04 Julho 2018
"Passar do termo sodomia à sigla LGBT é um percurso histórico que vai da total execração ou eliminação do outro à estima e à cidadania", escreve Luís Corrêa Lima, sacerdote jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio, que trabalha com pesquisa sobre diversidade sexual e de gênero, e no acompanhamento espiritual de pessoas LGBT.
Há poucos dias, surgiu uma novidade: um texto oficial da Igreja Católica (Nota de IHU On-Line: trata-se do documento preparatório para o Sínodo dos Bispos sobre os Jovens, a ser realizado no segundo semestre deste ano), emitido pelo Vaticano, utiliza pela primeira vez a sigla LGBT.
Em muitos lugares se comemora o dia do orgulho LGBT em 28 de junho, data que recorda os protestos de grande repercussão ocorridos há 49 anos junto ao bar Stonewall, em Nova Iorque. Há poucos dias, surgiu uma novidade: um texto oficial da Igreja Católica, emitido pelo Vaticano, utiliza pela primeira vez a sigla LGBT. Trata-se do Sínodo dos Bispos convocado pelo papa Francisco, para tratar neste ano do tema da juventude contemporânea, relacionando-a com fé e vocação.
Bispos católicos de todo o mundo e seus assessores se reunirão por mais de três semanas em Roma, em outubro, com esta finalidade. A preparação deste evento teve um amplo questionário enviado a todas as dioceses, tratando não só dos jovens que frequentam a Igreja, mas também daqueles que estão distantes ou alheios. Com as respostas obtidas, foi elaborado um documento preparatório no qual aparece a sigla. Eis o trecho: “Alguns jovens LGBT, através de várias contribuições feitas à Secretaria do Sínodo, desejam beneficiar-se de maior proximidade e experimentar um maior cuidado da Igreja, enquanto algumas conferências episcopais questionam o que propor aos jovens que em vez de formar uniões heterossexuais decidem formar uniões homossexuais e, acima de tudo, querer estar perto da Igreja”.
Pode-se perguntar se o emprego desta sigla é ou não sinal de mudança, e em que medida. A escolha de termos envolve conceitos e valores, e não é neutra. Por exemplo, há pouco mais de três séculos as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia tratavam as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo como sodomia, um crime horrendo que provoca tanto a ira de Deus a ponto de (supostamente) causar tempestades, terremotos, pestes e fomes que destruíram cidades inteiras. Era algo indigno de ser nomeado, um “pecado nefando” do qual não se deve falar, e muito menos se cometer. Este documento do Brasil colonial refere-se ao relato bíblico de Sodoma e Gomorra, cidades cujos habitantes recusaram a hospitalidade aos que visitavam o patriarca Ló, a ponto tentarem violentá-los sexualmente. Tal pecado clamou aos céus e resultou no castigo divino destruidor (Gn 19). Com frequência, a violência sexual era uma forma de humilhação imposta por exércitos vencedores aos vencidos. Inicialmente, o delito de Sodoma era visto como “orgulho, alimentação excessiva, tranquilidade ociosa e desamparo do pobre e do indigente”. Através do Profeta, o Senhor diz: “Tornaram-se arrogantes e cometeram abominações em minha presença” (Ez 16, 49-50). Vários séculos depois, tal pecado foi identificado com o homoerotismo, mas na origem nada tem a ver com o amor entre pessoas do mesmo sexo, ou mesmo com relações sexuais livremente consentidas entre pessoas adultas do mesmo sexo. Tribunais civis e eclesiásticos, como a Inquisição, julgavam os acusados deste delito. Os culpados eram entregues ao poder civil para serem punidos, até mesmo com a morte.
O termo homossexualidade, referindo-se à atração entre pessoas do mesmo sexo, surgiu na segunda metade do século XIX, criado pelo escritor austro-húngaro Karl-Maria Benkert. Ele acusou a lei prussiana sobre a sodomia de violar os direitos do homem, proclamados na Revolução Francesa, pois nesta nova tradição os atos sexuais da vida privada mutuamente consentidos não deviam cair na alçada da lei criminal. A lei prussiana também era acusada de favorecer chantagem e extorsão de dinheiro feita a homossexuais, que frequentemente os levava ao suicídio. Foi o que tinha acontecido com um amigo de juventude deste escritor.
Benkert defendeu que a homossexualidade é inata e imutável, contrariando a opinião dominante de que os homens praticavam sodomia apenas por terem mau carácter. O novo termo tornou-se parte de seu sistema classificatório de tipos sexuais para substituir a palavra pederasta, então em voga, etimologicamente designando homem que tem relacionamento erótico com menino. Aos poucos, dentro do processo de secularização em ambientes intelectuais, o vínculo de sodomia a crime e pecado foi trocado pelo vínculo de homossexualidade a doença e patologia, que não merece castigo e penitência, mas tratamento psiquiátrico ou cura médica. Terremotos, tempestades e pestes, antes atribuídos a intervenções divinas diretas, passaram a ter outras explicações com base em causas naturais. Mas o termo homossexualidade acabou prisioneiro da esfera interpretativa de perversão, tara ou neurose sexual, constituindo-se um capítulo à parte nos manuais de psicopatologia, ao lado de outras doenças mentais.
Só depois surgiu o termo gay, que vem do inglês e significa primeiramente alegre e jovial, com uma conotação positiva. Esta palavra provavelmente se origina do provençal e permanece na língua catalã para designar a arte da poesia, um amante e uma pessoa abertamente homossexual. O termo se popularizou nos Estados Unidos através do cinema e se tornou uma bandeira de luta por emancipação e cidadania, desvinculado da conotação patológica. Muitos anos depois de Stonewall, as iniciais de lésbicas, bissexuais e transgêneros foram agregadas e formaram a sigla atual.
O papa Francisco é o primeiro pontífice a utilizar publicamente o termo gay, dando-lhe também uma conotação positiva: “se uma pessoa é gay, busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar”? Anos depois, ele ampliou a pergunta: “quem somos nós para julgar”? Ou seja, também os outros devem se abster de julgamento. A um jovem gay chileno, o papa disse em particular que Deus o fez e o ama assim, e que este jovem deve ser feliz como é.
Chamar o outro como ele (ou ela) quer ser chamado é sinal de respeito e de escuta atenta. É o primeiro passo para compreendê-lo como ele quer ser compreendido, e estimá-lo como ele quer ser estimado. Assim como no diálogo ecumênico ou inter-religioso, isto é fundamental para o entendimento mútuo e a colaboração fecunda. Passar do termo sodomia à sigla LGBT é um percurso histórico que vai da total execração ou eliminação do outro à estima e à cidadania. Junto às palavras, acompanham conceitos, ideias, valores e processos sociais. Oxalá o Espírito de Deus ajude a Igreja a devidamente compreender, amar e cuidar destes seus filhos e filhas.
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A Igreja e a Sigla LGBT - Instituto Humanitas Unisinos - IHU