06 Setembro 2012
De repente, nos tornamos surdos aos gritos dos que sofrem, dos que passam fome, dos homens, mulheres e crianças praticamente reduzidos à escravidão. E permanecemos mudos ao invés de tomar a sua defesa: será que não temos “outra coisa a fazer”?
A reflexão é de Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 23° Domingo do Tempo Comum - ciclo B (9 de setembro de 2012). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara, e José J. Lara.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Is 35,4-7a
2ª leitura: Tg 2,1-5
Evangelho: Mc 7,31-37
Temos dificuldade em compreender porque os textos evangélicos insistem tanto na geografia. Para os primeiros cristãos isto devia ter um significado maior do que para nós. A Decápole, na origem, era a confederação de dez cidades de cultura grega, a sudeste do Lago de Tiberíades. Os judeus eram ali pouco numerosos. E o que Jesus foi fazer lá? Não foi ele enviado apenas “aos filhos perdidos da casa de Israel”, como ele mesmo disse à cananéia que lhe pediu para curar a filha endemoninhada (Mateus 15,24)? Em Marcos, a passagem paralela a esta vem imediatamente antes do texto de hoje. Os evangelistas insistem, pois, nesta expedição de Jesus a um país pagão. Mas as palavras e os atos de Jesus se destinavam a revelar aos judeus que os anúncios feitos pelos profetas haviam se cumprido e que Deus tinha vindo visitar seu povo. Como Jesus fosse “Filho de Davi”, sua obra devia dizer respeito a Israel apenas. Por isso talvez é que ele leve o surdo-mudo “a sós, para longe da multidão”. E por isso também Marcos insiste na advertência de que não se divulgue a cura realizada. Devemos perceber que existe aí algo de muito importante: diante do sofrimento humano, seja lá qual for a cultura, pertencimento ou religião da pessoa que sofre, o Cristo não pode deixar de intervir. Ele vai além dos limites da sua missão. Não há então mais nenhuma regra, nem Lei, nem fronteiras. Deus é amor, nada mais que amor. E o amor não se justifica nem tem que se justificar. A cura deste estrangeiro pode nos ajudar a descobrir a gratuidade de nossas existências.
Que gestos mais estranhos!
Em geral, basta uma palavra de Jesus para que a cura se realize. Mesmo assim, nem sempre ela é atribuída à ação de Jesus, mas à fé do beneficiário. Lembremos todos os “a tua fé te salvou” que encontramos nos evangelhos. Aconteceu até mesmo de a cura ter sido obtida à distância, como o servo do centurião (Mateus 8,15 e Lucas 7,6): Jesus nem chegou a ver aquele homem. Neste caso, “trouxeram-lhe um surdo-mudo” para que impusesse as mãos sobre ele, gesto muito frequente e carregado de significação. Antes de qualquer coisa há o contato, que é uma espécie de benção. O contato sugere que alguma coisa passe de um para o outro. É um gesto tão eloquente quanto o de tomar pela mão uma pessoa prostrada para fazê-la levantar-se (Mateus 9,25): é uma ressurreição. Mais surpreendentes ainda são a cura da mulher que toca as vestes de Jesus sem que ele saiba ou sem que o perceba (Mateus 9,20) e esta cura aqui, do surdo-mudo de nossa leitura. Há quem pense em magia. Já a imposição das mãos pode ser tomada, de um modo meio torto, como sendo um rito eficaz por si mesmo. De fato, este gesto é uma linguagem que diz muito de um conviver entre quem realiza e quem recebe. Significa o dom que aquele que produz a cura faz de seu próprio poder: dom de si mesmo. Temos aí uma das formas do amor. Os gestos de Jesus para com o surdo-mudo podem ser tomados nesse mesmo sentido. Jesus passa a si mesmo para o corpo da pessoa enferma. Daí para frente a pessoa irá ouvir com os ouvidos de Jesus e falar por sua boca.
Ouvir e falar
Os milagres de Jesus são sinais: seu significado ultrapassa a sua materialidade. As doenças e enfermidades que eles curam são “teológicas”. Quem é que tem ouvidos e não escuta, tem boca e não fala, tem olhos e não vê? É, em primeiro lugar, o ídolo. Mas o que é o ídolo? É, em última instância, a imagem idealizada de si mesmo. Mas, se um ídolo ganha a aparência da pessoa que o construiu e é esta pessoa que lhe presta culto, esta mesma irá acabar se parecendo com aquela imagem: também ela tem boca, mas não fala; tem ouvidos, mas não ouve (ver Salmo 115 e 135). Em que isto pode se referir a nós, ou à maior parte de nós, que não adoramos estátuas? Ora, podemos muito bem sacrificar tudo à imagem mental que fazemos de nós mesmos, ao culto de nossa importância social, de nossa conta bancária, de nossa notoriedade, da autoridade que exercemos sobre os subalternos. Assim, consumismo, dinheiro e influência podem se tornar equivalentes aos ídolos. Tanto como as ideologias, estes ídolos sangrentos. De repente, nos tornamos surdos aos gritos dos que sofrem, dos que passam fome, dos homens, mulheres e crianças praticamente reduzidos à escravidão. E permanecemos mudos ao invés de tomar a sua defesa: será que não temos “outra coisa a fazer”? Jesus vai até à Decápole, praticamente ao estrangeiro, para curar um pagão de seu fechamento, de sua dificuldade em se relacionar, escutar, trocar palavras com os outros. E o que diz Jesus para curá-lo? “Abre-te.” É todo um programa!
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