03 Outubro 2019
A realização da sexualidade não adquire um valor ético quando se faz 'conforme a natureza'.
O artigo é de Luís Corrêa Lima, sacerdote jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Trabalha com pesquisa sobre gênero e diversidade sexual, e no acompanhamento espiritual de pessoas LGBT.
Os últimos papas apontaram a necessidade de se encontrar um terreno teórico comum, aceito por crentes e não crentes, para se tratar de questões mais urgentes da humanidade, como a ecologia, a paz e a convivência entre as raças e entre as culturas. A filosofia é sugerida como possibilidade neste sentido. Na busca de fundamentos de uma moral compartilhada com outros, Joseph Ratzinger afirmou a importância de se voltar a estudar a lei natural, ainda que este nome não seja o melhor, em busca de bases para se determinar responsabilidades comuns.
O conceito de lei natural, oriundo da Antiguidade greco-romano, enraizou-se na tradição judaico-cristã. Na Bíblia, o mundo é criação divina, feito segundo a razão do Criador, de modo a manifestar Sua sabedoria. “No princípio era o Verbo (Lógos)” – assim começa o Evangelho de João. Supõe-se que há na criação uma racionalidade que pode ser conhecida pelo ser humano, e orientar a sua ação. Para o apóstolo Paulo, há uma lei inscrita no coração humano que orienta os juízos éticos, o bem a ser feito e o mal a ser evitado. A lei natural adquiriu forte peso na teologia católica e no magistério, tornando-se referência imprescindível. O ensinamento moral da Igreja a utiliza amplamente para tratar de questões sociais, bioética e sexualidade, fundamentando posições bem determinadas a respeito de gênero, modelos de família, prática sexual, fecundação, contracepção, divórcio e união homoafetiva.
Não se pode negar que o conceito de lei natural é hoje problemático, seja pelo abandono da metafísica no pensamento contemporâneo, seja pela moral fixista à qual se atrelou. Como papa, Ratzinger promoveu o estudo e o debate deste tema, reconhecendo a crise existente e propondo caminhos de superação. Para ele, a lei natural é como a nascente de onde brotam os direitos humanos fundamentais e os imperativos éticos (disponível aqui). Ela é o baluarte contra o arbítrio do poder e os enganos da manipulação ideológica. Os cientistas têm uma contribuição importante a dar. Além da capacidade de domínio sobre a natureza, eles podem ajudar a compreender a responsabilidade do ser humano pelo seu semelhante e pela natureza que lhe é confiada. Assim, é possível desenvolver um “diálogo fecundo entre crentes e não-crentes; entre filósofos, juristas e homens de ciência”. Este diálogo fecundo, conclui ele, oferece também ao legislador um material precioso para a vida pessoal e coletiva.
Um fruto maduro do empenho de Bento XVI é o documento de teólogos do Vaticano sobra a busca de uma ética universal, propondo um novo olhar sobre a lei natural (disponível aqui). Nele se abrem caminhos novos que atualizam este antigo conceito. A expressão lei natural, admite-se, é fonte de numerosos mal-entendidos hoje. Por vezes, ela evoca simplesmente uma submissão resignada e passiva às leis físicas da natureza, quando o ser humano busca, e com razão, dominar e orientar estes determinismos para o seu bem. Por vezes, ela é apresentada como um dado objetivo que se impõe de fora da consciência pessoal, independentemente do que elabora a própria razão e a subjetividade. Ela é suspeita de introduzir uma forma de heteronomia insuportável à dignidade da pessoa humana livre, isto é, uma lei imposta de fora.
Outras vezes também, ao longo de sua história, a teologia cristã justificou muito facilmente com a lei natural posições antropológicas que, em seguida, mostraram-se condicionadas pelo contexto histórico e cultural. A reflexão moral evoluiu em questões como a escravatura, o empréstimo a juros, o duelo e a pena de morte. Coisas que eram permitas passaram a ser proibidas, e vice-versa. Há uma compreensão melhor da interpelação moral. A mudança da situação política ou econômica traz uma reavaliação das normas particulares que foram estabelecidas anteriormente. Em outras palavras, é reconhecido o enraizamento histórico da moral, rejeitando-se uma moral fixista. Hoje, prossegue o documento, convém propor a lei natural em termos que manifestem melhor a dimensão pessoal e existencial da vida moral.
Sobre sexualidade e lei natural, convém considerar o que disse Ratzinger em uma conferência em 1968 (disponível aqui). A castidade, disse ele, não é uma virtude fisiológica, mas social. Trata-se de humanizar a sexualidade, não de “naturalizá-la”. A sua humanização consiste em considerá-la não como um meio de satisfação privada, uma espécie de entorpecente ao alcance de todos, mas como um convite ao homem para sair de si mesmo. A realização da sexualidade não adquire um valor ético quando se faz “conforme a natureza”, mas quando ocorre de acordo com a responsabilidade que tem o ser humano diante do seu semelhante, diante da comunidade humana e diante do futuro humano. Para avaliar a sexualidade, pode-se dizer que ela reflete e concretiza o dilema fundamental do homem. Ela pode representar a total libertação do eu no tu, ou também a total alienação e fechamento no eu.
Certamente a oposição que ele faz à “naturalização” da sexualidade se refere aos mal-entendidos sobre a lei natural, referidos acima. E para esclarecer sua tese, Ratzinger recorre ao Antigo Testamento, onde há dois grupos de normas relacionadas à sexualidade: morais e cúlticas. Para o primeiro grupo, apenas o aspecto social era decisivo e o fisiológico não foi levado em consideração. Para o segundo, apenas o aspecto fisiológico importava, mas sem nenhuma valência moral. “A desgraça da teologia moral eclesiástica”, assevera ele, consistiu em não poucas vezes ter convertido os preceitos cúlticos do Antigo Testamento em obrigações morais. Assim a passagem da antiga à nova lei não foi mais que um mal-entendido.
Bem, nem tudo o que Ratzinger ensinou como cardeal e depois como papa vai nesta linha. Mas com base nestas reflexões, pode-se ir além e se perguntar: há pontos da moral que revelam carência de um diálogo fecundo entre crentes e não crente, entre filósofos, juristas e homens de ciência? Há ainda submissão passiva às leis físicas da natureza, imposição à consciência de uma lei de fora, ou naturalização indevida de posições antropológicas? Há condutas responsáveis no campo da sexualidade que não são devidamente reconhecidas e valorizadas? Onde estão as desgraças da moral eclesiástica, em que não se passou da antiga à nova lei?
Há quem não goste de Ratzinger. Mas seu pensamento tem elementos instigantes que podem abrir perspectivas muito boas.
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Ratzinger, lei natural e sexualidade: para abrir perspectivas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU