30 Agosto 2012
É o exercício da liberdade que está, portanto, na origem desta degradação da nossa relação com Deus. Não pode então haver impureza sem liberdade. Temos de escolher uma parte de nós mesmos, para privilegiá-la.
A reflexão é de Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 22° Domingo do Tempo Comum (2 de setembro de 2012). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara, e José J. Lara.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Josué 24,1-2.15-18
2ª leitura: Tiago 1,17-18.21-22.27
Salmo 14
Evangelho: Mc 7,1-8.14-15.21-23
O que significa “ser puro”?
Nada que vem do exterior pode tornar o homem “impuro”, ou seja, pode impedi-lo de seguir realizando o acabamento de sua criação como imagem de Deus. “Puro” é o que não é dividido nem foi alterado por nenhuma mistura de finalidades e intenções. É assim que, na linguagem corrente, falamos em “vinho puro”. Homem impuro é “o que se senta entre duas cadeiras”, o homem do “sim-não”, do “sim, mas”. Por isso o Salmo 86, em seu versículo 11, diz: “unifica o meu coração para que ele tema (reverencie) o teu nome”. A pureza legal é totalmente diversa: consiste na prática fiel dum certo número de ritos que não são, aliás, destituídos de significado. O problema de todo rito é o de podermos nos ater- apenas aos gestos, sem chegar ao que eles significam. A ablução exterior, o banho, significa que escolhemos a pureza interior, tal como descrito. Vai além da simples prática higiênica do banho que, deste modo, fica imbuída de seu sentido religioso. Para não nos deixar esquecer este sentido, os gestos rituais fazem-se muitas vezes acompanhar de palavras que explicitam o que buscamos com nossas práticas. Temos o coração dividido, impuro, quando nos voltamos ao mesmo tempo para Deus e para os ídolos. A enumeração que Jesus propõe aos discípulos, no final da leitura, corresponde às práticas idolátricas: culto do dinheiro, do sexo, da vontade de dominar, etc. Estas são as “potestades e dominações” que, como diz Paulo, Cristo colocou sob os seus pés.
A uma só vez, assassinos e “puros”.
É claro que as potestades e dominações podem nos agredir, e com muita violência, do exterior. De fato, não estamos a salvo dos seus danos. Mas não foi Jesus quem disse que, na verdade, o que vem de fora não nos pode fazer mal nenhum? Mas não é bem assim. Na realidade, os ídolos podem nos fazer muito mal. E o próprio Cristo foi vítima deles, quando a inveja e o medo de perder o poder, levaram os chefes do seu povo a crucificá-Lo. Quando Jesus diz que seja lá o que for que venha a nós ou caia sobre nós, vindo do exterior, não pode nos alterar, está explicando exatamente o que vai se passar na cruz: nada o fará separar-se do amor que é a sua própria natureza. Ao contrário, quanto mais a perversidade humana se expande, mais este amor revela a glória da sua gratuidade absoluta. É aí que descobrimos o que seja o amor “em estado puro”. Quando, juntos, somos capazes de admitir isto “intelectualmente”. Mas tudo fica mais complicado quando temos de perdoar concretamente alguma afronta ou hostilidade. O desejo de vingança logo se manifesta, quando somos confrontados com a injustiça. É então que o “impuro” em nós toma a palavra. Ao lado do discípulo do Cristo, revela-se em nós outro personagem, diferente; um “eu mesmo” que estivera oculto até aqui, dissimulado “por detrás de nossa porta”, assim como o pecado de que fala Gênesis 4,7, a propósito da pulsão homicida de Caim.
O único mandamento
Jesus repreende os escribas por deixarem de lado o mandamento de Deus para se apegarem à tradição dos homens. Conscientemente ou não, estes senhores estão de fato exercendo um julgamento, ao escolherem isto mais do que aquilo. É o exercício da liberdade que está, portanto, na origem desta degradação da nossa relação com Deus. Não pode então haver impureza sem liberdade. Creio que foi Malraux quem disse que temos de escolher uma parte de nós mesmos, para privilegiá-la. Não é verdade que tudo que vem do coração do homem tenha o mesmo valor. Há em nós personagens aos quais não temos obrigação de conceder a palavra, conforme pensam alguns ideólogos da espontaneidade. Espontaneidade não necessariamente é verdade. O evangelho termina com uma enumeração de condutas perversas que combinam com as proibições do Decálogo. Todas são proibições que, afinal, se referem a diversas formas de assassinato: assassinato de Deus, assassinato do Filho do homem ou de não importa qual homem. Em face disto, o mandamento único (note-se o uso do singular no versículo 8), o mandamento do amor a Deus evidentemente, só pode ser observado através do amor aos homens e se opõe a todas as figuras do homicida. Os ritos e celebrações diversas, as cerimônias, jejuns, abstinências etc. perdem qualquer valor, se não forem expressão desta escolha fundamental e um encorajamento a praticá-la.
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