“Esta colaboração entre um cardeal e um jovem teólogo é um exemplo de como estudo, reflexão e experiência eclesial podem se unir, e isso também indica um novo método: uma voz oficial e uma voz jovem, juntos. É assim que devemos caminhar sempre: o magistério, a teologia, a práxis pastoral e a liderança oficial. Sempre juntos. Nossos títulos serão muito mais críveis se na Igreja nós também começarmos a sentir que somos todos irmãos, fratelli tutti, e vivermos nossos respectivos ministérios como um serviço ao Evangelho, a construção do Reino de Deus, e o cuidado de nossa casa comum”, escreve o Papa Francisco, no prefácio ao livro “Fraternità – segno dei tempi: il magistero sociale di Papa Francesco”, do cardeal jesuíta Michael Czerny e do padre Christian Barone, que está sendo lançado hoje, 30 de setembro, na Itália.
O prefácio é publicado por Commonweal, 29-09-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O coração do Evangelho é a proclamação do Reino de Deus, na pessoa do próprio Jesus, o Emmanuel, o Deus-Conosco. Nele, Deus traz seu projeto de amor pela humanidade para completar, estabelecer seu reinado sobre as criaturas e semear a semente da vida divina na história humana, transformando a desde dentro.
Certamente o Reino de Deus não deveria ser identificado ou confundido com alguma conquista terrena ou política. Tampouco deveria ser enviesada como puramente uma realidade interior, alguém que é meramente pessoal e espiritual, ou como uma promessa que apenas se preocupa com o mundo por vir. Em vez disso, a fé cristã vive por um fascinante e persuasivo “paradoxo”, uma palavra muito cara para o teólogo jesuíta Henri de Lubac. Isso é o que Jesus, para sempre unido à nossa carne, está cumprindo aqui e agora, abrindo-nos para o Deus-Pai, trazendo uma libertação em nossas vidas, para nele o Reino de Deus estar sempre próximo (Marcos 1, 12-15). Ao mesmo tempo, por quanto existirmos nessa carne, o Reino de Deus permanece uma promessa, um profundo desejo que nós carregamos dentro de nós, um clamor que sobe desde uma criação castigada pelo mal, que sofre e geme até o dia de sua plena libertação (Romanos 8, 19-24).
Portanto, o Reino anunciado por Jesus é uma realidade viva e dinâmica. Convida-nos à conversão, pedindo a nossa fé para emergir da estase de uma religiosidade individual ou de uma redução ao legalismo. O Reino quer que nossa fé se torne uma procura contínua e incessante pelo Senhor e sua Palavra, que chama a cada um de nós para cooperar com o trabalho de Deus nas diferentes situações da vida e da sociedade. De diferentes maneiras, mesmo anônima e silenciosamente, mesmo na história de nossas falhas e nossas feridas, o Reino de Deus está vindo de verdade em nossos corações e nos eventos que ocorrem ao redor de nós. Como uma pequena semente escondida na terra (Mateus 13, 31-32), como um pouco de fermento que leveda a massa (Mateus 13, 24-30), Jesus trouxe para nossa história de vida os sinais de uma nova vida que ele começou, pedindo-nos para trabalharmos juntos com ele nessa tarefa de salvação. Cada um de nós pode contribuir para realizar o trabalho do Reino de Deus na terra, abrindo espaço de salvação e libertação, semeando esperança, desafiando as mortais lógicas do egoísmo com os espíritos da fraternidade e da irmandade do Evangelho, dedicando nós mesmos em ternura e solidariedade para o bem do nosso próximo, especialmente os mais pobres.
Nós não devemos nunca neutralizar essa dimensão social da fé cristã. Como eu mencionei também na Evangelii Gaudium, o querigma ou a proclamação da fé cristã por si tem uma dimensão social. Convida-nos a construir uma sociedade onde triunfa a lógica das Bem-aventuranças e de um mundo fraterno e solidário. O Deus-Amor, que em Jesus nos convida a viver o mandamento do amor fraterno, cura com esse mesmo amor as nossas relações pessoais e sociais, chamando-nos a ser pacificadores e construtores de irmandade e fraternidade entre nós:
O Evangelho é sobre o Reino de Deus (Lucas 4, 43); é sobre amar a Deus que reina em nosso mundo. Na medida em que Ele reina em nós, a vida em sociedade será um ambiente de fraternidade universal, justiça, paz e dignidade. A pregação cristã e a vida, então, devem ter um impacto na sociedade (Evangelii gaudium, 180).
Nesse sentido, cuidar de nossa Mãe Terra e construir uma sociedade solidária como fratelli tutti, ou todos irmãos, não é estranho à nossa fé; essas são realizações concretas desta.
Este é o fundamento do Ensino Social da Igreja. Não é apenas uma simples extensão social da fé cristã, mas uma realidade com base teológica: o amor de Deus pela humanidade e seu plano de amor – e de irmandade e fraternidade – que ele realiza na história humana por meio de Jesus Cristo, seu filho, a quem todos os crentes estão intimamente unidos por meio do Espírito Santo.
Sou grato ao cardeal Michael Czerny e ao padre Christian Barone, irmãos na fé, pela contribuição sobre o tema da irmandade. Também estou grato que este livro, embora pretenda ser um guia para a encíclica Fratelli tutti, se esforce para trazer à luz e tornar explícito o vínculo profundo entre o Ensino Social atual da Igreja e os ensinamentos do Concílio Vaticano II.
Este link nem sempre é percebido, pelo menos não a princípio. Vou tentar explicar o porquê. O clima eclesial da América Latina, no qual estive imerso primeiro como jovem estudante jesuíta e depois no ministério, absorveu e se apoderou com entusiasmo das intuições teológicas, eclesiais e espirituais do Concílio, atualizando-as e inculturando-as. Para os mais jovens, o Concílio tornou-se o horizonte da nossa crença e das nossas formas de falar e de agir. Ou seja, rapidamente se tornou nosso ecossistema eclesial e pastoral. Mas não adquirimos o hábito de recitar decretos conciliares, nem nos demoramos em reflexões especulativas. O Concílio simplesmente entrou em nossa maneira de ser cristão e em nossa maneira de “ser Igreja” – e, à medida que a vida foi passando, minhas intuições, minhas percepções e minha espiritualidade nasceram simplesmente das sugestões dos ensinamentos do Vaticano II. Não houve muita necessidade de citar os documentos do Concílio.
Hoje, depois de muitas décadas, nos encontramos em um mundo – e em uma Igreja – profundamente mudado, e provavelmente é necessário tornar mais explícitos os conceitos-chave do Concílio Vaticano II, seu horizonte teológico e pastoral, seus tópicos e seus métodos.
Na primeira parte de seu valioso livro, o cardeal Michael e o padre Christian nos ajudam com isso. Eles leem e interpretam o ensinamento social que estou tentando realizar, trazendo à luz algo um pouco escondido nas entrelinhas, ou seja, o ensinamento do Concílio como base fundamental e ponto de partida para o convite que estou fazendo à Igreja e ao mundo inteiro com este ideal de fraternidade e irmandade. É um dos sinais dos tempos que o Vaticano II traz à luz, e aquilo de que nosso mundo – nossa casa comum, na qual somos chamados a viver como irmãos – mais precisa.
Nesse sentido, este novo livro também tem o mérito de reler, no mundo de hoje, a intuição conciliar de uma Igreja aberta em diálogo com o mundo. Diante das questões e desafios do mundo moderno, o Vaticano II tentou responder com o sopro da Gaudium et spes; mas hoje, ao percorrermos o caminho traçado pelos padres conciliares, percebemos que é necessário não só que a Igreja esteja em diálogo com o mundo moderno, mas, sobretudo, que se coloque a serviço da humanidade, cuidando da Criação e também anunciando e trabalhando para realizar uma nova irmandade e fraternidade universal, na qual as relações humanas são curadas do egoísmo e da violência e se fundam no amor recíproco, no acolhimento e na solidariedade.
Se é isso que o mundo de hoje nos pede – sobretudo numa sociedade fortemente marcada por desequilíbrios, injúrias e injustiças – percebemos que também isso está no espírito do Concílio, que nos convida a ler e a ouvir os sinais da história humana. Este livro também tem o mérito de nos oferecer uma reflexão sobre a metodologia da teologia pós-conciliar – uma metodologia histórico-teológico-pastoral, em que a história humana é o lugar da revelação de Deus. Aqui a teologia desenvolve sua orientação através da reflexão, e a pastoral encarna a teologia na práxis eclesial e social. É por isso que os ensinamentos papais sempre precisam estar atentos à história e requerem contribuições da teologia.
Enfim, esta colaboração entre um cardeal e um jovem teólogo é um exemplo de como estudo, reflexão e experiência eclesial podem se unir, e isso também indica um novo método: uma voz oficial e uma voz jovem, juntos. É assim que devemos caminhar sempre: o magistério, a teologia, a práxis pastoral e a liderança oficial. Sempre juntos. Nossos títulos serão muito mais críveis se na Igreja nós também começarmos a sentir que somos todos irmãos, fratelli tutti, e vivermos nossos respectivos ministérios como um serviço ao Evangelho, a construção do Reino de Deus, e o cuidado de nossa casa comum.