16 Janeiro 2023
"A austeridade continua sendo um pilar do sistema capitalista. Tanto mais que hoje, em muitas partes do mundo, em nome do bom funcionamento da economia, tende-se a considerar a democracia um estorvo".
O artigo é de Gad Lerner, jornalista, publicado por Il Fatto Quotidiano, 15-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A campanha ideológica implementada pelo governo de direita contra a renda de cidadania e contras as “excessivas” tutelas dos trabalhadores assalariados, ostenta ascendentes históricos ilustres: está completando um século a teoria da austeridade, forjada em total sintonia por políticos e economistas ingleses e italianos para defender que o empresário e o poupador seriam o núcleo vital da sociedade, e por isso aqueles que por seu demérito vivem apenas do seu trabalho devem se submeter ao "imperativo sagrado de austeridade" para não ser considerados um estorvo. Estou exagerando? Leiam o que o chanceler Austen Chamberlain disse em 1920: “Existem 45 milhões de libras destinadas a subsídios ao pão. Nada me daria mais satisfação do que os abolir”. Isso lhes lembra alguém? Dois anos depois, o principal teórico do fascismo de direita, Maffeo Pantaleoni, reforçava a dose: "As classes de menor renda são notavelmente deficientes por qualidade em relação às demais, de modo que essa deficiência é a causa da menor renda e não a menor renda causa da deficiência”. Para piorar a situação, o liberal Luigi Einaudi argumentava: "É fato conhecido que os salários dos trabalhadores aumentaram consideravelmente... provam isso os aumentos conspícuos no consumo de bebidas alcoólicas, doces, chocolates, biscoitos". Um precursor da polêmica contra os adoradores do sofá. Não é à toa que entre 1925 e 1928 os EUA e o Reino Unido, apesar do caso Matteotti e da aprovação de leis fascistas, multiplicaram seus investimentos em títulos italianos, em apoio ao regime de Mussolini. Seu ministro das Finanças, Alberto De' Stefani, definido pelo Times como a versão italiana de um "acadêmico de Oxford", proclamou logo após a marcha sobre Roma: "A política de perseguição ao capital foi repentinamente interrompida graças a nós!". Os economistas liberais soltavam um suspiro de alívio. Após o “biênio vermelho” das lutas operárias, ao impor austeridade e disciplina, a economia de mercado era afastada do risco de colapso iminente.
A uma jovem estudiosa italiana, Clara E. Mattei, devemos a meticulosa reconstrução histórica das circunstâncias com que se impôs uma teoria da austeridade, entendida como primado dos dogmas da economia sobre a esfera política, ainda hoje a mais popular. Isso foi feito num livro publicado nos Estados Unidos, onde leciona, e traduzido por Einaudi sob o título Operazione Austerità (Operação austeridade. Como os economistas abriram caminho para o fascismo, em tradução livre).
Partindo das escolhas feitas um século atrás com a pretensão de “despolitizar a esfera da economia”, Mattei traça um implacável balanço, estendido até os dias atuais, daquela que Luciano Gallino chamava de “a mística da austeridade”. Um fracasso na obtenção dos objetivos a que se propunha – redução da dívida pública, crescimento econômico – tornou-se "uma constante do capitalismo moderno" e provou ser brutalmente eficaz na proteção das suas hierarquias. Também são seus herdeiros os “vínculos de vigilância multilateral” que subordinam os empréstimos condicionados do FMI à aplicação de políticas de austeridade fiscal, monetária e industrial. Com o resultado de salvaguardar o sistema das empresas capitalistas à custa do agravamento das condições de vida dos trabalhadores, impor uma tributação regressiva em sua desvantagem e cortar o estado de bem-estar. Medidos de longo prazo, os números falam por si, tanto na Itália como no Reino Unido e nos Estados Unidos. Tanto no final da crise do pós-guerra quanto com o retorno da tecnocracia a partir dos anos 1980, registra-se um desvio maciço da riqueza nacional dos salários para os lucros, enquanto a taxa de sindicalização dos trabalhadores desmorona por toda parte.
Ainda hoje, os teóricos da austeridade costumam se apresentar como severos censores dos defeitos das classes subalternas, acostumados bem demais a se acomodar em bem-estar improdutivo. Mattei destaca uma certa tendência desses teóricos para o autoelogio e não hesita em citar nomes: na esteira de Luigi Einaudi, ela visa em especial os "Bocconi boys"(universidade de economia de Milão, nt). Se sua pesquisa explica bem as raízes culturais da adesão repentina da direita de governo aos ditames da austeridade, ao contrário, evita lidar com outra passagem que não é dada como garantida: a teoria da austeridade adotada pela esquerda comunista de Berlinguer e Amendola, quando imaginaram que, fazendo sacrifícios para erradicar a inflação, os trabalhadores se transformariam na classe dirigente do país. O resultado foi diferente. A austeridade continua sendo um pilar do sistema capitalista. Tanto mais que hoje, em muitas partes do mundo, em nome do bom funcionamento da economia, tende-se a considerar a democracia um estorvo.
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O mito da austeridade é fascista e capitalista. Artigo de Gad Lerner - Instituto Humanitas Unisinos - IHU