15 Março 2019
Mesmo sem ser nomeada a montanha em que Jesus se transfigurou jamais montanha alguma se revestiu de tanto esplendor e tanta glória. Nela vemos hoje reunidas as três maiores figuras da profecia bíblica: Moisés, Elias e Jesus, sendo que a voz do Pai confirma o estatuto único de Jesus. E em seguida, ver "Jesus sozinho" é o mesmo que vê-lo em sua beleza e em sua dor: a bela face do Cristo e a face humilhada do Servo, que nem figura humana tem mais. De certo modo, o segredo que o Senhor impôs aos discípulos não foi inteiramente observado: pois não é a esperança da Ressurreição, antes de tudo, a vitória secreta da fé?
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 2º Domingo da Quaresma - Ciclo C (17 de março de 2019). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Referências bíblicas:
1ª leitura: «Naquele dia, o Senhor fez aliança com Abraão» (Gênesis 15,5-12.17-18)
Salmo: Sl. 26(27) - R/ O Senhor é minha luz e salvação.
2ª leitura: «O Cristo transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso» (Filipenses 3,17-21;4,1ou 20-4,1)
Evangelho: «Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência» (Lucas 9,28-36)
Misteriosa a oração de Jesus! Ele que é um só com o Pai, sendo Ele mesmo pessoa divina! Mas, nele, passou-se Deus à natureza e à condição de um ser humano semelhante a cada um de nós. Nele, nossa liberdade de seres criados deve escolher tornar-se uma só com a liberdade divina. Por isso há um caminho a se percorrer até que possamos nos juntar à glória da qual Ele veio.
Intrigados com todo o tempo que se entrega à oração, os discípulos lhe pedem que os ensine a rezar (Lucas 11). Em resposta, Jesus lhes dá o Pai nosso. Mas será que estas poucas frases resumiriam as suas prolongadas orações? Sou tentado a acreditar que sim, conquanto seja necessário extrair destas breves fórmulas todo o seu significado. Visam ao feliz desenvolvimento de nossas existências; projetam-nos para uma saída gloriosa dos trabalhosos e desconcertantes caminhos que percorremos. E eis que esta glória definitiva inscreve-se furtivamente na face de Jesus e em suas vestes, sobre este corpo humano em que vive para sempre: união perfeita entre Deus e a humanidade.
Os três discípulos entreveem-no numa espécie de êxtase do qual, naquele momento, não percebem o significado, mas que os desperta e os deixa deslumbrados. Pedro, esquecendo o caminho que ainda tinham de percorrer, quer instalar-se ali e levantar três tendas, no resplendor da luz divina. A sombra da nuvem, que é a mesma que acompanhou os Hebreus em sua longa e dura caminhada de Êxodo, é que vai lhe responder. E, à felicidade do versículo 33 sucede o terror do versículo 34. Vinda da nuvem, cujas trevas contrastam com a glória da transfiguração, a voz de Deus se fez ouvir, para glorificar Jesus. Este, imediatamente, volta a ser o Jesus de todo dia.
Moisés, quando desceu da montanha, tinha o rosto resplandecente de luz. Não foi este o caso de Jesus. A luz da transfiguração perdeu-se na nuvem; daí em diante só vai se tornar visível através da fé nesta Palavra que acaba de designá-lo como Filho.
Furtivamente, Jesus acaba de ser revelado como a luz do mundo, luz que brilha nas trevas de nossas vidas, mas (,) luz que estas trevas jamais poderão apagar (ver João 1,1-14).
Acabamos de mencionar Moisés. Pois, justamente, ei-lo aqui na montanha junto com Elias. Estes dois homens representam, Moisés, a Lei e, Elias, os Profetas; ou seja, tudo o que, na Bíblia, comanda a história. Falam com Jesus a respeito do «Êxodo que deve cumprir até Jerusalém». A Escritura toda, de diversas maneiras, é preparação e imagem da Páscoa de Cristo. É que toda a história humana caminha para este mesmo epílogo. Epílogo do qual esperamos ainda a última revelação, expressa na Bíblia pelo tema da volta do Cristo.
Não esqueçamos que o relato da transfiguração está situado entre os dois primeiros anúncios da Paixão e que a ida para Jerusalém e a Páscoa vem mencionada logo nas primeiras linhas do capítulo seguinte. A luz que inunda Jesus na montanha é uma profecia de sua ressurreição. Por isso, sem dúvida, na versão de Mateus (17,9), Jesus diz aos três discípulos: «Não conteis a ninguém esta visão, até que o Filho do homem ressuscite dos mortos.» Em sua segunda carta (1,16-21), Pedro nos fala da transfiguração como do fundamento de sua fé. Porque o Cristo ressuscitado não emitiu nenhuma luz, ficando difícil identificá-lo: não se o reconhecia à primeira vista.
Pedro, Tiago e João foram chamados juntos, quando ainda eram pescadores de peixes. Foram eles os três primeiros discípulos. Sem qualquer hesitação, deixaram seus barcos, suas redes e até mesmo seu pai. Vamos encontrá-los juntos na transfiguração e, também, no Getsemani. Quando foram chamados, conforme vimos, enquanto toda a multidão escutava Jesus, eles se ocupavam com outra coisa. Na transfiguração, assim como em Getsemani, eles dormem, o que é um modo de ausentar-se.
É verdade que, nos dois casos, é noite. Mas noite não é somente uma consequência da rotação da terra: na Bíblia, é também alusão às trevas que cobriam o abismo do nada, antes que Deus criasse a luz e a separasse das trevas para dar lugar ao primeiro dia. O sono noturno é uma imagem da morte: noite dos sentidos, noite da inteligência, noite do espírito.
Os três discípulos retiram-se da marcha da história e do itinerário da salvação da humanidade. Eles, no fundo, retornam ao nada original. Mas é aí que a luz vem visitá-los.
Em Lucas 24,9-12, foram as mulheres que tiveram a coragem de ir ao túmulo, que encontraram aberto e vazio, que os despertaram das trevas a que estavam aprisionados desde o Getsemani. O que aconteceu aos três apóstolos é típico do que acontece com todos nós. Há momentos privilegiados em que, com frequência sem aviso prévio, vemos claro. Então, a luz nos inunda; mas, no instante seguinte, caímos nas trevas da incompreensão. É quando, de olhos fechados, temos de escolher acreditar nas palavras que temos ouvido e que nos designam este Jesus como o Filho de Deus.
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Um dia de glória - Instituto Humanitas Unisinos - IHU