01 Novembro 2019
“Numa imagem que parece literatura futurista, mas que na realidade era um relatório sobre infraestruturas, Vladimir Ilich Ulyanov, Lenin, escreveu em 1922 que o comunismo era a eletrificação mais os soviets. Hoje, temos internet e temos esse mal-estar. Mas, desconhecemos qual será a incógnita final dessa equação”, escreve Ramon Aymerich, jornalista, em artigo publicado por La Vanguardia, 27-10-2019. A tradução é do Cepat.
A reunião durou 45 minutos. Milton Friedman, que veio acompanhado de sua esposa, Rose, agradeceu ao general Augusto Pinochet pela hospitalidade e prometeu lhe enviar uma carta com seu diagnóstico sobre a economia chilena. Era 21 de março de 1975. Friedman havia sido convidado para dar uma série de palestras em Santiago do Chile, onde o economista tinha um punhado de seguidores. A Universidade de Chicago, da qual era um dos professores mais populares, mantinha um convênio de colaboração com a Universidade Católica do Chile, graças ao qual jovens economistas haviam ampliado os estudos nos Estados Unidos.
Na carta que enviou semanas depois ao ditador, Friedman aconselhava reduzir drasticamente os gastos públicos (25% em seis meses) e reduzir o peso do Estado. Friedman acrescentava que as medidas provocariam “um período de transição de severas dificuldades”. Mas, Pinochet ficou convencido e o conselho militar concordou que os Chicago Boys assumissem o controle da política econômica.
Fazia menos de dois anos que, em 11 de setembro de 1973, os militares chilenos, com a ajuda da inteligência estadunidense, tinham dado um golpe de Estado que acabou com o governo de esquerda da Unidade Popular e com a vida do presidente democraticamente eleito, Salvador Allende. A repressão foi brutal, com milhares de desaparecidos. O país estava em estado de choque. As reformas causaram mais sofrimento e sacrifícios e só funcionaram seis anos depois. Em 1982, o Chile se abriu ao exterior, se recuperou e iniciou um estágio de crescimento e estabilidade.
O Chile foi importante para tudo o que veio depois. Friedman foi o economista mais representativo da chamada Escola de Chicago, o mais brilhante dos economistas neoclássicos (liberais e neoliberais), um partidário radical do laissez faire e da retração do setor público. O encontro com Pinochet perseguiu Friedman até a morte. Onde quer que fosse, era agredido por vozes que o censuravam por apoiar a ditadura. Friedman rejeitou essa acusação. Mas, nunca negou seus conselhos. “O Chile é um milagre econômico”, dizia.
O thatcherismo não seria possível sem a referência distante, mas intensa, do Chile. Margaret Thatcher venceu as eleições britânicas em maio de 1979. Cinco meses depois, o país protagonista da revolução industrial ativava a privatização de empresas como a British Gaz, British Airways e a British Petroleum... Uma conversa entre Thatcher e Friedrich Von Hayek, outro Nobel como Friedman e um entusiasta de modelos chilenos, foi fundamental na decisão. As ideias de Friedman influenciaram também as políticas de Ronald Reagan, um simpatizante da causa chilena e a última pessoa no governo a deixar cair o ditador no final dos anos 1980, quando o Departamento de Estado forçou Pinochet a renunciar para não se perpetuar no poder.
Entre as reformas dos Chicago Boys, destacou-se a privatização das aposentadorias. O sistema obriga os trabalhadores a descontar 10% do salário bruto, que é gerenciado por empresas externas. O sistema foi anunciado como um sucesso das reformas, mas a baixa capitalização, as taxas de juros próximas a 0% e a falta de concorrência entre as gestoras o tornaram um fiasco. As aposentadorias chilenas estão agora abaixo do salário mínimo. Muitos destinatários as completam com um trabalho precário. E a falta de um mecanismo de solidariedade (para quem não contribui ou pouco contribui) acentuou a desigualdade.
No fim de semana de 19 de outubro, houve protestos no Chile por causa do aumento dos preços do metrô (que já somam 18 mortos). Os transportes, com a moradia, absorvem uma parte importante dos baixos salários chilenos. E os protestos refletem o mal-estar dos setores mais desfavorecidos, mas também da classe média angustiada pela perda de poder de compra, em uma sociedade muito hierarquizada e na qual os serviços públicos, como a saúde, são ruins. Na quarta-feira, Sebastián Piñera, o presidente, admitiu que “os problemas se acumulam há décadas e os diferentes governos não foram e não fomos capazes de reconhecê-los”.
O “milagre chileno” de Friedman, que tanto entusiasmou à direita do último quarto do século XX, está esgotado. O que não significa que a diminuição da classe média seja exclusiva do país andino. Compartilha o fato com outras democracias nas quais o fenômeno é fonte de distúrbios políticos há uma década. Quem melhor o descreveu é Branko Milanovic, ex-economista-chefe do Banco Mundial, que alertou que as políticas públicas que até agora corrigiam a concentração de riqueza não funcionam mais. Como também as classes médias são fracas demais para influenciar governos.
A novidade das últimas semanas é a sucessão de protestos relacionados a esse mal-estar. Existem explosões sociais nos países andinos (além do Chile, protestos por preços no Equador, barricadas na Bolívia, após as eleições, fechamento do Congresso no Peru) que denotam uma grave crise de representação política na região.
Há também um ciclo de protestos que forma um extenso cinturão geográfico que vai da França ao Líbano, de Hong Kong a Barcelona. Em todos existem classes médias em marcha para algum lugar e por diferentes razões: o aumento dos preços do metrô, uma taxa de WhatsApp, mais democracia, uma sentença judicial... Em todas elas, também, o denominador comum é a tecnologia de internet, a rede através da qual se organizam e amplificam os protestos e se tornam mais difíceis de ser prevenidos por parte dos Estados (como evidenciado pelos aplicativos do movimento democrático de Hong Kong e do Tsunami Democrático, na Catalunha).
Numa imagem que parece literatura futurista, mas que na realidade era um relatório sobre infraestruturas, Vladimir Ilich Ulyanov, Lenin, escreveu em 1922 que o comunismo era a eletrificação mais os soviets. Hoje, temos internet e temos esse mal-estar. Mas, desconhecemos qual será a incógnita final dessa equação.
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O mal-estar que percorre o mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU