Dorothy Stang: “Quem derramou o seu sangue pela causa mais nobre, o Reino de Deus, nunca pode ser esquecido”

Nesta página especial, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU lembra os 20 anos do martírio da religiosa e missionária da Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namu. “A memória dos mártires faz parte da história e liturgia de nossa Igreja”, lembra Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu

Arte: Marcelo Zanotti

Por: Patricia Fachin | 10 Fevereiro 2025

“No dia 11 de fevereiro, ela me telefonou novamente, contando-me que gostaria de ir para Esperança [um dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável na região de Anapu, onde Dorothy foi assassinada] para ajudar as 12 famílias de agricultores que tiveram suas casas e suas colheitas queimadas intencionalmente, pois não tinham para onde ir nem o que comer. Ela disse que estava levando comida, lençóis e até mesmo martelos e pregos para reconstruir, para dar-lhes apoio e esperança. Porém, ela me disse naquele momento: ‘Eu estou um pouco nervosa’. Eu disse para ela: ‘Então não vá’. E ela disse: ‘Eu não posso fugir do povo que eu amo’. Ela me mandou um beijo pelo telefone e me deu tchau”.

Este relato da última conversa entre a irmã Dorothy Stang, religiosa e missionária da Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namu, e seu irmão David Stang, ex-missionário no Quênia e na Tanzânia, no continente africano, um dia antes do assassinato da religiosa e missionária estadunidense na Amazônia brasileira, foi narrado por ele quatro anos depois, em 2009, em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. 

Desejos do Vaticano II

Dispor a vida à missão evangélica, contou David na ocasião, nasceu em ambos do desejo de viver a radicalidade do Evangelho, inspirados pelo Concílio Vaticano II. “Nós dois tínhamos o desejo de ajudar os pobres e aqueles que tinham muito pouco, os desejos do Vaticano II de que abríssemos os nossos corações às pessoas e descobríssemos com elas as suas necessidades, tanto físicas quanto espirituais. Nós dois vínhamos de uma história de ter muito pouco e de acreditar fortemente nos direitos humanos, nos nossos próprios direitos de partilhar os bens de Deus que ele livremente deu a todo o ser humano, de acreditar nas palavras de Jesus, que dizem que devemos amar os nossos próximos como a nós mesmos. ‘Bem-aventurados os pobres porque deles é o Reino dos Céus’. Essas palavras nos tocaram muito profundamente”, disse.

Irmã Dorothy (Foto: Reprodução – Twitter)

Irmã Dorothy nasceu em 1931, em Dayton, no estado americano de Ohio, e chegou ao Brasil em 1966, um ano depois do encerramento do Concílio Vaticano II. Atuou junto a camponeses maranhenses e movimentos sociais no Pará, em defesa dos povos e do cultivo agrícola sustentável, anunciando o Evangelho e buscando soluções para os conflitos agrários junto à Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), criada em 1975.

Igreja em saída 

Quarenta anos antes da publicação da exortação apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual, publicada pelo Papa Francisco no primeiro ano do seu pontificado, em 2013, irmã Dorothy foi uma representante da Igreja em saída e da aplicação do Concílio Vaticano II na vida prática e pastoral. Hoje, disse o pontífice em uma de suas declarações sobre o XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, “nos encontramos em um mundo – e em uma Igreja – profundamente mudado, e provavelmente é necessário tornar mais explícitos os conceitos-chave do Concílio Vaticano II, seu horizonte teológico e pastoral, seus tópicos e seus métodos”. A Igreja, esclarece, ao percorrer o caminho dos padres conciliares, não precisa só dialogar com o mundo moderno, “mas, sobretudo, que se coloque a serviço da humanidade, cuidando da Criação e também anunciando e trabalhando para realizar uma nova irmandade e fraternidade universal, na qual as relações humanas são curadas do egoísmo e da violência e se fundam no amor recíproco, no acolhimento e na solidariedade”. 

Maria Rosaria Souza Guzzo, moradora de Anapu, é testemunha entre aqueles que tiveram a vida transformada após o convívio com a irmã Dorothy. Ela conheceu a religiosa quatro anos depois de ter mudado do Espírito Santo para a região em busca de uma vida melhor. No documentário Amazônia: o combate de Dorothy Stang, Rosaria conta como sua vida e modo de pensar e agir foram se modificando na companhia da missionária: 

Irmã Dorothy é presença na nossa vida. Ela deixou muita saudade, mas muita força também. (...) Com o jeito simples dela, doce, amigo, conquistou a comunidade e começou a trazer a boa nova para gente. Começou a fazer a gente entender que tinha como transformar a Amazônia num lugar bom para a gente viver. Foi neste intervalo que comecei a gostar daqui, comecei a entender a importância da natureza na vida da gente… como poderíamos criar nossos filhos aqui, com dignidade, com respeito. Ela tinha uma luz própria que chamava atenção de todas as pessoas, de todas as idades, desde crianças, jovens, adultos, velhos. Ela tinha uma maneira especial de tratar cada pessoa”. 

Irmã Margarida Pantoja é membro das Missionárias de Santa Teresinha, de Belém, no Pará, e uma das fundadoras do Comitê Dorothy Stang, grupo formado por religiosos e religiosas de diversas congregações, ativistas dos direitos humanos e jovens de Belém, criado com apoio da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB). Ela lembrou o legado missionário e pastoral de Dorothy Stang, numa das entrevistas concedidas ao IHU:

Irmã Dorothy não é para ser lembrada; é para ser imitada. Ela nos deu lições de organização, parceiras, persistência. (…) Ela levou muito a sério o profetismo e a missão dentro da Igreja. Sempre dizemos que ela foi como um Moisés, que acompanhou o povo no deserto. Ela fez isso com o povo que saiu do Maranhão, veio caminhando com esse povo até chegar em Anapu [uma distância de mais de mil quilômetros], onde começou a fazer seu trabalho e disse: ‘Olha, daqui nós não saímos mais, porque aqui tem uma terra que é da União, uma terra propícia para a reforma agrária’. Para nós, é um verdadeiro exemplo de uma pessoa que seguiu esse projeto e que assumiu com muita garra o projeto de Jesus Cristo, que soube ser profeta seguindo o exemplo de Jesus Cristo, se entregando até a morte”.

Martírio

Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu, recorda que Dorothy chegou na Prelazia do Xingu em 1982, com pouco mais de 50 anos, e “foi assassinada com seis tiros à queima-roupa numa estrada do interior de Anapu, município da Transamazônica, no estado do Pará”, numa manhã de sábado, 12-02-2005, aos 73 anos. Como os demais mártires cristãos, morreu proclamando palavras evangélicas. “Antes de ser assassinada, irmã Dorothy abriu sua sacola de pano, cumprindo ‘ordem’ de seus algozes que queriam saber se ela estava armada. Mostrou-lhes o que ela chamava de sua arma: a Bíblia Sagrada. Este seu gesto derradeiro é o último recado que Dorothy nos deixou. É sempre a Palavra de Deus que nos inspira e orienta em nosso caminho. ‘As armas com que combatemos não são humanas, o seu poder vem de Deus e são capazes de destruir fortalezas“ (2Cor 10,4)’”, repetiu Dom Erwin, ao relembrar as últimas palavras da religiosa, que morreu recitando as bem-aventuranças.

Anualmente, o martírio de irmã Dorothy é recordado na Igreja. Este ano, em 10-01-2025, uma vigília de oração foi presidida pelo padre Fabio Fabene, secretário do Dicastério para o Causas dos Santos, no santuário dos Novos Mártires de São Bartolomeu, em Roma, organizado pela Comunidade de Santo Egídio. Na ocasião, Laurie Jonhson, professora de teologia na Emmanuel College, de Boston, disse que a mensagem de vida da religiosa “está em perfeita harmonia com o pontificado do Papa Francisco que, em julho de 2023, instituiu a Comissão dos Novos Mártires, testemunhas da fé e em 2015 dedicou a segunda encíclica do seu pontificado à criação”. A figura da irmã Dorothy, acrescentou, “recorda como a missão cristã vai além da espiritualidade pessoal. Inclui um compromisso com os esquecidos, com as vítimas da degradação ambiental e das desigualdades sociais”. A religiosa, acrescentou, foi um "exemplo de como colocar em prática a encíclica Laudato si' e, por isso, era uma pessoa incômoda”.

Como explica o Papa Francisco em um dos textos fundamentais de seu magistério, a exortação apostólica Evangelii Gaudium: “A Igreja «em saída» é a comunidade de discípulos missionários que «primeireiam», que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa! A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, 10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva. (…) Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo.

Os evangelizadores contraem assim o «cheiro das ovelhas», e estas escutam a sua voz. Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar». Acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam. Conhece as longas esperas e a suportação apostólica. A evangelização patenteia muita paciência, e evita deter-se a considerar as limitações. Fiel ao dom do Senhor, sabe também «frutificar». A comunidade evangelizadora mantém-se atenta aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda. Cuida do trigo e não perde a paz por causa do joio. O semeador, quando vê surgir o joio no meio do trigo, não tem reações lastimosas ou alarmistas. Encontra o modo para fazer com que a Palavra se encarne numa situação concreta e dê frutos de vida nova, apesar de serem aparentemente imperfeitos ou defeituosos. O discípulo sabe oferecer a vida inteira e jogá-la até ao martírio como testemunho de Jesus Cristo, mas o seu sonho não é estar cheio de inimigos, mas antes que a Palavra seja acolhida e manifeste a sua força libertadora e renovadora” (EG, 24).

Documentos do magistério pontifício (Arte: Marcelo Zanotti)

Memória nacional e internacional

No editorial dedicado à memória de Dorothy Stang, em 2017, o National Catholic Reporter, fundado por Robert Hoyt em 1964, situou a missionária entre as religiosas americanas que a mais de um século “deixaram suas casas e aprenderam novas línguas a fim de entender as culturas das famílias ampliadas que elas se puseram a servir nos quatro cantos do mundo”. Algumas, lembra, “morreram nas guerras e em levantes. Algumas morreram em paz e em idade avançada, outras faleceram de doenças rápidas demais para curar ou demasiado distantes de tratamento médico que poderia salvá-las. Todas estas agentes eclesiais morreram enquanto viviam e serviam, milhares de quilômetros longe de casa. A maioria estaria satisfeita com que os seus restos mortais fossem colocados nos lugares onde tiveram o privilégio de trabalhar. Elas eram, e são, juntamente com os padres, irmãos e voluntários leigos, os melhores representantes que a Igreja Católica deste país tem a oferecer ao mundo. Dorothy Stang entendida como vida foi morta pela violência, como costumava dizer:

Felizes são os pobres...
Felizes são os que têm fome e
sede de justiça...
Felizes são os que promovem a paz...”. 

Na Amazônia brasileira, onde viveu os últimos 40 anos de sua vida, irmã Dorothy é comparada a um anjo. “Irmã Dorothy é o Anjo da Amazônia”, mencionou Felício Pontes Junior, procurador da República junto ao Ministério Público Federal em Belém, no Pará, e assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam. “Tudo que ela tentou estabelecer foi o desenvolvimento integral dos povos da floresta. Isso implica também na relação do homem com a natureza”, resumiu numa entrevista ao IHU.

Irmã Zenilda Luzia Petry, em missão no Timor Leste, no continente asiático, religiosa da Congregação das Franciscanas de São José e membro da CRB, guarda de Dorothy Stang a imagem “de uma mulher consagrada convicta e feliz. Com seu olhar voltado sempre para a defesa da vida dos pobres, da luta pela dignidade e cidadania dos despossuídos, ela encarnou um modo de ser e de viver de forma totalmente despojada que deixava a gente até constrangida e questionada. Despojamento e simplicidade, aliada a uma alegria permanente e uma fé inquebrantável são traços de sua imagem que guardo”.

Em 2009, Irmã Zenilda compartilhou com o IHU sua visão sobre os desafios pastorais da Igreja no Brasil, especialmente em regiões de conflito, como na Amazônia. Na ocasião, disse: “Nossa sociedade, sempre mais distanciada dos valores evangélicos, seduzida pelo consumismo, individualismo, competição, lucro, vive a dimensão religiosa mais voltada para um sentir emocional. Nossa região vive este desafio de uma verdadeira e renovada evangelização, com os agravantes da realidade: distâncias geográficas, dificuldade de acesso, populações isoladas, escassez de agentes de pastoral e tantas outras. Há, porém, muita vida que circula em meio a estes desafios. Deus continua a passear com a mulher e o homem na ‘brisa da tarde’ (Gn 3,8) neste imenso paraíso Amazônico. O que continua ocorrendo é que a nudez de valores evangélicos leva a muitos a se esconderem da presença do divino (cf Gn 3,8)”. 

Hoje, 12-02-2025, agricultores, assentados, posseiros e integrantes da CPT estão percorrendo 55 quilômetros na Romaria da Floresta. O gesto, que se repete anualmente e completa duas décadas, celebra a vida de irmã Dorothy, faz memória de seu martírio e denuncia publicamente as ameaças e assassinatos de lideranças camponesas e tantos ativistas socioambientais que morreram em defesa da vida. 

O legado de Dorothy Stang nas páginas do IHU

Túmulo da Irmã Dorothy (Foto: MST)

Inúmeros são os artigos, notícias e entrevistas publicados na página eletrônica do IHU sobre o legado e a história de vida de Dorothy Stang, assim como de outros religiosos e religiosas que se dedicam não só a proclamar o ensino do Evangelho entre os povos, mas vivê-lo com eles, na defesa à vida e tudo que a circunda. Em continuidade a esta opção, neste ano, o IHU publicará, mensalmente, uma carta de Felicio Pontes Jr. em memória à religiosa. O material também será disponibilizado no formato podcast, publicado na página do IHU.

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