15 Março 2023
Nova crise bancária nos EUA coloca em xeque dois dogmas do financismo. Ausência de regulação do Estado não torna o sistema mais forte. E, sim, é possível emitir moeda tanto para salvar especuladores quanto para o Comum…
O artigo é de Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, publicado por Outras Palavras, 14-03-2023.
Quase 15 anos após a quebra do Lehman Brothers no início da profunda crise econômico-financeira de 2008/9, o mundo das finanças internacionais passa por um novo processo de turbulência. Naquela época, o cenário inicial dizia respeito apenas à economia norte-americana e os efeitos da falência daquele importante banco contribuíram para aprofundar a gravidade do quadro de dificuldades em que se envolveram os principais protagonistas do mercado financeiro daquele país. No entanto, dado o grau de internacionalização do capitalismo nos tempos atuais, a crise rapidamente atravessou o Atlântico e afetou também de forma aguda o espaço europeu.
Enfim, o mundo todo acabou sendo afetado pelas consequências da paralisia que tomou conta da economia dos países mais ricos. A novidade foi a iniciativa assumida pelos governos dos mesmos em propor e implementar aspectos de política econômica que estavam na contramão de toda a narrativa – e mesmo da prática – dos dogmas do neoliberalismo. O Estado foi chamado a intervir de forma direta e pesada no coração das esferas econômica e financeira, abandonando a ideia de deixar que apenas o mercado, por meio da ação idílica das livres forças de oferta e demanda, encontrasse a melhor saída para aquele quadro que escancarava um flagrante descontrole.
Na verdade, aquela crise surgiu, dentre outras razões, exatamente pela ausência de regulação de setores importantes do mercado financeiro e bancário. A sofisticação de produtos no universo financista evoluiu de forma descontrolada ao longo das últimas décadas e o processo de internacionalização se associou à natureza intrínseca do capitalismo de buscar a maximização de ganhos a qualquer custo. Assim, os papéis conhecidos como “derivativos” e outros teoricamente destinados a minimizar os riscos nas operações cresceram em quantidade e importância. O principal resultado, porém, foi o de ampliar ainda mais a exposição das empresas que operam no sistema financeiro. Percebeu-se que o comportamento especulativo do mercado só consegue ser limitado quando existe regulação por parte do setor público.
Esse foi o caso do importante setor das hipotecas imobiliárias dos Estados Unidos. Na crise de 2008/9, as duas principais instituições de ramo sofreram um grande baque, em razão da incapacidade de pagamento das obrigações por parte de indivíduos e famílias. As empresas “Freddie Mac” e “Fannie Mae” sofreram também as consequências da supervalorização crescente e artificial dos imóveis naquele país e da redução da renda daqueles que haviam contraído os empréstimos de longo prazo, típicos dos contratos hipotecários. Por outro lado, a multiplicação de papéis sem nenhum lastro no lado real da economia, que passou a ocorrer de forma cada vez mais expressiva no interior das transações financeiras, apenas apontava para um grave risco potencial de insolvência do conjunto do sistema.
Assim, os governos dos países centrais e as instituições multilaterais (como o Fundo Monetário Internacional – FMI e o Banco Mundial – BM) iniciaram um processo de flexibilização de sua verdadeira obsessão, até aquele momento, com as recomendações do neoliberalismo. A certeza de que deixar tudo para uma solução liberal “autêntica” provocaria uma crise sem precedentes levou à edição de um volumoso pacote de ajuda financeira e de subsídios para evitar uma debâcle generalizada do sistema. Na linha conhecida como too big to fail, os governos injetaram recursos públicos para evitar a falência dos grandes conglomerados. Por outro lado, tem início um longo processo de redução expressiva das taxas de juros oficiais (que ficaram muito tempo inclusive negativas) e de emissão monetária em ampla escala, que ficou conhecida por quantitative easing. O dinheiro público, que todos diziam não existir, apareceu em grande quantidade e a custo reduzido.
O importante a reter aqui é que a prioridade de salvar o capitalismo globalizado levou as direções do sistema a abandonarem os cânones da política econômica até então vigente e a adotar um receituário de liberalismo, ma non troppo. Ou muito pouco liberal. Pois a situação atual revelou que quase nada foi feito no sentido de introduzir mecanismos de regulação e de prudência no sistema, provavelmente pelo fato de que isso iria incomodar a raiz liberal da natureza da dinâmica do próprio capital. O dinheiro público foi utilizado para ajudar os grandes, sempre por meio da contribuição dos pequenos via arrecadação tributária. Mas as práticas tangenciando os limites do risco e da especulação permaneceram sem nenhum tipo de penalização ou impedimento. Até que chegamos a meados de março de 2023.
Desta vez, tudo começou também com alguns bancos norte-americanos. O Silicon Valley Bank (SVB) e o Signature Bank (SB) foram os mais afetados em um primeiro momento, mas as ameaças também se aproximaram de outros, como o Fisrt Republic Bank (FRB), 14º maior banco nos Estados Unidos. O governo e as instituições da área econômica do país lançaram mão de medidas nada liberais para evitar um risco de contágio mais amplo no sistema. Mais uma vez, os recursos públicos estarão disponíveis para os grandes depositantes e as imperfeições e as falhas do arcabouço regulatório serão asseguradas pelo Tesouro. Na verdade, optou-se por impedir que a solução da crise fosse alcançada “livremente”, por meio dos modelitos tão apreciados e defendidos pelos ortodoxos e neoliberais.
É importante lembrar a cumplicidade dos demais agentes do financismo com a situação de gestão irresponsável das empresas que atuam no sistema. Em 2008, por exemplo, às vésperas da quebra do Lehman Brothers, as agências de risco ofereciam ao banco notas máximas de recomendação, chegando próximas do famoso “triple A”. No caso atual, o SVB também aparecia como instituição sólida e segura (sic), chegando a ocupar a 20ª posição, em uma lista elaborada há poucos dias pela conhecida publicação Forbes, como um dos mais recomendados bancos norte-americanos.
Apesar disso, há indicações de que esta onda talvez não seja tão danosa nem destruidora para a economia como aquela que ocorreu há 15 anos atrás. No caso do SVB, por exemplo, uma das razões estaria na própria política monetária de elevação dos juros oficiais levada a cabo pelo Federal Reserve (FED). A percepção de elevação de risco no SVB teria provocado uma corrida de depositantes e levado a uma incapacidade de o banco honrar seus compromissos. No caso do SB, as primeiras avaliações apontam como principal causa de fragilidade o maior envolvimento da instituição com o segmento de papéis e títulos conhecidos como criptomoedas. Enfim, caso as medidas anunciadas pelo governo Biden sejam suficientes, elas talvez se revelem como capazes de evitar um agravamento do risco sistêmico.
De qualquer maneira, o fato é que essa nova crise deixa a nu a fragilidade de alguns dogmas do financismo e a injustiça explícita do sistema econômico vigente. De um lado, a ausência de regulação e de maior presença do Estado na esfera da economia torna o sistema mais frágil e refém de suas próprias características, a exemplo da busca de lucro a qualquer custo e da ampliação das operações especulativas e desvinculados da economia real. Por outro lado, o momento atual confirma a possibilidade que o Estado tem de criar moeda e gerar recursos da noite para o dia, sempre que houver esse tipo de necessidade. O problema é que, assim como ocorreu em 2008/9, os contribuintes arcarão com o ônus dessa quantidade trilionária de recursos que estão sendo injetados na economia para salvar prioritariamente os grandes conglomerados.
O caminho para as forças progressistas passa por exigir que a mesma postura dos governos de liberalizar o rigor com a austeridade fiscal ocorra quando se tratar de oferecer recursos orçamentários para as áreas sociais e para os investimentos públicos de interesse da maioria da população. E também para que seja exigido um aperfeiçoamento do marco regulatório para coibir as práticas especulativas no mercado financeiro. Enfim, para que estas medidas pontuais de flexibilização do “liberalismo arrependido” sejam mais estruturais. Enfim, que se transformem em novidades que apontem na direção de um novo modelo que privilegie a economia real, a geração de emprego, a sustentabilidade e a redução das desigualdades.
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A quebra dos bancos e a dos mitos. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU