10 Março 2023
O artigo é de Jorge Costadoat, teólogo jesuíta chileno, publicado por Religión Digital, 03-03-2023.
O cataclismo na confiança dos fiéis nos ministros consagrados por causa de seus abusos sexuais, de poder e de consciência, e seu posterior acobertamento, exige atualmente rever as áreas de exercício do ofício do sacerdócio. Os católicos estão zangados com razão. São necessárias conversões do olhar e do coração. Mas, acima de tudo, são necessárias reformas institucionais e processuais.
Isso se aplica ao sacramento da Reconciliação. A confissão é um instrumento perigoso. Sempre foi, só que em outros tempos ninguém se importava que fosse. Atualmente, sobretudo quando a Igreja quer avançar na sinodalidade, é necessário avaliar o exercício deste sacramento; mas, acima de tudo, é preciso rever esse instrumento em si.
É um fato amplamente conhecido pelos padres e fiéis que abusos de gravidade variável são cometidos por meio da confissão. Os leigos sabem disso. Mais de um, em mais de uma ocasião, teve uma experiência terrível. Não me refiro aos casos mais preocupantes como o aliciamento (pedido sexual). Eles têm podido ir de um padre para outro, dependendo dos pecados que ele costuma perdoar ou da misericórdia que tem, até encontrarem quem lhes convém. É o que muitas mulheres tiveram que fazer por causa da pílula. Os padres, de nossa parte, tiveram que reparar pessoas que algum padre há dez, vinte ou trinta anos maltratou com dureza ou alguma repreensão. Ou "dê permissão" para as pessoas receberem a comunhão na missa.
Como esses eventos podem ser impedidos de continuar a ocorrer? Dir-se-á que não seria necessário preocupar-se tanto. As pessoas quase não se confessam mais. Mas o sacramento deveria simplesmente ser descartado como inútil? Antes que algo assim aconteça, deve-se evitar que haja pessoas que atualmente se sintam compelidas a confessar-se. Deve-se investigar como um tipo de relação entre ministros e fiéis impede seu encontro com Deus, até mesmo o prejudica, em vez de facilitá-lo.
O perdão é um aspecto fundamental no cristianismo. Mas a Igreja não tem uma forma única de oferecê-la. Por exemplo, na mesma Eucaristia há pelo menos dois momentos de perdão, no início da Missa e quando os participantes dão paz uns aos outros. As autoridades eclesiásticas fazem bem o seu trabalho quando exortam os católicos a pedir perdão; ou quando chamam uma sociedade para se reconciliar. Mas ainda pode ser considerado normal que uma pessoa seja obrigada a revelar sua privacidade a outra? Não é realmente ultrajante esperar que um cristão abra seu coração para alguém?
Isso era normal anos atrás. Hoje não. Na cultura atual, a privacidade das pessoas é um aspecto de sua dignidade humana. A intimidade só deve ser compartilhada livremente. Pode-se dizer que nesta época são consultados voluntariamente psicólogos a quem as pessoas contam tudo. Mas a natureza da obrigação em ambos os casos é muito diferente.
E se a confissão fosse absolutamente voluntária? Nesse caso, a Igreja teria que justificar como autoriza a existência de um instrumento religioso, como o sacramento da Reconciliação, conhecendo os riscos mencionados. No melhor dos casos, ela deveria formar os ministros com conhecimentos psicológicos e teológicos, além de estabelecer controles sobre esta atividade como ocorre com o exercício de outras profissões.
O processo sinodal em curso exige a superação das assimetrias eclesiásticas que impedem a eclesialidade, como a que se realiza na confissão, originada por sua vez no sacramento da Ordem que coloca os ministros em um grau hierárquico superior. A tríade dos sacramentos da Eucaristia, Reconciliação e Ordem costuma atuar como uma pena dentro da qual a liberdade dos filhos e filhas de Deus é minada. Sua liberdade e sua dignidade. Deve-se lembrar, ao contrário, que na intimidade Deus pediu a Maria que fosse a mãe de Jesus. Ele fez isso sabendo que sua resposta poderia ter sido negativa. A liberdade é um dos nomes do cristianismo (Gal 5, 1).
O que está acontecendo na Igreja em relação ao sacramento da Reconciliação é preocupante. Este é um aspecto, uma questão ou uma dimensão de uma lacuna muito profunda entre as práticas sacramentais e a emergência cultural de novos valores. Muitos hoje esperam de sua Igreja instrumentos que os ajudem a desenvolver um cristianismo vivo. Não estão dispostos a que sua fé em Cristo passe necessariamente por um “homem sagrado”, seja chamado de sacerdote, seja chamado de presbítero ou bispo. O sacerdócio da Igreja, em muitas partes, chega ao fim. O sacramento da Reconciliação não corresponde aos padrões da humanidade da época.
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Jorge Costadoat sj: “O sacramento da reconciliação não corresponde aos padrões de humanidade da época” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU