de poder” (p.1155).
Realmente é maravilho ler isso. Por um lado, porque põe de manifesto um tipo de revival da proposta social-democrata europeia do tempo da guerra fria quando desenvolveu essas formas de estado de bem-estar para competir com o socialismo do leste europeu. Particularmente notório foi o caso da Alemanha, separada somente por um muro do outro lado mundo e sua contrastante proposta civilizatória. Isso foi muito chamativo porque – como a história evidenciou –, com o desaparecimento do socialismo, a proposta de bem-estar capitalista desmoronou; já não havia a quem seduzir e a famosa cogestão se tornou desnecessária para sustentar o poder e se desinflou, vejamos a realidade atual da Alemanha e da Europa em geral...
Pelo outro lado, impressiona ler uma proposta supostamente superadora do capitalismo que desconheça as previsíveis reações de classe dos capitalistas e proponha, ou espere, que esses renunciam a seus interesses e a seu poder ancorado nas sociedades proprietárias-desigualitárias por eles construídas, interessados em dar participação aos trabalhadores para repartir – mediante votos – seus bens e lucros em prol de um bem-estar social, alheio ao mundo desenhado por eles.
Possivelmente prevenido diante o que poderia se apreciar como uma postura cândida, Piketty dá um salto e pensa que esta é uma via – não a única – para “superar o capitalismo”, não mediante a construção de outra sociedade, nem pela tomada do poder, mas sim “através” da propriedade social e a divisão do poder, isso é, atravessando a sociedade proprietária desigualitária para uma “propriedade social” e a “divisão do poder” mediante processos participativos ancorados a votações e à descentralização (desmembramento) do capital.
Quando alguém chega a esse ponto basta assistir a qualquer noticiário para compreender que tais propostas não têm nada a ver com a realidade concreta do mundo. Nisso, seu calcanhar de Aquiles manchou todas as suas análises históricas, distorcendo o curso das investigações em direção a conclusões desse tipo, que, mais uma vez, eu gostaria que fossem viáveis; é o que todos nós mais gostaríamos: construir uma maneira de convivência social coletiva baseada na distribuição da riqueza, por equidade social e justiça.
A proposta de Piketty obviamente não pretende eliminar as desigualdades, mas sim colocar limites a insolente diferenciação que existe hoje entre ricos e indigentes, para dar entrada a um mundo intermédio onde existam somente classes médias, em um leque de diferenciação entre a classe média baixa para a alta, porém sem pobreza nem exclusões. É de se parabenizar o autor por seu empenho, porém é preciso dizer também, com toda clareza, que quando sua proposta passa do analítico ao político, as fragilidades epistemológicas afloram e o jogam a um truque por ter construído com toda a sua autonomia absoluta do econômico e consequentemente, ter considerado, por exemplo, que o capital – um categoria central nos seus estudos – é uma soma de dinheiro ou riqueza, desconhecendo que desde Marx está claro que é, antes de tudo, uma relação social (de poder, de propriedade, de domínio/subordinação), que se constitui sobre a base de por a riqueza inicial acumulada em movimento e crescimento a partir da exploração do trabalho humano, para se apropriar do resultado do trabalho alheio que explora e dá maior parte do tempo de trabalho investido em sua produção. Passou mais de um século desde essa definição profunda e não pode ser ignorado porque sim, embora certamente deva ser atualizado, descobrindo e expondo todas as novas maneiras de obter a apropriação da mais-valia com a qual o capital saqueia a humanidade, não apenas a classe trabalhadora.
Porém isso não evita a complexidade atual de sua existência, pelo contrário, a aprofunda: apropriar-se do produto do trabalho humano (físico, intelectual, cultural, espiritual) e do tempo de trabalho para produzi-lo, como fonte inesgotável para o incremente de seus lucros e sua expansão. Em consequência, pensar que os representantes do capital sentar-se-ão em um fórum e colocarão a disposição da “sociedade democrática” as suas riquezas e seus meios de produção e reprodução dos lucros – fonte de seu poder – para diluir em uma “propriedade social”, renunciando agradavelmente ao que consideram que é “sua propriedade”, é uma ingenuidade gigantesca. E se é para os “países desenvolvidos”, ao Sul se torna uma disparate. Aqui não partilham nem um trocado à porta da igreja; não há direitos para educação, saúde, moradia, nem trabalhos com salários dignos, nem as riquezas naturais... tudo é submetido aos interesses do capital que é global e por sua ação de roubo e enriquecimento que também é global. O endividamento e o crédito internacional são também parte desses mecanismos de financiamento espúrio através dos quais nossos povos transferem suas riquezas ao capital (maquinário global de exploração posto em função de obter ganhos do trabalho, os bem e recursos alheios, não uma soma de dinheiro).
A isso há de agregar que o capital é ao mesmo tempo ideologia, ou melhor dizendo é o substrato material das ideologias: a dominante e a dos dominados (os quais potencialmente buscariam sua libertação), e toda a gama de produções ideológicas que surgem e se multiplicam inter-relacionando ambos polos de uma oposição interconstituída e interdependente: burguesia e proletariado – para expressá-lo com categorias históricas amplamente reconhecidas – sabendo que elas apontam atualmente um profuso corpo social muito diverso em cada campo.
A suposta autonomia absoluta entre ideologia e economia, condição definida por Piketty desde o início de sua obra, emerge com força como limitação em sua elaboração das conclusões que sustentam a alternativa, com grande ancoragem no ideológico, cultural-educativo e político, e fraco sustento no econômico, particularmente, nos interesses de classe (propriedade, poder político e geopolítico, poder judicial, meios de produção que hoje são cada vez mais recursos para a vida).
Em resumo, a proposta de Piketty não vai além de uma tentativa de restaurar a social-democracia europeia, acrescentando a participação dos cidadãos em todas as ordens da vida social, política, econômica e cultural. Isso não invalida a importância de sua análise em relação à liberação dos mecanismos de dominação do capital (e a auto-subordinação dos trabalhadores), produzindo irradiação da ideologia da desigualdade para apoiar e reproduzir sociedades desiguais e proprietárias. Mecanismos ideológicos historicamente desenvolvidos para a naturalização, combinados com o sistema político, jurídico, econômico...
No entanto, em relação à América Indo-Afro-Latina, o texto mostra marcadas fraquezas, lacunas ou inadequações. O vazio é perceptível. É necessário destacar, neste caso, o lugar e o papel da ideologia que naturalizou as injustiças sociais na construção colonial e colonialista das desigualdades na história da acumulação e constante crescimento global do capital. Nessas latitudes, não seria suficiente para os trabalhadores, por exemplo, comprar ações e participar de uma assembleia de donos de empresas, para regulá-la; temos mais do que experimentado ao longo da história que, quando o capital é ameaçado, apela a qualquer meio para acabar com os direitos sociais e recuperar seu “comando único” para continuar pilhando e destruindo nossas sociedades, semeando mais do que desigualdades, exclusão social crescente. Tampouco é suficiente ter uma capacidade universal de educação pública – embora seja indispensável. Também é necessário levar em conta os mecanismos de interdependência e interdefinição entre a riqueza dos países do Norte (colonialistas, desenvolvidos e imperialistas) e as condições de empobrecimento e desigualdade, ausência de desenvolvimento, dependência, colonização, pilhagem e crescente submissão – e para múltiplas estradas, dos países do Sul. Mas nada disso faz parte da jornada conceitual do texto nem faz parte de sua proposta conclusiva.
Mas certamente Piketty não “envolve” o leitor com emaranhados teoricistas. Ele continua explicando sua hipótese de trabalho e depois justifica, argumenta. Expõe seus objetivos e, em seguida, percorre um caminho investigativo, compartilhando os argumentos que justificarão e apoiarão suas conclusões. Se somarmos a isso que está expondo as fontes consultadas passo a passo, temos diante de nós um texto cujo conteúdo não expressa apenas “o que Piketty diz”, mas também sobre o que se baseia e por quê. Isso, além da honestidade intelectual - uma categoria escassa em nossos dias, também fala da convicção expressa em suas conclusões e em sua proposta de socialismo participativo. Pode se concordar ou discordar dela, obviamente, mas, em qualquer caso, encontram-se no texto os argumentos e as fontes, fornecidas pelo autor, para favorecer, duvidar, ser contra ou simplesmente defender outra postura.
Tendo em vista que sua metodologia de exibição é clara, que fornece argumentos e fontes, resulta – além de seu conteúdo – em um texto elaborado e exposto, com uma pedagogia que ajuda a pensar. E por isso também se deve agradecer o autor. É uma qualidade rara entre os intelectuais.
Portanto, considero que Capital e Ideologia é um texto valioso. Se você puder acessá-lo, minha sugestão é lê-lo. Aprende-se muito, mesmo que não se concorde com o autor. Também devemos ter em mente que não é de sua responsabilidade se em alguns lugares for tratado quase como um beatle da economia. Isso evidencia – de qualquer forma, a falta de estudos sistemáticos sobre a realidade do capitalismo hoje no mundo e sobre suas justificativas ideológicas, que – apresentam efetivamente a crescente, insuportável e destrutiva desigualdade social como “natural”, um tema estruturante central não apenas do livro, mas da proposta alternativa de superar as sociedades desiguais que Thomas Piketty compartilha neste texto que convido a recorrer.
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O cometa Piketty. Sobre o livro “Capital e Ideologia” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU