23 Mai 2020
"As reflexões, diálogos e textos trazidos a luz nesta compilação sobre a Vida após a Pandemia impressionam pela coerência com que o Papa Francisco posiciona seu discurso no contexto global e realmente, como afirma ser seu intuito inicial, chega a todos e todas com uma semente de esperança e um convite para plantar".
O artigo é de Luiz Felipe Lacerda, psicólogo, doutor em Ciências Sociais, docente da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e Secretário Executivo do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA).
Em meio ao turbilhão de emoções que vivemos no momento, atribulados entre as demandas laborais e domésticas, muitos envolvidos com entes queridos enfermos, outros ainda disputando diariamente o sustento da família, talvez tenha passado desapercebido o recente anúncio profético de Papa Francisco, nestes tempos de pandemia.
La vida después de la pandemia
Neste maio de 2020 Francisco nos apresenta La vida después de la pandemia (2020), uma coletânea de oito textos que apontam algumas direções para reconstruirmos um mundo melhor e, ao mesmo tempo, ofertam sementes de esperança que podem ser plantadas, cuidadas e colhidas futuramente. Ao longo destes textos apresenta-se uma linha comum: o combate ao vírus do egoísmo indiferente e a certeza de que não há futuro se destruirmos o ambiente que nos sustenta.
Com este gesto, reflexões e palavras, o pontífice, uma vez mais, coloca-se como mensageiro da esperança em uma sociedade desiludida e acuada, torna-se, uma vez mais, líder que cuida, ilumina e acolhe todos e todas, para católicos e para não católicos.
Ao longo de Urbi et orbi o Papa exige ânimo e honestidade daqueles que detêm o poder, que tomam as decisões, exige coragem de olhar para trás e assumir que deixamos muitas pessoas pelo caminho, na esteira do desenvolvimento. Ele pede audácia solidária e afirma que é chegada a hora de pensarmos com objetividade as atividades econômicas em nossa sociedade, indicando que desejar voltar rapidamente ao que vivíamos antes da pandemia pode ser o mais cômodo e prático, mas não é a melhor opção.
Afirma o Papa que é hora de desafiar e transformar as indústrias atuais, reconhecer o trabalho informal e reforçar o trabalho sanitário. Esta deve ser a agenda pública em uma primeira etapa de reconstrução. É tempo de eliminar as desigualdades e reparar a injustiça que mina saúde de toda a humanidade.
No texto subsequente Francisco pergunta: Por que tens medo? Percebendo que a humanidade está assustada e perdida, como os discípulos do Evangelho quando tomados por uma tormenta inesperada e furiosa, ele deflagra que nosso desespero maior tem raiz na percepção, frente à pandemia, de que somos vulneráveis. O COVID-19 desmascara as seguridades superficiais que construímos, desmorona verticalmente a onipotência do ser humano.
Por que tens medo? Não tens fé? Francisco inverte assim, a narrativa do medo e convoca o despertar da solidariedade e da esperança. Para isso, mostra-se necessário inicialmente “abraçar a Cruz”, acolher as contradições de nosso tempo, pausar o julgamento discriminado e preconceituoso sobre nós mesmos e sobre os outros, dando espaço para a reconciliação e para a criatividade.
Com esta perceptiva se insere o texto seguinte titulado Nos preparar para o que vem depois. Nele Papa Francisco apresenta uma rápida percepção das respostas que diferentes países ofertam frente à pandemia. Saúda aqueles governantes que explicitamente colocaram o cuidado das pessoas e a preservação de suas vidas à frente dos interesses econômicos. Uma atitude difícil, visto a forma como os países colocam-se em dependência com o mercado, segundo ele.
Além de parabenizar essas iniciativas, Francisco avisa que já se percebem algumas das principais consequências que deveremos enfrentar, como a fome, o desemprego e a violência.
Neste contexto de reconstrução chega a Páscoa e o Papa escreve Como uma Nova Chama, retomando a esperança e a coragem de Jesus e lembrando assim, de todos os profissionais de saúde que colocam em risco suas vidas para cuidar da vida do próximo. Um testemunho de cuidado e amor que, por vezes, chega até a extenuação de suas forças, assim como Jesus na cruz.
Como uma chama que renasce o Papa lembra de como a Europa foi capaz de se reconstruir após a segunda guerra mundial, consolidando um bloco continental solidário. Percebe que hoje a União Europeia encontra-se frente a um desafio histórico, do qual dependerá não apenas o seu futuro, mas o de toda a humanidade.
Uma vez mais o Papa dialoga com os tomadores de decisões do mundo e insiste que não é hora de disputas e guerras, não é hora de fabricação e venda de armas, é hora de união para salvar pessoas, é hora de acabar com a sangrenta guerra da Síria, os conflitos no Iêmen e as tensões no Iraque, assim como no Líbano. A prosperidade de um futuro novo, ressuscitado, de paz e solidariedade, depende diretamente dessas resoluções. Queremos suprimir para sempre as palavras egoísmo, indiferença e divisão, afirma o pontífice.
Pensando nessa transformação, na extinção do egoísmo e na ressurreição da solidariedade, Francisco convoca a atenção aos invisíveis que operacionalizam a solidariedade e a paz em cada recanto do planeta, dialogando com os Movimentos Sociais e as organizações da sociedade civil escrevendo a um exército de invisíveis.
Francisco chama estas pessoas de poetas sociais, que desde as periferias esquecidas criam alternativas amorosas e solidárias para as dificuldades mais atenuantes. No texto, o Papa lembra também dos migrantes, refugiados e moradores de rua que enfrentam profundas dificuldades no contexto de pandemia e encontram na solidariedade do próximo a oportunidade de salvação.
Em seguida, escrevendo Um Plano para Ressuscitar, profeticamente Francisco retoma o papel corajoso e esperançoso das mulheres ao longo de todo o Evangelho e lembra de como elas combatem a ansiedade e a destemperança, chamando a atenção para as vivências, desafios e saberes das mulheres do nosso tempo. É explícita a indicação de ouvir as mulheres, neste plano papal de ressuscitar a sociedade após a pandemia.
Tratando das mulheres e retomando a coragem e o amor dos profissionais de saúde em tempos de pandemia ele afirma: “Se aprendemos algo neste tempo é que ninguém se salva sozinho! ” (p.35).
Desta afirmação sugere o texto O Egoísmo: um vírus anda pior. O egoísmo indiferente é um vírus que se transmite ao pensarmos que a vida vai melhorar se a minha vida melhorar, que tudo está bem se eu e os meus estão bem. Devemos desenvolver a capacidade de pensar no outro, no próximo, na Terra e no todo, caso contrário seguiremos contaminados e contaminando.
Neste exercício de altruísmo que Francisco escreve aos vendedores de jornais que trabalham na rua, como um estudo de caso, um exemplo, um código para falar de todos os trabalhadores informais, os descartados, os que moram na rua, os gravemente marginalizados, o Papa busca esperançá-los também.
E então, no 50º Dia da Terra consolida-se a oportunidade em renovar nosso compromisso com a Criação e com a Casa Comum, acolher os membros mais frágeis dessa família planetária e promover uma refundação do status humano frente à própria humanidade e aos outros seres que compartilham conosco o planeta. Para isto, em Superar os desafios globais, Francisco evoca os sabres ancestrais das comunidades indígenas e de outros povos tradicionais, demostrando como devemos aprender com eles a arte da contemplação como caminho para amar a terra e criarmos um possível bem-viver.
As reflexões, diálogos e textos trazidos à luz nesta compilação sobre a Vida após a Pandemia impressionam pela coerência com que o Papa Francisco posiciona seu discurso no contexto global e realmente, como afirma ser seu intuito inicial, chega a todos e todas com uma semente de esperança e um convite para plantar.
A mensagem final é uníssona: Uma emergência como a do COVID-19 é derrotada, em primeiro lugar, com os anticorpos da solidariedade.
FRANCISCO, Papa. LA VIDA DESPUÉS DE LA PANDEMIA. Libreria Editrice Vaticana, 2020.
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Papa Francisco e o vírus do egoísmo indiferente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU