01 Fevereiro 2023
Se o catastrofismo fosse uma religião, para muitos, Nouriel Roubini seria o seu grande profeta. O economista estadunidense, nascido em Istambul, há 64 anos, passa rapidamente por Madri, em sua turnê para apresentar seu livro Megamenazas (Deusto), que acaba de ser publicado em espanhol [em Portugal, Mega-Ameaças, publicado pela editora Planeta].
O título tem tonalidades apocalípticas, praticamente um clickbait de papel, mas não se trata de uma isca para atrair leitores: seu conteúdo lhe corresponde. “Se você não vive em um lugar alto, em latitudes frias, com água potável em abundância, prepare-se para se mudar”, diz no capítulo sobre mudança climática, justamente o que vem após o que aborda as tensões geopolíticas, quando fala sobre uma Segunda Guerra Fria entre o Ocidente e a China.
São apenas dois dos dez grandes alertas do horizonte sombrio delineado por Roubini, agora reconvertido em uma espécie de viajante da hecatombe - vem de Israel e nesta tarde embarcará para Paris - que segue pelo mundo para alertar sobre tempos difíceis, devido ao alto endividamento, a queda da produtividade pelo envelhecimento da população, o retrocesso da globalização e a substituição do homem por máquinas gerenciadas com inteligência artificial.
Embora alguns prognósticos possam parecer excessos de um pregador, a pandemia ensinou a não descartar nada categoricamente, e os antecedentes de Roubini, um dos poucos que previu a vinda da crise financeira de 2008, levam a pensar que convém ouvi-lo quando fala - com um inglês não isento de sotaque estrangeiro, apesar de seus muitos anos em Nova York, um dos idiomas que domina junto ao hebraico, persa e italiano -, sentado em um sofá de uma sala no último andar da Fundação Rafael del Pino.
A entrevista é de Álvaro Sánchez, publicada por El País, 30-01-2023. A tradução é do Cepat.
O mundo recuperou o PIB pré-pandemia, os mercados de trabalho parecem fortes e os bancos centrais dizem que em caso de recessão, não seria longa, nem profunda. Não podemos ser otimistas sobre o que está por vir?
Eu discordo por muitas razões. Penso que a inflação atingiu o seu ponto máximo, mas retrocederá de forma mais lenta do que os bancos centrais acreditam. Estamos entrando em uma contração econômica com o endurecimento da política monetária e fiscal, enquanto nas duas recessões anteriores, as causadas pela crise financeira e a covid, nós a suavizamos para ajudar a economia a se ajustar.
A origem da contração econômica está em shocks de oferta negativos e não no excesso de demanda. Ao ajustar a política monetária para combater a inflação, algo que todos estão fazendo ao mesmo tempo, a contração se torna mais severa. E, por último, o ponto mais importante: há muita dívida pública e privada no sistema.
Não pode ocorrer uma surpresa positiva?
Mesmo que alguns desses shocks de fornecimento negativos fossem aliviados a curto prazo – apesar de o final da guerra na Ucrânia ser pouco provável –, existem forças que favorecem a estagflação. A balcanização das cadeias de abastecimento, o envelhecimento da população, a restrição à imigração laboral, o desacoplamento dos Estados Unidos e da China e outras ameaças geopolíticas, a mudança climática, a guerra cibernética, as pandemias, a explosão da desigualdade, a queda do papel do dólar como moeda de reserva global... Cada um desses fatores, por si só, impulsionam a estagflação a médio e longo prazo.
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Roubini sabe o discurso de cor. Basta folhear o seu livro para encontrar um fragmento com as palavras que acaba de pronunciar, praticamente idênticas. Escreveu a obra durante a pandemia, um tempo sombrio em, de repente, não podia mais viajar pelo mundo, como costuma fazer durante mais da metade do ano, e pôde se sentar para pensar, ler e escrever.
Não era um especialista em tecnologia, pandemias e mudança climática. Era o economista que previu a Grande Recessão, um feito que o tornou célebre e pelo qual recebeu pedidos de autógrafos e agora selfies. Assim, embarcou em uma pesquisa mais holística, de “homem do renascimento”, conforme a classifica, para ligar os pontos do que acontecia ao seu redor e tentar antecipar tendências.
Colocar isto no papel levou um ano e meio de sua vida. Uma fase em que preferiu o angustiante confinamento nova-iorquino, mais impregnado do aroma da história, ainda que fonte de memórias tenebrosas, em vez da fuga quase como um período de férias para outros.
“Muitas pessoas saíram de Nova York, que foi o marco zero da pandemia porque é uma cidade globalizada. Foram para os Hamptons ou para o norte de Miami. Eu estava preocupado em ficar doente, havia manifestações e distúrbios, inclusive um saque perto da minha casa, pois as pessoas estavam desesperadas. Mas você não pode escapar da realidade e se esconder em uma caverna na Tasmânia ou no norte do Estado com a esperança de sobreviver individualmente. Você precisa participar na sociedade”.
O livro foi publicado nos Estados Unidos em outubro, então, já houve reações. Segundo Roubini, ninguém desconstrói as suas teses. “Não estou falando de extraterrestres que invadem a Terra. Não estou falando de asteroides atingindo o planeta. Estou falando de coisas que na realidade, em certo sentido, não são nada novas. Quero dizer, existem centenas de livros escritos sobre a mudança climática. Existe uma pandemia. Assumo um pouco do ângulo econômico. A própria Kristalina Georgieva e sua equipe do Fundo Monetário Internacional falam de uma “confluência de calamidades” e que estamos diante do maior desafio, desde a Segunda Guerra Mundial. Há quem tenha ideias diferentes sobre qual é a ameaça mais grave, mas ninguém me diz que não existam”.
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E qual é a ameaça que você considera a mais perigosa?
Depende do horizonte. Você sabe, a mudança climática a médio e longo prazo é a ameaça existencial. O risco de que a guerra entre grandes potências se torne pouco convencional com o inverno nuclear é uma ameaça maior. Uma pandemia muito mais desagradável que a da covid 19... São tendências que vão devagar. Embora algumas delas estejam acelerando severamente. A curto prazo, é claro, os problemas são a inflação, a recessão, a estagflação...
Como será a recessão que você previu?
Não será curta, nem superficial. O Reino Unido segue com uma inflação de dois dígitos, e o Banco da Inglaterra espera seis trimestres de crescimento negativo. Isto já é uma aterrissagem forçada. Sinto que o que está acontecendo no Reino Unido se tornará a norma na Europa, na zona do euro.
No entanto, há muitos indicadores, da expectativa de vida à redução da pobreza, que dizem que estamos vivendo a melhor época da história.
É verdade que para a maioria dos humanos as coisas melhoraram. Contudo, antes, não tínhamos as preocupações de agora. Richard Nixon visitava a China, ninguém tinha ouvido falar em mudança climática, e a última pandemia que tínhamos conhecimento era a de 1918.
Agora, existe a possibilidade de uma guerra entre grandes potências, o inverno nuclear, a mudança climática acelerada, as pandemias recorrentes, a destruição de postos de trabalho, a globalização e o protecionismo, uma crise econômica mais severa, o risco de depressão, uma dívida insustentável, o envelhecimento da população... E o desafio às democracias dos populistas de extrema direita e extrema esquerda em todo o mundo.
Com qual período você compararia o mundo de hoje?
Para mim, é parecido com o período entre 1914 e 1945, no qual apesar da globalização, da Revolução Industrial, não evitamos a Primeira Guerra Mundial. Depois, veio a gripe espanhola, a queda da bolsa de 1929, a Grande Depressão, deflação, hiperinflação, guerras comerciais, guerras de divisas, desemprego... E a chegada de Hitler ao poder, na Alemanha, de Mussolini, na Itália, de Franco, na Espanha, e dos militares, no Japão.
Não descarta a possibilidade de uma guerra em grande escala.
No Ocidente, já temos uma Guerra Fria entre os Estados Unidos e a China, e uma quente entre a Rússia e a Ucrânia. Em alguns cenários, pode se tornar pouco convencional. Não podemos descartar que envolva a OTAN. Kissinger acaba de escrever um artigo dizendo que tudo começará com a Rússia. A Ucrânia é o começo de algo que pode se tornar realmente feio.
Venho de Israel, e lá realmente acreditam que o Irã está se tornando um estado nuclear no limiar de quase ter a bomba. E tem muito mais: o Oriente Médio é um barril de pólvora, da Síria ao Líbano, Líbia, Iêmen e Iraque. E depois, na Ásia, não é apenas a choque China-Taiwan. A China tem disputas territoriais com Japão, Índia, Malásia, Filipinas e Vietnã.
Isso poderia desencadear a temida Terceira Guerra Mundial?
Os Estados Unidos e a China estão em rota de colisão na questão de Taiwan, entre outras. E a Guerra Fria está se tornando cada vez mais fria. A divisão que desacopla e a fragmentação da economia global em dois sistemas de segurança econômica, monetária, comercial, financeira, política e tecnológica, um dominado pelos Estados Unidos, Europa e seus aliados, e o outro pela China e os seus, vão deixar um mundo completamente dividido.
Essa é a direção para a qual vamos. A questão é se haverá um conflito total entre esses dois blocos ou não. E eu diria que existe uma possibilidade significativa. Quer dizer, isto não é dito por mim. São os especialistas em geopolítica que começaram a falar sobre um conflito global, e inclusive sobre a Terceira Guerra Mundial.
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Apelidado de Doutor Catástrofe pelo pessimismo de suas previsões, neste livro, Roubini é muito mais do que um economista acusado de agoureiro. Também se destaca como um analista das relações internacionais, que utiliza diversas citações jornalísticas para apoiar seus argumentos. E se movimenta como um peixe na água da distopia, tão em voga nestes tempos em que a realidade persegue a ficção e, às vezes, a busca. O capítulo sobre inteligência artificial tem muito disso. E as mesmas ideias fluem de sua viva voz na manhã madrilenha. Se as máquinas substituírem o homem nas cadeias de produção, e até nos trabalhos intelectuais, o que faremos com a mão de obra excedente?
Aí emergem novos cenários de pesadelo: homens e mulheres transformados em parasitas que recebem uma renda básica universal, em uma tentativa de redistribuir a riqueza a partir dos donos da tecnologia, taxados com impostos especiais, a suas vítimas, munidas de um saco de conhecimentos imprestáveis, pois foram superados e engolidos por máquinas mais preparadas. Acabarão vivendo em um mundo paralelo sem propósito, onde o vazio é preenchido por videogames e opiáceos que são apenas a antessala da morte por desespero.
Nem toda esta nebulosa paisagem de desconexão entre o cidadão e a sociedade é construída sobre o futuro e a hipótese. “Em 2021, nos Estados Unidos, as overdoses de drogas provocaram mais de 100.000 mortes”, lembra o economista. É o outro lado desse mundo hiperprodutivo que tantos pintam como libertador para o ser humano, por romper as cadeias das intermináveis jornadas de trabalho, desnecessárias se os robôs e a automação podem se ocupar delas.
E um golpe a mais no modelo trabalhista ocidental, evocado por Roubini com certa nostalgia. “Os críticos da globalização viram o fruto amargo das políticas comerciais que favorecem o baixo custo e a produtividade acima da vitalidade econômica dos trabalhadores e de suas comunidades. Em poucas palavras, trocamos bons postos de trabalho, com bons salários, por importações baratas em grandes varejistas”, diz uma passagem do livro.
Colecionador de arte contemporânea, amante da música e, sobretudo, viciado em debates e batalhas no mundo das ideias, explica que costuma realizar jantares jeffersonianos, nos quais, como fazia o ex-presidente estadunidense, os presentes conversam a respeito de diversos temas, respondendo a perguntas feitas por Roubini, em vez de conversas bilaterais ou em pequenos grupos. “Torna-se uma oportunidade para refletir”, avalia.
Para superar as turbulências, Roubini aposta em um ativo refúgio: o ouro. E renega veementemente outro: as criptomoedas. Em sua conta no Twitter, é comum vê-lo criticá-las com uma inusitada ferocidade. Ele as considera uma fraude total, que beneficia seus promotores a se tornarem ostentosos milionários. "A FTX não é uma exceção, mas a regra”, diz a respeito da grande farsa perpetrada pela plataforma de Samuel Bankman-Fried, agora atrás das grades.
No entanto, não acredita que uma eventual quebra dessas moedas digitais provoque um efeito de contágio preocupante para a economia real. “O problema final é que há muitos acionistas minoritários iludidos, jovens que desperdiçaram todas as suas economias comprando 50.000, 60.000 ou 69.000, em 2021, e que agora perderam 80% do que investiram”, lamenta.
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“A recessão não será curta, nem superficial”. Entrevista com Nouriel Roubini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU