“As razões da crise de 2008 continuam. Quer dizer, há uma ausência de regulação nessa área de derivativos, dos mercados de opção, há um processo crescente de financeirização da economia”, afirma doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal
As primeiras análises em torno das consequências da falência dos bancos americanos Silicon Valley Bank e Signature Bank, na semana passada, indicam que os riscos de uma crise sistêmica, a exemplo do ocorrido em 2008 e 2009 no sistema financeiro, não existem. Entretanto, “é óbvio que essa é uma avaliação que ainda está sujeita à comprovação da realidade”, disse Paulo Kliass ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU na entrevista a seguir concedida por WhatsApp. Segundo ele, apesar de os riscos de um efeito dominó serem pouco prováveis, a quebra dos bancos confirma o consenso entre os analistas “em relação à situação do capitalismo e à situação financeira no plano global, no sentido de que vivemos uma situação de crise permanente”.
De acordo com Kliass, a quebra do Silicon Valley Bank, que atuava diretamente com as startups californianas, provavelmente não terá impacto no mercado brasileiro. “É difícil imaginar que a quebra do SVB tenha um reflexo direto nas startups atuantes no Brasil. Quer dizer, o SVB trata especificamente com empresas nos EUA e, sobretudo, na Califórnia. Então, é uma relação muito distante das startups brasileiras. Como é uma crise de desconfiança geral, isso provoca uma espécie de afastamento de clientes, de futuras empresas e futuros negócios em busca de financiamento e crédito no mercado financeiro. Mas está muito distante de chegar ao mercado brasileiro, que não tem bancos especializados neste segmento. As Fintechs começaram a atuar recentemente no Brasil, e é pouco provável que haja uma consequência direta entre a situação das startups californianas ou americanas e o setor de startups no Brasil”, pondera.
Na entrevista, Kliass compara a crise financeira de 2008 com a situação atual, critica os dogmas do financismo e o discurso de austeridade fiscal, que é desconsiderado quando se trata da necessidade de o Estado auxiliar financeiramente os bancos. Ele também reflete sobre o crescimento da financeirização da economia e seus efeitos na economia real. “De 2008 para cá, cresceu muito a área das Fintechs, das criptomoedas. É consenso que existe, circulando na esfera global do financismo, um valor extremamente mais alto, multiplicado e potencializado, do que os valores da economia real. Quer dizer, são trilhões e trilhões de dólares que giram diariamente no mercado global e se, de um momento para o outro, ocorrer um aprofundamento súbito da desconfiança, este aprofundamento será capaz de provocar uma grave crise no capitalismo mundial. Mas ele não é provocado por uma crise como essa que assistimos agora, que aparentemente é localizada e foi relativamente controlada, apesar de alguns de seus efeitos terem atravessado o Atlântico e chegado na Suíça e na França. Em princípio, não vai ter um transbordamento como ocorreu 15 anos atrás”.
Paulo Kliass (Foto: Filipe Calmon – ANESP)
Paulo Kliass é graduado em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas – FGV/EAESP, mestre em Economia pela Universidade de São Paulo – USP e doutor na mesma área pela Université de Paris 10. Desde 1997 é integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
IHU – Qual o tamanho dos bancos americanos que tiveram falência decretada na última sexta-feira, 10-03-2023, o Silicon Valley Bank e o Signature Bank? Como eles operam e qual é o perfil dos correntistas?
Paulo Kliass – O Silicon Valley Bank é o 18º banco na estrutura do mercado bancário americano e tinha um total de ativos, no fim de 2022, de 210 bilhões de dólares – o que não é pouca coisa. Já o Signature Bank tinha um total de 110 bilhões de dólares no final de 2022 e ocupava a 36ª posição, mas ele não entrou na contabilidade do ano passado porque não estava sob a jurisdição de controle do Fed (Federal Reserve), banco central dos Estados Unidos. Esses são bancos expressivos, principalmente se considerarmos que o mercado americano é muito pulverizado: existem mais de 4.200 bancos. Então a quebra deles não é uma coisa a se desconsiderar.
O SVB é um banco do Vale do Silício, na Califórnia, área considerada o berço de todas as empresas que hoje são as grandes potências da área digital e informática. A região continua sendo uma região de muitas startups, de empresas que começam, geralmente, com alunos brilhantes das universidades, que atuam na área tecnológica. O SVB opera principalmente aí, oferecendo crédito e participação em empresas de ponta da tecnologia.
As primeiras análises mostram que as dificuldades que o banco começou a apresentar têm a ver com isso. Ele fazia empréstimos de longo prazo para este tipo de empresa, mas, mais recentemente, quando o Fed começou a subir a política de juros e ter uma política monetária mais arrochada, acabou criando uma contradição entre os empréstimos de longo prazo com taxas de juros baixas e os empréstimos para rolar no curto prazo com taxas de juros muito altas. Esse descompasso entre o ativo e o passivo é o que teria começado a criar problemas, e quando essa situação se tornou pública houve uma corrida dos clientes para sacar seus recursos do banco, que não conseguiu cumprir os compromissos, justamente, por esse descompasso.
O Signature é um banco menor e o que as primeiras análises demonstram é que a crise do banco teve outras razões. Ele operava principalmente no setor de criptomoedas, que é um segmentado ainda pouco regulamentado, com pouca transparência, muita especulação e bastante incerteza. Em função da crise de expectativas, esse foi um dos primeiros bancos a ser afetado justamente por causa da desconfiança. Ambas as instituições sofreram esse processo de corrida dos clientes para sacarem seus recursos e deixaram a contabilidade dos bancos descoberta.
IHU – Esses dois bancos têm alguma relação com o Estado e/ou mobilizam algum investimento estatal?
Paulo Kliass – Segundo as informações disponíveis, não. São bancos que operam basicamente com o setor privado e vivem da captação de recursos, por um lado, e de empréstimo de dinheiro, por outro, mas operam com segmentos diferenciados. A relação que eles podem eventualmente ter com o Estado – isso ainda não ficou claro pelas informações que foram reveladas – é que, de alguma maneira, todos os bancos do mercado bancário americano operam também com títulos da dívida pública, títulos do Tesouro americano, mas eles não têm nenhuma relação com o Estado ou com investimento estatal.
IHU – Quais foram as causas das falências?
Paulo Kliass – Basicamente, houve um descompasso entre a estrutura de ativos e passivos em que tem taxas de juros mais altas de um lado do que do outro. Isso gera uma crise de expectativa, de confiança, e uma corrida de clientes e depositantes em função da incerteza da sobrevivência do banco no médio prazo. Assim, os correntistas correm para sacar seus recursos a curto prazo. Isso faz com que o banco fique a descoberto.
O governo está assegurando o direito dos depositantes de sacarem os recursos, mas, evidentemente, isso não impediu a quebra dos bancos. O que estão tentando evitar é que essa situação se transforme em uma crise de expectativa e desconfiança do sistema como um todo, que tenha um efeito dominó no sentido de provocar a quebra de outros bancos porque existe um fenômeno de interdependência dos agentes na esfera financeira.
IHU – Quais os impactos da quebra do Silicon Valley Bank para as startups de tecnologia? Há riscos e impactos para as startups brasileiras ou que atuam no Brasil?
Paulo Kliass – Precisamos esperar um pouco para saber quais serão as consequências. Mas, em função das dimensões do banco, da sua especialização no setor das startups, com certeza vai ter algum grau de afetação negativa no ramo das empresas tecnológicas na Califórnia e nos Estados Unidos de forma geral. O fato de o governo estar assegurando o direito dos correntistas e clientes talvez sirva um pouco para amenizar o impacto econômico e financeiro da insolvência do SVB, mas ainda não dá para dizer a magnitude dessa consequência.
É difícil imaginar que a quebra do SVB tenha um reflexo direto nas startups atuantes no Brasil. Quer dizer, o SVB trata especificamente com empresas nos EUA e, sobretudo, na Califórnia. Então, é uma relação muito distante das startups brasileiras. Como é uma crise de desconfiança geral, isso provoca uma espécie de afastamento de clientes, de futuras empresas e futuros negócios em busca de financiamento e crédito no mercado financeiro. Mas está muito distante de chegar ao mercado brasileiro, que não tem bancos especializados neste segmento. As Fintechs começaram a atuar recentemente no Brasil, e é pouco provável que haja uma consequência direta entre a situação das startups californianas ou americanas e o setor de startups no Brasil.
IHU – Economistas especulam a possibilidade de desencadeamento de uma crise sistêmica no setor financeiro em função da falência dos dois bancos. Em artigo recente, o senhor comentou que “há indicações de que esta onda talvez não seja tão danosa nem destruidora para a economia como aquela que ocorreu 15 anos atrás”. Por que, em sua avaliação, os riscos de uma crise sistêmica não existem?
Paulo Kliass – É óbvio que essa é uma avaliação que ainda está sujeita à comprovação da realidade. Quer dizer, há muito tempo existe um consenso entre os analistas em relação à situação do capitalismo e à situação financeira no plano global, no sentido de que vivemos uma situação de crise permanente. Isso é fato.
A situação de 2008 e 2009 não foi a primeira, mas foi uma crise importante, que tem muito a ver com a crise do subprime. Ou seja, há um descompasso entre a estrutura dos bancos e as possibilidades reais de as famílias e os indivíduos honrarem os compromissos financeiros. Isso foi visto no caso das hipotecas do setor imobiliário, quando houve uma valorização dos imóveis, num primeiro momento, com uma bolha especulativa no setor, e, num segundo momento, com a crise econômica e o aumento do desemprego. As pessoas não conseguiram honrar as prestações dos imóveis.
Naquela época, 15 anos atrás, ocorreu um efeito dominó: houve a quebra do Lehman Brothers e grandes conglomerados industriais foram afetados, como a General Motors. Ou seja, teve um efeito cascata que não está ocorrendo agora pela dimensão desses dois bancos. A ação do governo americano aparentemente está contribuindo para que não ocorra um efeito dominó, no sentido de que o governo está garantindo os direitos dos agentes econômicos. Mas isso não impede que a questão esteja resolvida. De maneira nenhuma. As razões da crise de 2008 continuam. Quer dizer, há uma ausência de regulação nessa área de derivativos, dos mercados de opção, há um processo crescente de financeirização da economia.
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De 2008 para cá, cresceu muito a área das Fintechs, das criptomoedas. É consenso que existe, circulando na esfera global do financismo, um valor extremamente mais alto, multiplicado e potencializado, do que os valores da economia real. Quer dizer, são trilhões e trilhões de dólares que giram diariamente no mercado global e se, de um momento para o outro, ocorrer um aprofundamento súbito da desconfiança, este aprofundamento será capaz de provocar uma grave crise no capitalismo mundial. Mas ele não é provocado por uma crise como essa que assistimos agora, que aparentemente é localizada e foi relativamente controlada, apesar de alguns de seus efeitos terem atravessado o Atlântico e chegado na Suíça e na França. Em princípio, não vai ter um transbordamento como ocorreu 15 anos atrás.
Compreendendo a financeirização: conceito(s), origens, impactos e (im)possibilidades:
IHU – Um ponto de discussão em torno da falência dos bancos é o uso de recursos públicos destinados a estas instituições pelo Tesouro para salvá-las. Pode explicar como ocorre este processo e quais suas implicações para o investimento social?
Paulo Kliass – Temos que separar essa questão em dois aspectos. O primeiro diz respeito ao aporte público de recursos orçamentários para atender ao interesse dos bancos e das instituições financeiras. Isso é da natureza do próprio capitalismo. No caso brasileiro, os bancos são instrumentos para operar a negociação, por exemplo, dos títulos da dívida pública. Isso oferece para eles uma remuneração expressiva relativa aos juros do título da dívida pública. Atualmente, no caso brasileiro, ao longo dos últimos doze meses foi feita uma transferência de R$ 700 bilhões do orçamento federal para o pagamento desse tipo de despesa.
O segundo caso – voltando novamente ao caso concreto dos bancos americanos e do banco suíço – tem o interesse de evitar, primeiro, a quebra imediata dos bancos e, num segundo momento, a “contaminação” do conjunto bancário, financeiro e econômico, como aconteceu na crise de 2008. Isso pode acontecer de várias formas. Uma delas é a injeção de recursos públicos do Tesouro na própria estrutura dos ativos dos bancos, de forma a evitar que as corridas [pelo resgate dos recursos] possam comprometer a liquidez da instituição e a capacidade de ela sobreviver no tempo ou de atender aos direitos dos acionistas, correntistas e clientes.
Outra forma é o que acontece neste momento nos EUA: o governo assegura o direito dos depositantes porque a pessoa corre para o banco e não tem mais o recurso que teoricamente seria dela; então o Tesouro garante esse montante. Se a pessoa tinha um valor X depositado do banco Y, e o banco não tem condições de repassar o dinheiro porque faliu, o governo garante aos depositantes o resgate dos recursos. Tem um debate em torno dessa questão para saber se o Tesouro atende realmente a todos os depositantes ou somente aos grandes – que seria uma forma de reproduzir a injustiça da desigualdade existente na hora do atendimento dos bancos.
Uma outra forma que também existe é aquilo que as instituições financeiras chamam de separar o ativo podre do ativo ainda são. Para isso, é realizada uma intervenção governamental na instituição bancária ou financeira a partir da qual são separados os títulos com problemas e que não podem ser honrados, dos títulos “bons”. O Estado, por essa lógica de defesa dos interesses do capital, assume para si, ou seja, para o conjunto da sociedade – porque é ela quem vai pagar por isso – a parte podre dos ativos e, num segundo momento, até devolve para o mercado a parte “boa” da instituição bancária e financeira.
Como vemos, existem várias formas de os recursos públicos serem usados para manter, seja o lucro dos bancos, seja o lucro dos acionistas, seja ainda a manutenção do próprio sistema capitalista. Isso tudo também se junta a um discurso ideológico que sempre observamos nos meios de comunicação através do emprego da expressão “Too big to fail” [grande demais para falir]. Eles têm que ser ajudados e isso vale não apenas para os bancos, mas também para outras empresas e conglomerados. Entre 2008 e 2009, em algum momento a General Motors, um dos ícones do capitalismo, por um momento se tornou estatal. O governo americano acabou comprando as ações da empresa por um período para evitar a quebradeira e depois as devolveu. Enfim, esta é a ideia: o Estado sempre entra para salvar os interesses do grande capital.
IHU – Em meio a lógicas neoliberais, vemos essas intuições financeiras, assim como houve em 2008, pedirem socorro ao Estado. O que isso revela?
Paulo Kliass – É contraditório, do ponto de vista do discurso, para aqueles que defendem a lógica do sistema capitalista. Ao longo das últimas quatro décadas, em que houve uma hegemonia da ideologia neoliberal, acabaram prevalecendo um arcabouço teórico e ideológico e uma narrativa bem peculiares. Assim, defendem-se a austeridade fiscal, a redução do gasto social, fala-se que o Estado não pode gastar de forma ineficiente, argumenta-se pela liberalização completa da economia e diz-se que a presença do Estado na economia é prejudicial porque acaba comprometendo a eficiência do sistema e o bem-estar da população. Além disso, vem a defesa da ideia da privatização, no sentido de que o Estado, como agente econômico, seria ineficiente e, portanto, a melhor forma de fazer a gestão das empresas estatais ou públicas seria por meio da venda ou doação delas para o setor privado.
Mas, neste momento que estamos vivendo e em momentos anteriores, quando o capitalismo passou por crises expressivas, às favas com a ideologia neoliberal, com o discurso em prol do setor privado, e viva o Estado que vem salvar as empresas capitalistas. Este é o ponto. No caso dos bancos, vale a mesma lógica. Eles sempre continuam recebendo recursos vultuosos do Estado por meio do pagamento dos juros da dívida pública e, agora, recebendo na veia a injeção de recursos do sistema para evitar sua quebra.
Neste debate, vale a pena reforçar que, independentemente deste momento atual de crise, do ponto de vista da narrativa ideológica nós vimos a criação do conceito de superávit primário. Quando se fala em austeridade fiscal, a ideia é que só se foque nas chamadas contas primárias, que são todas as contas orçamentárias, com exceção das contas financeiras. Estas últimas incluem o pagamento de juros da dívida e ficam de fora dessa apuração de déficit ou superávit. A ideia é fazer superávit em cima de despesas, por exemplo, de saúde, educação, previdência, saneamento e mesmo de investimento público, dependendo do modelo que o país adota para a sua contabilidade pública. Com isso, o superávit fiscal acaba sendo utilizado justamente para gerar um saldo positivo nas contas do governo e honrar o pagamento dos juros da dívida pública.
IHU – Em artigo recente, o senhor disse que o Silicon Valley Bank “também aparecia como instituição sólida e segura (sic), chegando a ocupar a 20ª posição, em uma lista elaborada há poucos dias pela conhecida publicação Forbes, como um dos mais recomendados bancos americanos”. Qual é o papel e a responsabilidade das agências de risco nesse processo?
Paulo Kliass – O ponto é o seguinte: o sistema financeiro congrega e é composto de um conjunto amplo de entidades, empresas e instituições. Além dos bancos, das bolsas de valores, das corretoras, das distribuidoras de títulos imobiliários, existem as agências de risco. Elas funcionam como um mecanismo para se obter mais informação a respeito da real situação de empresas, instituições e bancos a fim de informar os investidores, os acionistas e a população de forma geral. Esse processo é antigo e existe há mais de seis décadas, mas ele foi se sofisticando no restante do mundo e também no Brasil. Atualmente, existe uma espécie de padrão por meio do qual essas agências de riscos operam nas suas avaliações.
Algumas informações são públicas e outras são restritas ou encomendadas a partir de pesquisas específicas que são pagas por alguma empresa que deseja um estudo sobre um setor ou empreendimento. As notas variam, mas geralmente são de números de 0 a 10 ou de letras, que são as mais conhecidas. Começou com A, B, C, D e E. Depois, para dar sutileza a respeito da situação das instituições, passou-se ao modelo tipo A+ e A- e, depois, para A, AA e AAA, que corresponde à empresa mais bem cotada possível. No caso da crise de 2008 e 2009, o Lehman Brothers, que era um dos grandes bancos da economia americana, até a antevéspera da queda, era cotado pelas agências de risco como AAA. Isto é, uma empresa sem problemas e se revelou totalmente fragilizado.
O que acontece é que essas agências de riscos são muito comprometidas e dependem do sistema financeiro para sobreviver. Portanto, elas vivem esse dilema entre, de um lado, ter sua credibilidade assegurada para o seu mercado potencial futuro e, para isso, teriam que ser rigorosas, mas, de outro lado, dependem do campo financeiro e não querem criticar o mercado financeiro, sob pena de também perderem espaço e mercado por serem vistas como não muito confiáveis, em função de eventual crítica ao sistema. É uma situação complicada e sutil, mas, via de regra, o que acontece é que grandes empresas e instituições com problemas não são captadas e alertadas pelas agências de riscos, em especial quando se trata de bancos. É aquela história do parasita e do hospedeiro: um depende do outro e fazem um jogo de compadrio e dependência recíproca.
IHU – Quais são os “dogmas do financismo” que são postos à prova a partir desses casos de falência?
Paulo Kliass – Um dos dogmas do financismo posto à prova nesta crise é que somente a ação “livre” das forças de oferta e demanda do mercado bastariam para resolver todos os problemas de ineficiência econômica. Estamos vendo que não funciona bem assim, uma vez que existem mercados que são oligopólios, mercados cuja informação não é transparente para todos os setores e agentes envolvidos. Isso significa que é fundamental e necessário ter uma regulação forte do setor público para evitar práticas oligopolistas que firam a concorrência leal. No caso do Brasil, essa seria uma das funções do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE nas áreas econômica e financeira e, nas áreas econômica e bancária, seria do Banco Central. Mas isso não é feito.
Outro aspecto é a ideia de que não se deve ter a presença do Estado na economia porque isso levaria a ineficiências. Percebemos que é o contrário: muitas vezes, a presença do Estado na economia acaba colaborando para que a solução final, a solução pelo equilíbrio, seja mais equânime e promotora de redução das desigualdades.
Finalmente, outro dogma é a ideia de estar agarrado ao conceito de austeridade fiscal. Essa ideia vai por água abaixo porque fica evidente que, nos momentos de crise, os recursos que, teoricamente, não existiam para as áreas da saúde, educação, previdência etc., aparecem para salvar bancos e reduzir as perdas dos grandes conglomerados econômicos.
IHU – O senhor destacou que esses casos de falência confirmam “a possibilidade que o Estado tem de criar moeda e gerar recursos da noite para o dia, sempre que houver esse tipo de necessidade (…) para salvar prioritariamente os grandes conglomerados”. O que isso indica sobre a política econômica dos governos?
Paulo Kliass – Indica que o problema não é técnico nem um dogma insolúvel a respeito da existência de recursos ou da inexistência de recursos fiscais, tributários e econômicos do governo. Toda a discussão sobre austeridade fiscal, a vigência do teto de gastos, a necessidade de fazer a revogação do teto de gastos, a necessidade um novo arcabouço fiscal no lugar daquilo que era chamado de novo regime fiscal, da Emenda Constitucional n. 95, tudo isso está sendo colocado em questão e indo por água abaixo.
O fato é que os recursos existentes podem ser acessados e a decisão é política; não é uma decisão técnica. Isso vale para o Brasil e para outros países. Sempre que se trata de cogitar um aumento das despesas, uma promoção dos gastos e fazer investimentos na área social, o discurso oficial e do financismo é que não dá para fazer porque os recursos não existem e isso seria populismo fiscal, gastança e irresponsabilidade. Por outro lado, sempre que aparece alguma necessidade do grande capital, por exemplo, no caso das ajudas aos bancos, o dinheiro que antes não existia, agora aparece: ele aparece na forma de recursos e orçamentos a serem utilizados, como é o caso do pagamento de juros.
Na época da pandemia, por exemplo, o governo conseguiu recursos – eles apareceram – para pagar uma série de despesas que não estavam previstas no orçamento. Isso mostra que o Estado, como é o caso do Brasil desde o Plano Real e dos países que conseguem se financiar na sua própria moeda, tem mais liberdade para aumentar a quantidade de recursos na sociedade através da emissão de moeda ou do lançamento de novos títulos, aumentando o endividamento público, sem provocar nenhuma quebradeira. A relação dívida/PIB nos EUA é superior a 120%. Nos países da União Europeia acontece a mesma coisa. O Japão supera 200% e nem por isso esses países estão quebrados. Esse é mais um dos aspectos que vêm a confirmar a necessidade de superar esses dogmas do financismo, que na verdade serve apenas para proteger os interesses dos grandes conglomerados, bancos e instituições financeiras.
Na verdade, está em curso uma grande mudança nos paradigmas da macroeconomia convencional. Afinal, os Estados Unidos e os países europeus, por exemplo, romperam com a lógica da austeridade depois da crise de 2008-2009 e da pandemia. As autoridades econômicas aumentaram a emissão de moeda e elevaram seus níveis de endividamento para fazer face às necessidades da crise. E nem por isso houve um aumento da inflação ou quebradeira dos países. Estas são algumas das ponderações que a abordagem da Teoria Monetária Moderna sempre fez e que só agora estão sendo incorporadas aos poucos pelo próprio establishment em alguns países.
IHU – Como está o investimento em criptomoeda hoje? Por que há interesse nesse mercado e quais seus impactos na economia real?
Paulo Kliass – Sugiro muita cautela nesta questão, que é muito complexa, muito pouco conhecida e sobre a qual se tem pouca informação.
Um dos problemas diz respeito ao fato de que essa é uma atividade que começou e continua à margem do sistema financeiro oficial, sem qualquer mecanismo de regulação nos países, inclusive nos EUA, onde ela é mais desenvolvida. É muito difícil fazer uma avaliação da dimensão desse mercado. A criptomoeda acontece no universo dos blockchain, que são inacessíveis teoricamente do ponto de vista regulatório. Algumas avaliações indicam que um trilhão de dólares estariam sendo aplicados em criptomoedas, mas é difícil ter essa segurança porque quem fez essa conta muito provavelmente não conseguiu chegar no total dos montantes para chegar a uma avaliação dos estoques globais.
Apesar disso, nas bolsas de Nova York, por exemplo, há papéis cotados em criptomoedas. Então os derivativos da própria criptomoeda, isto é, a quantidade de recursos aplicados à criptomoeda, são títulos, valores, que já estão na superfície do mercado financeiro, mas que operam com cotação e expectativa de mercado futuro da criptomoeda.
O fato é que a criptomoeda está crescendo. Na última década, a cada ano que passou, houve um aumento da utilização da criptomoeda, mas ainda tem muita desconfiança em função da falta de transparência, da falta de organismos controladores e reguladores por parte dos Estados e por parte das instituições internacionais.
O que se avalia também é que uma parte dos recursos que são aplicados em criptomoedas e que são negociados em criptomoeda ocorre na profundidade da deep web e nos blockchain, ou seja, há muitos recursos ilegais. Muito do universo do jogo, do crime organizado, das drogas, da prostituição, das armas, no plano internacional, também está aplicado à criptomoeda. Ela tem dois aspectos, assim como as moedas tradicionais: pode ser usada como instrumento de troca, na compra e venda de produtos na forma de criptomoeda, ou como instrumento de valorização, de aplicação, porque a criptomoeda tem valor de cotação diário e é possível fazer investimentos com a compra de uma quantidade de criptomoeda com as moedas nacionais, esperando que no futuro vá ter uma valorização.
Os especialistas avaliam que, apesar desse lado pouco conhecido, pouco transparente e sem regularização, o sistema é muito seguro no sentido de que o recurso aplicado não vira pó, não desaparece. A pessoa pode ter uma perda de dinheiro em função da variação da cotação diária. A avaliação é que essas estruturas de blockchain são acessíveis e seguras e que o montante investido em criptomoeda seria preservado.
As consequências do ponto de vista do mercado financeiro estão por ser feitas. Estamos vivendo no olho do furacão. O crescimento é real do ponto de vista do volume de recursos e de aplicações, mas ainda não está na dimensão de ameaçar o mercado financeiro mais tradicional e ativo. Agora, como toda inovação tecnológica – por exemplo, como acontece com os bancos totalmente digitais, com a internacionalização possível das operações financeiras diárias no plano internacional e da sofisticação do universo dos derivativos –, é possível que esse seja o futuro da criptomoeda. Se, algumas décadas atrás, tivéssemos tido uma conversa sobre os riscos que o mercado de derivativo colocaria para os mercados à vista (petróleo, ouro, soja), também haveria essa questão. Hoje, as estimativas dos organismos internacionais é que o valor de derivativos negociado diariamente no mundo é da ordem de dezenas de trilhões de dólares e isso supera em muito o potencial das economias reais. Essa é uma característica da financeirização da economia desde sempre, mas o universo dos derivativos potencializa esse deslocamento da esfera financeira em relação à esfera real da economia.