06 Junho 2018
"A compreensão do homem muda com o tempo e assim também a consciência do homem aprofunda-se".
O artigo é de Luís Corrêa Lima, sacerdote jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Trabalha com pesquisa sobre diversidade sexual e de gênero, e no acompanhamento espiritual de pessoas LGBT.
Um impactante e admirável comentário do papa Francisco repercutiu amplamente. O chileno Juan Carlos Cruz, vítima de abuso sexual por um sacerdote, foi recebido pelo pontífice, com quem conversou longamente em particular. Francisco lhe disse: “Juan Carlos, que você é gay não importa. Deus te fez assim e te ama assim, e eu não me importo. O Papa te ama assim. Você precisa estar feliz como você é” - conforme contou Cruz ao jornal El País. Este comentário de valor inestimável não é um pronunciamento oficial, constando no site do Vaticano, mas uma conversa particular do papa. Deste modo, não pode ser confirmado e nem negado pelo porta-voz da Santa Sé. De qualquer maneira, o quanto isto condiz com o ensinamento e a prática de Francisco em relação aos LGBT? Que novidade traz para a Igreja Católica?
Francisco teve antes outros dois encontros importantes. No início de 2015, ele recebeu em sua casa a visita do transexual espanhol Diego Neria e de sua esposa Macarena. A história de vida de Diego tornou-se então conhecida, mostrando o preconceito atroz que muitos transexuais sofrem, bem como o seu enfrentamento. Ele revela que sua conversa com o papa lhe trouxe uma profunda paz. Naquele mesmo ano, Francisco recebeu seu antigo aluno e amigo gay Yayo Grassi, e seu esposo. Grassi já o tinha apresentado ao papa dois anos antes. Este relacionamento nunca foi problema na amizade entre Grassi e Francisco. Certa vez em entrevista perguntaram ao papa o que ele diria a uma pessoa transexual, e se ele como pastor e ministro a acompanharia. Francisco respondeu que tem acompanhado pessoas homossexuais e transexuais, lembrando o caso de Diego, e exortou: “as pessoas devem ser acompanhadas como as acompanha Jesus. [...] em cada caso, acolhê-lo, acompanhá-lo, estudá-lo, discernir e integrá-lo. Isto é o que Jesus faria hoje” (1).
Diego não foi repreendido pelo papa por ter feito o processo de transexualização, nem por ter se casado depois com uma mulher. Grassi não ouviu de Francisco que a tendência homossexual é objetivamente desordenada, podendo conduzir a atos intrinsecamente desordenados, conforme o Catecismo (2). Com isto, não se pode dizer que o papa menospreza os documentos doutrinários da Igreja, mas nesta questão ele utiliza os elementos que são pastoralmente mais importantes, como a acolhida da pessoa e a autonomia de sua consciência. Francisco também tem clareza sobre a evolução da doutrina, baseada em uma correta compreensão da tradição. Apoiando-se em São Vicente de Lérins, o papa diz:
“A compreensão do homem muda com o tempo e assim também a consciência do homem aprofunda-se. Pensemos no tempo em que a escravatura era aceite ou a pena de morte era admitida sem nenhum problema. Assim, cresce-se na compreensão da verdade. Os exegetas e os teólogos ajudam a Igreja a amadurecer o próprio juízo. Também as outras ciências e a sua evolução ajudam a Igreja neste crescimento na compreensão. Existem normas e preceitos eclesiais secundários que noutros tempos eram eficazes, mas que agora perderam valor ou significado. Uma visão da doutrina da Igreja como um bloco monolítico a defender sem matizes é errada” (3).
O papa não elencou todas as normas e todos os preceitos secundários, que em meio à evolução da teologia e das ciências perderam seu valor. Mesmo porque este processo é dinâmico, envolve consensos eclesiais e sempre articula permanências e mudanças. Quando o Catecismo completou 25 anos, Francisco asseverou: “Não se pode conservar a doutrina sem a fazer progredir, nem se pode prendê-la a uma leitura rígida e imutável, sem humilhar a ação do Espírito Santo” (4).
Um exemplo importante deste progresso é o Sínodo dos Bispos sobre a família, que lançou um amplo debate sobre as novas configurações familiares, incluindo as uniões do mesmo sexo, contemplando tantas pessoas que vivem numa situação chamada “irregular”. Na Exortação Pós-sinodal, o papa ensina que estas pessoas podem viver na graça de Deus, amar e também crescer na vida da graça e do amor, recebendo para isso a ajuda da Igreja que pode incluir os sacramentos. Por essa razão, deve-se lembrar aos sacerdotes que o confessionário, onde comumente se ministra o sacramento da penitência, não é uma sala de tortura, mas o lugar onde se experimenta a misericórdia do Senhor. E a Eucaristia não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento aos que necessitam (5).
Ao dizer “Deus te fez assim”, evoca-se a bondade da criação. Tudo o que o Senhor criou é bom, incluindo os LGBT. Ninguém deve ter vergonha de ser quem é, de ser como Deus lhe fez. A vida e a natureza destas pessoas expressam algo do desígnio divino. Em sua história também age o Espírito Santo, resgatando a autoestima, dando coragem para enfrentar a homofobia e a transfobia, iluminando o discernimento e comunicando a força para o bem. Oxalá não falte aos discípulos de Cristo a devida sensibilidade para a ação surpreendente do Espírito. Oxalá não lhes falte a coragem de se desprenderem de leituras rígidas e imutáveis da doutrina que humilham esta ação divina.
Notas:
(1) - Conferência de imprensa do santo padre durante o voo Baku-Roma. 2 out. 2016. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/october/documents/papa-francesco_20161002_georgia-azerbaijan-conferenza-stampa.html>.
(2) – Catecismo da Igreja Católica, n. 2357-2358.
(3) - Entrevista ao Papa Francisco. Pe. Antonio Spadaro. 19 ago. 2013. Disponível em: <https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2013/september/documents/papa-francesco_20130921_intervista-spadaro.html>.
(5) – Amoris Laetitia, n. 305 e nota 351. Disponível em: <https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia.html>.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Deus te fez e te ama assim - o papa e os LGBT - Instituto Humanitas Unisinos - IHU