“O grande sinal dos tempos é a consciência da catástrofe ecológica e ambiental”. Entrevista especial com Jorge Costadoat

A “desacerdotalização” da Igreja, o enfrentamento dos abusos sexuais no clero chileno, a sinodalidade e o desenvolvimento autônomo das Igrejas locais são alguns dos temas abordados pelo jesuíta Jorge Costadoat na entrevista a seguir

Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil

04 Novembro 2024

“Não espero que as mulheres sejam ordenadas sacerdotes. Corremos o risco de duplicar o problema. Seria ainda pior se as mulheres quisessem ser sacerdotes por uma questão de merecimento e se juntassem à casta daqueles que têm ‘vocação’”, declara o teólogo chileno Jorge Costadoat ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ao argumentar em favor da “desacerdotalização” da Igreja. Este tema tem sido proposto por Costadoat em artigos e pesquisas acadêmicas porque, segundo ele, “ao longo dos séculos, o ministério de conduzir as comunidades se havia sacralizado de uma forma estranha em relação à simplicidade desejada por Jesus para quem deveria realizar um serviço deste tipo”.

A discussão, conforme expõe, insere-se no contexto de recepção dos documentos do Concílio Vaticano II, ocorrido entre 1962 e 1965. “O Vaticano II, no decreto Presbyterorum Ordinis, quis colocar as coisas no seu devido lugar. Ele deu aos ministros a missão prioritária de anunciar o Evangelho. Para isso, reordenou os tria munera (os três serviços ministeriais) nesta ordem: profeta (da Palavra), sacerdote (dos sacramentos) e rei (condução ou governo). Além disso, quis que os ministros fossem chamados de presbíteros como se fazia na Antiguidade e não de sacerdotes (palavra que nunca é usada no Novo Testamento para ministros e que, por outro lado, deixa a porta aberta para reeditar o sacerdócio do Antigo Testamento, que, de acordo com a Carta aos Hebreus, Jesus revogou)”, pontua. Entretanto, lamenta, “poucos anos após a sua promulgação, esta reforma tão importante foi jogada no lixo. Já o primeiro documento importante sobre a formação do clero em 1970, cinco anos depois do Presbyterorum Ordinis, chamava-se Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis. As rationes nacionais seguem esse padrão até hoje”.

Costadoat também argumenta em favor do desenvolvimento autônomo de igrejas regionais com características culturais semelhantes. “A Igreja africana, por exemplo, poderia expressar o dogma católico em novas categorias, elaborar uma moral de acordo com os seus problemas, celebrar a Eucaristia com espécies tão significativas como são o pão e o vinho para nós, e redigir um direito canônico. É isto que quero dizer quando digo que o Papa deve promover o desenvolvimento autônomo da Igreja latino-americana. Penso em Igrejas regionais que reúnam católicos que partilhem características culturais semelhantes”, exemplifica.

O teólogo também comenta a nomeação cardinalícia do arcebispo de Santiago do Chile, Dom Fernando Chomalí, a crise dos abusos sexuais cometidos pelo clero chileno e o panorama teológico na América Latina. “O mais importante é aquele aberto por Leonardo Boff. O grande sinal dos tempos é a consciência da catástrofe ecológica e ambiental. Em sintonia com a Ad theologiam promovendan, acredito que precisamos desenvolver uma teologia que parta da experiência espiritual de todas as pessoas sensíveis ao ‘clamor da terra e ao clamor dos pobres’, como dirá Francisco na Laudato Si', avalia. 

A entrevista foi concedida ao IHU por e-mail, no mês passado, quando o jesuíta chileno participou do Congresso Estadual de Teologia. Luzes à Teologia e à Pastoral a partir das constituições do Vaticano II, realizado na Faculdade Palotina de Santa Maria (FAPAS), no Rio Grande do Sul. 

Jorge Costadoat (Foto: Centro UC | Faculdade de Teologia)

Jorge Costadoat é doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Lecionou Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Chile até 2014 e coordenou a Comissão Teológica da Companhia de Jesus na América Latina entre 2000 e 2004 e 2006 e 2013. É pesquisador adjunto da Faculdade de Teologia, Centro Teológico Manuel Larraín, da Pontifícia Universidade Católica do Chile.

Confira a entrevista. 

IHU – Como a Igreja chilena recebeu a notícia da nomeação cardinalícia do arcebispo de Santiago do Chile, Dom Fernando Natalio Chomalí? Como avalia esta designação?

Jorge Costadoat – A Igreja chilena está feliz com a nomeação de Dom Fernando Chomalí. É inevitável dizer que os seus predecessores foram questionados pelos católicos e católicas, quer pela responsabilidade que tiveram na maneira como abordaram as acusações de abusos sexuais por parte do clero e o seu encobrimento, quer pela sua falta de representação pública. Na Igreja, as autoridades desempenham a tarefa de representar o Povo de Deus. O fato é que os católicos e as católicas, incluindo muitos padres, sentiram-se durante muitos anos abandonados.

Dom Fernando Chomalí, pelo contrário, saiu para o espaço público, preenchendo um vazio muito grande. As pessoas ansiavam por uma voz da Igreja. O novo cardeal de Santiago não se esquiva de nenhum tema. E ele mesmo traz novos assuntos para o debate que interessam a cristãos e não cristãos. O bispo se expõe à crítica. Não faltarão razões para contestar algumas das suas ideias. Mesmo assim, e precisamente por isso, valoriza-se o seu espírito amistoso e de diálogo com a sociedade.

IHU – Como a Igreja chilena e a Companhia de Jesus no Chile reagem hoje à crise dos abusos sexuais?

Jorge Costadoat – A crise dos abusos sexuais cometidos pelo clero no país teve efeitos catastróficos na Igreja chilena. Também impactou pessoas não católicas que tinham uma boa imagem da Igreja. Os casos de abusos são numerosos e atingiram pessoas que tinham uma grande visibilidade pública. É um triste paradoxo que os representantes da “fé”, nós padres, tenhamos nos tornado pessoas “não dignas de fé”.

Mesmo assim, a Igreja chilena e a Companhia de Jesus, somando e subtraindo, passaram por um árduo processo de aprendizagem para investigar, punir e indenizar as vítimas destes abusos. Foram criados protocolos de cuidado nas escolas e em outras organizações eclesiásticas; foram realizados estudos e publicações científicas; foi feito um esforço para aprender com experiências comparativas e submeter-se à supervisão internacional.

Confesso que, pessoalmente, me dói muito saber que meus colegas e amigos foram denunciados e punidos. Por outro lado, estou muito feliz pelo fato de que as pessoas que bateram à porta da sua Igreja pedindo justiça tenham sido ouvidas e que não se tenha batido a porta na cara delas, como aconteceu anteriormente.

Acrescento uma coisa que certamente poucas pessoas compreenderam. As situações de abuso de consciência, às vezes ligadas a abusos sexuais, outras vezes não, abriram os nossos olhos para o sacramento da confissão. Existem duas razões para rever a viabilidade da confissão auricular. Uma delas é antiga: nós, que fomos confessores, muitas vezes acolhemos pessoas que voltaram a se confessar trinta anos depois de terem tido uma experiência traumática com um padre que as maltratou. Outra razão é nova: hoje percebemos que a revelação da intimidade não pode ser forçada, instada ou sugerida. A intimidade é sagrada. Só pode ser compartilhada com plena liberdade e num ambiente de máxima confiança.

O problema não é que existem bons e maus padres e que, consequentemente, a sua formação deve ser melhorada. A própria instituição da confissão auricular é abusiva, pois espera ou expõe os católicos a uma experiência desumana.

IHU – Que balanço faz da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Sinodalidade até o momento? Poderia destacar três pontos positivos e três desafios do Sínodo?

Jorge Costadoat – Não tenho informações suficientes. Não me sinto em condições de avaliar o conjunto de requisitos porque, no meu entender, alguns deles têm mais a ver com solicitações já existentes no Direito Canônico que, no entanto, não são implementadas na prática; outros, com mudanças doutrinárias que certamente não serão alcançadas, como a ordenação sacerdotal de mulheres ou de diáconas. Talvez a ordenação dos viri probati pudesse ser autorizada. Não sei.

Não acredito que no final de todo o processo o Papa irá revogar a encíclica Humanae Vitae, que bloqueou a possibilidade de oferecer às novas gerações um ensinamento moral-sexual verdadeiramente orientador. A proibição da pílula anticoncepcional em 1968 não foi aceita pelo Povo de Deus e ninguém a cumpre. Mas, durante anos, ela condenou as mulheres a se confessarem periodicamente para receber a comunhão. Tiveram que confessar um pecado que, na realidade, era um ato de responsabilidade para com as suas famílias. O prejuízo foi enorme.

Outra questão: a accountability precisa ser aperfeiçoada, ou seja, há instâncias de prestação de contas e de controle do exercício do poder. Na Igreja não pode haver um estamento como o clerical que se escolhe a si mesmo e faz com que o resto do Povo de Deus participe muito pouco do governo da sua Igreja. Por que os católicos não escolhem suas autoridades? Os bispos? Não é certo que existam comunidades que tenham de suportar padres despóticos durante anos.

Mudanças canônicas são necessárias. Mas isto não bastará se o clero não quiser observar as regras do jogo e, sejamos francos, o clero é o obstáculo número um à sinodalidade. Ele não quer perder o poder.

O clero não foi formado para interagir com o laicato. A reforma da formação do clero feita pelo Vaticano II fracassou. A Igreja voltou ao seminário tridentino: seminaristas formados entre quatro paredes, representantes do sagrado e adestrados para recordar liturgicamente o sacrifício de um inocente, separados dos demais cristãos e supostamente superiores em dignidade e santidade. A Igreja nunca será sinodal enquanto for governada pelo “homem sagrado”. 

IHU – Quais são os três temas mais urgentes a serem discutidos na Igreja?

Jorge Costadoat – Esta última é uma questão fundamental. Trento, na sua época, reagiu corretamente contra a lamentável situação dos padres. Sua formação era precária. Os resultados são péssimos. Mas o que era válido há 500 anos já não funciona mais hoje.

O Vaticano II, no século XX, retornou às origens: a identidade dos sacerdotes é distinguível mas não separável da identidade dos leigos, pois o fundamental é ser “cristão”, ter sido batizado, e a única razão de ser do ministério ordenado é o serviço de atualização do sacerdócio comum dos fiéis e de reger as suas comunidades.

Outra questão: a participação das mulheres. Sobre isto muito já se disse. E não vou me alongar a respeito do assunto. Há um ponto, porém, que me parece fundamental: se o anúncio do Evangelho depende, em última análise, da experiência espiritual dos cristãos, no dia em que a experiência cristã das mulheres for levada em consideração, teremos uma Igreja melhor e mais humana.

Uma terceira ou quarta questão é o desenvolvimento de uma Igreja Católica em versões regionais diversas. Na Antiguidade, existiram grandes patriarcados: Alexandria, Antioquia, Jerusalém, Constantinopla e Roma. Não poderia algo semelhante acontecer no século XXI?

IHU – O senhor disse, em artigo publicado no Religión Digital em 2022, que “o principal problema da Igreja não é o clericalismo, mas a versão sacerdotal do catolicismo”. E, mais adiante, que “a Igreja católica não precisa solucionar o problema do clericalismo. Precisa, em primeiro lugar, se desacerdotalizar”. Pode explicar essa ideia? O que significa desacerdotalizar a Igreja? Como fundamenta teologicamente esta posição? Que consequências práticas e espirituais vislumbra para a Igreja com esta proposta?

Jorge Costadoat – Não espero que as mulheres sejam ordenadas sacerdotes. Corremos o risco de duplicar o problema. Seria ainda pior se as mulheres quisessem ser sacerdotes por uma questão de merecimento e se juntassem à casta daqueles que têm “vocação”.

Há pouco tempo escrevi um artigo na revista Seminarios intitulado “‘Desacerdotalizar’ o ministério presbiteral. Um horizonte para a formação dos seminaristas” (2022). Tinha a ideia de que, ao longo dos séculos, o ministério de conduzir as comunidades se havia sacralizado de uma forma estranha em relação à simplicidade desejada por Jesus, para quem deveria realizar um serviço deste tipo. À medida que avançava na pesquisa, descobri que não estava sendo nada original no assunto. Muitos outros teólogos escreveram sobre a necessidade de desacerdotalizar, dessacralizar ou desclericalizar o ministério.

O Vaticano II, no decreto Presbyterorum Ordinis, quis colocar as coisas no seu devido lugar. Ele deu aos ministros a missão prioritária de anunciar o Evangelho. Para isso, reordenou os tria munera (os três serviços ministeriais) nesta ordem: profeta (da Palavra), sacerdote (dos sacramentos) e rei (condução ou governo). Além disso, quis que os ministros fossem chamados de presbíteros como se fazia na Antiguidade e não de sacerdotes (palavra que nunca é usada no Novo Testamento para ministros e que, por outro lado, deixa a porta aberta para reeditar o sacerdócio do Antigo Testamento, que, de acordo com a Carta aos Hebreus, Jesus revogou).

Poucos anos após a sua promulgação, esta reforma tão importante foi jogada no lixo. Já o primeiro documento importante sobre a formação do clero em 1970, cinco anos depois do Presbyterorum Ordinis, chamava-se Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis. As rationes nacionais seguem esse padrão até hoje.

Em poucos anos voltamos ao “homem sagrado” que inspira medo sagrado, que estabelece distâncias com o mundo e as pessoas, que se veste diferente, que carrega em sua própria psique uma cisão entre a perfeição que deveria representar e a imperfeição que esconde.

IHU – O senhor escreveu, em artigo publicado no Religión Digital em 2018, que o Papa “Francisco deveria encorajar o desenvolvimento autônomo da Igreja latino-americana”. O que isso significa na prática? O que entende por “desenvolvimento autônomo”? Pode dar alguns exemplos?

Jorge Costadoat – O teólogo Karl Rahner, em artigo intitulado Interpretação Teológica Fundamental do Concílio (1980), defende que é possível pensar numa terceira grande etapa “teológica” que começou com o Vaticano II, que ele identifica como a de uma “Igreja mundial”.

Uma primeira etapa teria sido a do judeu-cristianismo que São Paulo acabou superando. O Apóstolo dos Gentios convenceu os apóstolos de Jerusalém de que não era necessário ser judeu para ser cristão. Desde então, e até hoje, prevalece em todos os lugares a Igreja grega, latina e ocidental que conhecemos. As nossas Igrejas são exportações desse modelo. Somos colônias. A terceira etapa, a da “Igreja mundial”, poderia ser semelhante à daqueles cinco antigos patriarcados. A Igreja africana, por exemplo, poderia expressar o dogma católico em novas categorias, elaborar uma moral de acordo com os seus problemas, celebrar a Eucaristia com espécies tão significativas como são o pão e o vinho para nós, e redigir um direito canônico.

É isto que quero dizer quando digo que o Papa deve promover o desenvolvimento autônomo da Igreja latino-americana. Penso em Igrejas regionais que reúnam católicos que partilhem características culturais semelhantes.

A tensão aumenta. No desenvolvimento do Sínodo há muitas discussões entre setores eclesiásticos culturalmente diversos, e não apenas entre conservadores e progressistas. No fim do Sínodo sobre a família, o Papa notou uma grande diversidade entre os participantes. Havia vários pareceres sobre questões importantes.

Refiro-me a este tipo de autonomia. Seria necessária uma grande obra de engenharia eclesiástica para organizar as relações entre a Igreja romana e as outras Igrejas. Roma tem a responsabilidade de manter a Igreja unida. As demais Igrejas têm a obrigação de ajudar o Papa a cumprir este dever. Não é uma coisa fácil.

IHU – No mesmo texto, o senhor disse: “A Igreja chilena precisa urgentemente que o Papa introduza mudanças-chave na doutrina, na estruturação e no governo da Igreja universal”. O que precisa mudar na doutrina e por que tais mudanças seriam positivas? E quanto à estrutura e ao governo da Igreja universal, que alterações sugere e por quais razões?

Jorge Costadoat – O que digo sobre a Igreja chilena creio ser útil para a Igreja de outras regiões. Refiro-me a assuntos que já mencionei. No Chile há uma questão que merece especial atenção. Também ocorre em outros países latino-americanos, mas no Chile de forma acelerada. A transmissão da fé desacelerou.

As razões podem ser diversas. Um fator muito poderoso é o cultural. Ao já antigo desenvolvimento da secularização, deve-se acrescentar as novas formas como os jovens estão sendo “formatados”. As novas gerações, ao que parece, acreditam que podem editar-se sozinhas. Parece que os jovens pensam que é possível começar como se ninguém tivesse existido antes deles. Eles não precisam de pais, mães, professores, padres ou freiras. Como teriam necessidade de uma tradição religiosa milenar? Eles se livram disso. Na verdade, não começam do zero, mas dá a impressão de que funcionam como se o mundo tivesse começado com eles. Se for realmente assim, o cristianismo será totalmente diferente ou acabará desaparecendo não apenas porque os catequistas não terão catequisandos, mas porque em breve também não haverá mais catequistas.

No Chile, a maioria dos seminários foi fechada. No maior deles, de um a cinco seminaristas por ano entram para a formação. Eles entram e saem. Os jesuítas, em 2024, não tinham noviços e nos anos anteriores quase nenhum. A vida religiosa feminina também está em declínio. Se esta tendência continuar por mais cinquenta anos, teremos uma Igreja totalmente diferente.

Seria lamentável perder uma tradição milenar de sabedoria em tempos de tanta confusão. Mas também é verdade que se abre a possibilidade de ter um cristianismo desacerdotalizado. Mas quem realmente sabe o que vai acontecer?

IHU – Que desafios e possibilidades para o fazer teológico na América Latina emergem das provocações do Papa Francisco na carta apostólica Ad theologiam promovendam para uma reflexão teológica “que a comprometa a ser uma teologia fundamentalmente contextual, capaz de ler e interpretar o Evangelho nas condições em que os homens e as mulheres vivem cotidianamente…” (§ 4)?

Jorge Costadoat – Eu não estava esperando essa pergunta. Trata-se de algo muito novo que passou despercebido.

O texto continua com uma frase ainda mais forte: “Por isso, é necessário que, em primeiro lugar, se privilegie o conhecimento do sentido comum das pessoas, que é de fato o lugar teológico onde se encontram tantas imagens de Deus, que muitas vezes não correspondem ao rosto cristão de Deus, apenas e sempre amor”. Este motu proprio reconhece o que realmente acontece nas comunidades cristãs latino-americanas e, especialmente, nas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Nelas se dá autoridade teológica à experiência de fé dos cristãos. Até agora pensava-se que as fontes da revelação eram fundamentalmente as Escrituras e a Tradição da Igreja. Neste texto admite-se e solicita-se que se abra espaço entre os “lugares teológicos próprios” à vida das pessoas e aos acontecimentos históricos.

A constituição Gaudium et Spes, do Vaticano II, inaugurou esta forma de fazer teologia em nível magisterial. Em suma, foi inventada por Joseph Cardjin, o criador do método Ver-Julgar-Agir (a este respeito, recomendo o excelente livro do Agenor Brighenti sobre este método). No Vaticano II, os maiores teólogos discutiram este método. Não lhes parecia possível aceitar um método teológico que incluísse um momento indutivo. Falou-se timidamente de “sinais dos tempos”, embora esta fosse a categoria teológica que serviu para esquematizar a constituição em vista de estabelecer um diálogo da Igreja com o mundo contemporâneo.

Em todo caso, não conheço nenhum documento do magistério que afirme tão claramente, como faz Ad theologiam promovendam, que Deus fala hoje e não apenas na Bíblia. Este simples texto – não sei se foi traduzido para o português, não existe tradução para o espanhol – fala de uma revolução na história da teologia. Os tratados de Teologia Fundamental, no futuro, serão divididos entre aqueles que dão a máxima importância ao Ad theologiam promovendam e aqueles que o consideram uma referência interessante ou simplesmente o ignoram.

IHU – Que intuições das constituições do Vaticano II podem inspirar renovações pastorais e uma Igreja mais sinodal?

Jorge Costadoat – O mais importante é seguir a convicção de João XXIII de fazer do Vaticano II um concílio pastoral. A Igreja, segundo o Papa bom, deveria fazer um aggiornamento para anunciar o Evangelho de uma forma que os contemporâneos pudessem considerá-lo uma Boa Nova.

Um elemento-chave foi apresentar a Igreja como uma comunidade na qual os membros mantinham relações fraternas entre si. O capítulo II da Lumen Gentium tem uma relevância maior. A Igreja é Povo de Deus. O batismo nivela o campo de jogo. Antes de qualquer organização e autoridade que nos atribuímos, somos irmãos e irmãs porque fomos batizados em Cristo.

Se a missão da Igreja é anunciar a possibilidade de um mundo fraterno, ela deve viver a fraternidade. A sinodalidade consiste em que aqueles de nós que foram unidos por Cristo, o irmão mais velho, percorram este caminho. O Irmão universal, diria Pedro Trigo.

IHU – Como vê o panorama teológico na América Latina?

Jorge Costadoat – O panorama mais importante é aquele aberto por Leonardo Boff.

O grande sinal dos tempos é a consciência da catástrofe ecológica e ambiental. Em sintonia com a Ad theologiam promovendam, acredito que precisamos desenvolver uma teologia que parta da experiência espiritual de todas as pessoas sensíveis ao “clamor da terra e ao clamor dos pobres”, como dirá Francisco na Laudato Si'.

Mas o futuro do planeta é incerto. Uma guerra atômica acabaria com os “lugares teológicos” e com os teólogos progressistas ou conservadores. A incerteza gerada recentemente pela inteligência artificial é a prova de que o planeta pode escapar das nossas mãos a qualquer momento. 

IHU – Quais os desafios para construir uma “civilização da gratidão”?

Jorge Costadoat – Justamente o desafio teológico anterior oferece uma possibilidade singular de contribuir para a criação de uma nova civilização. A civilização capitalista que nos fez competir pela vida em todos os níveis, que colocou um preço em todas as criaturas, incluindo as pessoas, e que nos deixou falidos, tem de acabar.

A experiência da criação exige o reconhecimento de que ninguém se merece a si mesmo. Sempre houve Alguém ou algo, terão que reconhecer também os ateus, que nos precedeu. Pode ser que tenhamos tido um mau pai ou uma má mãe. Mas o reconhecimento desta precedência é o início exato de um mundo melhor. A gratidão, mesmo como meta, abre as portas para a gratidão de uns para com os outros. E para isso fomos criados. A glória de Deus consiste em nos partilharmos entre as criaturas, vivas e inertes.

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