Ocidente X Oriente: a contínua construção do “outro-inimigo” a ser derrotado. Entrevista especial com Gabriel Pessin Adam

Nas disputas políticas entre as potências econômicas, os refugiados saem do papel de “outro-vítima” e assumem o papel de “outro-invasor”, diz o pesquisador

Foto: Politize

Por: Edição: Patricia Fachin | 20 Julho 2022

 

Se no final do século XIX o processo de colonização do sudeste e leste asiático, da África e do Oriente Médio deu origem ao "orientalismo", ou seja, à construção de uma imagem da sociedade oriental, sua cultura e costumes, hoje, os países centrais do ocidente continuam determinando o discurso acerca desses povos, diz Gabriel Pessin Adam, professor dos cursos de Relações Internacionais da Unisinos e da ESPM-Sul, na palestra intitulada "Imagens e identitarismos em guerras. Orientalismos de nova ordem", ministrada no Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 23-06-2022. "Os países centrais, EUA e seus aliados da Europa ocidental, têm muita capacidade de definir essas identidades. Por mais que haja redes sociais e tenha se democratizado o acesso à informação em alguma medida, ainda hoje os países mais poderosos do sistema internacional conseguem criar as pautas, classificar, categorizar e identificar os outros muito mais do que a versão contrária", constata.



Segundo ele, o orientalismo do século XIX é atualizado contemporaneamente por uma espécie de "orientalismo de nova ordem", "à medida que o ocidente ainda consegue definir quem são esses ‘outros’". Hoje, menciona, "os 'outros' são, primeiro, os da Ásia que ascendem, como a China - sua ascensão, seus costumes, sua capacidade crescentemente econômica e militar - e, segundo, o religioso que contesta, ou seja, o mundo islâmico que contesta a categorização em que foi colocado, a visão que o ocidente tem da sua religião, a visão que um grupo de cristãos tem sobre o que seria todo o islamismo. Em terceiro lugar, ainda acrescentaria que os 'outros' são o oriente que migra e reforça sua identidade quando entra no território do ocidente".



A guerra entre a Ucrânia e a Rússia, pontua, em comparação com outras guerras que ocorrem em países do Oriente Médio, é um exemplo de como o discurso sobre o "outro" é produzido, distinguindo e criminalizando povos, ou favorecendo e beneficiando outros, a partir das relações de poder. Entre os refugiados, menciona, "claramente há uma diferenciação" de tratamento por parte das superpotências econômicas e políticas.

 

"O discurso do país mais poderoso continua, mas agora temos dois ambientes: o ambiente interno, com a questão da migração, e o ambiente exterior. No ambiente exterior, o ocidente luta contra o 'outro' que é inimigo, e vai lutar contra o 'outro' que é vítima. O ‘outro-inimigo’ tem que ser derrotado, como Bashar Hafez al-Assad, na Síria, o regime do Irã, Putin, na Rússia, sobretudo para proteger a população local. Só que aí vem um ponto interessante: os 'outros' que são vítimas e precisam de proteção – atitude paternalista dos EUA – migram para o ocidente. Só que enquanto são vítimas [dentro de seus países] e precisam ser protegidos, estão com um sinal positivo, mas quando eles tentam entrar no território do 'eu', no ocidente, nas fronteiras da União Europeia, sobretudo, e nas fronteiras dos EUA, eles saem do papel de ‘outro-vítima’ e assumem o papel de ‘outro-invasor’ e aí passam a ser combatidos também porque passam a ser uma ameaça não no sistema internacional, mas dentro do território do 'eu' ocidental", exemplifica.



Na conferência a seguir, publicada no formato de entrevista, Gabriel Pessin Adam explica como as identidades culturais do ocidente e oriente foram e continuam sendo construídas a partir da lógica da guerra e da disputa pelo poder.

 

Gabriel Pessin Adam (Foto: Arquivo Pessoal)

 



Gabriel Pessin Adam é graduado Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e doutor em Ciência Política pela mesma universidade.



Confira a entrevista.


IHU – Em que consiste a noção de orientalismo?

 

Gabriel Pessin Adam - Edward Said escreveu a obra Orientalismo em 1978, a qual se tornou muito divulgada à época e gerou muito debate desde a sua publicação, sobretudo nas duas últimas décadas do século XX. Ele é um palestino de origem que estudou boa parte da vida no Egito e seguiu carreira acadêmica nos EUA. Ele se definia como “um intelectual de fronteira” e, em função disso, trabalha temáticas culturais, de identidade e poder.

 

O contexto da época em que Said publicou o livro era o da Guerra Fria, de uma bipolaridade no sistema internacional entre os EUA e União Soviética, que afetava todas as regiões e continentes do sistema internacional e, muito fortemente, o Oriente Médio. No Oriente Médio, aquela era uma década muito conturbada – como quase todas são –, pós-decadência e extinção do império turco-otomano. Em 1973 ocorreram dois eventos: a guerra do Yom Kippur e o primeiro dos choques do petróleo. Então, o livro é publicado entre o primeiro e o segundo choque do petróleo. O primeiro estava relacionado à guerra do Yom Kippur, e o segundo, à guerra Iraniana.

 

Ainda no contexto do Oriente Médio, um dos países de grande relevância na geopolítica da região era o Egito, que estava em um processo de mudança na política externa. Era um país que nos 20 anos anteriores teve uma aproximação com a União Soviética e, paulatinamente, pós-1973, se alinhou com os EUA, a ponto de na década de 1980 já estar completamente alinhado aos americanos. Nesse contexto, havia uma atuação muito forte de duas superpotências do período e o Oriente Médio começava a projetar efeitos para o sistema internacional, sobretudo em função dos choques do petróleo e da ação do governo xiita que tomou o poder na Revolução Iraniana. Esses são fatos importantes porque, quando a obra foi publicada, a questão de ser árabe e como o ocidente os enxergava estava em voga no sentido de que era uma temática muito debatida e que renovava o argumento do orientalismo defendido por Edward Said. O contexto não é muito diferente do que vamos ver posteriormente, sobretudo a visão que o ocidente tem em relação ao oriente e aos árabes enquanto etnia e enquanto ao islamismo como religião.

 

 

Orientalismo e a colonização

 

O conceito de orientalismo surge no final do século XIX, em um segundo processo de colonização dos europeus, que vão se dirigir para três regiões: o sudeste e leste asiático, com a colonização de países como Indonésia, Malásia, Indochina Francesa, e com a aproximação com o Japão; a África, com a colonização de quase todo o continente, com exceção da Etiópia e algumas regiões muito pequenas; e o Oriente Médio. França e Grã-Bretanha avançam no Oriente Médio sobretudo na retroação do império turco-otomano, que vai encolhendo, perdendo guerras e territórios, e os europeus vão avançando tanto pelo norte da África quanto pelos Bálcãs, até que o império turco-otomano se desfaz no final da primeira Guerra Mundial.

 

Essa nova onda de colonialismo obrigou os europeus a compreenderem os locais onde estavam e passaram a colonizar. Uma das formas de fazer isso era enviar uma série de acadêmicos, pesquisadores, desbravadores, engenheiros, geógrafos, artistas plásticos e escritores, que pesquisavam o local e escreviam para o público europeu, que lia nos jornais sobre esses novos locais. Eram feitas também exposições em galerias e museus, e as pessoas que tinham mais poder aquisitivo e erudição compravam os livros dos relatos de viagens e produções acadêmicas sobre o orientalismo. Nesse contexto surge o que chamamos de orientalismo acadêmico, ou seja, o orientalismo produzido pela academia, aquele a partir do qual Said vai estabelecer o conceito de orientalismo enquanto prática discursiva, que é o que nos interessa.

 

Os europeus, pintores, escritores e acadêmicos, chegavam no Oriente Médio e olhavam aquelas sociedades, costumes e culturas a partir de uma lente europeia, fazendo uma leitura do que eram aquelas culturas e, a partir daí, construindo uma visão mais ou menos homogênea e homogeneizadora do que eram os povos do oriente. Isso aconteceu em relação a vários povos, mas Said foca especificamente no caso dos povos árabes, os povos do Oriente Médio propriamente dito, que é o norte da África e a península arábica.

 

 

(Foto: Freepik)

 

Dentro desse contexto, o orientalismo virou um campo de estudo e de disciplinas em cursos universitários. Mas, para Said, a construção do que era o oriente – como ele se organizava, como era a cultura e a sociedade oriental, os costumes – foi feita a partir de um viés europeu distorcido, no sentido de que era uma visão dos europeus sobre o que era aquilo, sem ter o cuidado de tentar compreender esses locais a partir da sua lógica ou a partir do prisma da cultura daqueles povos.

 

Naquela época havia a questão malthusiana e um racismo exacerbado, além da categorização de espécies e animais – e começava a ser feita fortemente uma categorização das pessoas. Esse é o contexto cultural no qual foi construído o orientalismo e, obviamente, por ser imbuído desse contexto, ele vai ter elementos de racismo. Este também é um momento em que os europeus conquistaram uma boa parte do mundo: praticamente toda África, quase todo o sudeste asiático, a Oceania, a Austrália e a Nova Zelândia e quase todo o Oriente Médio e, a partir daí, essa conquista ampliada fez com que inflasse o ego europeu e eles se sentissem realmente muito superiores a todos os outros povos do sistema internacional. Isso contribui para que os eles tivessem a característica de superioridade cultural em relação aos povos que estavam sendo retratados nos livros e matérias de jornais.

 

 

IHU – Qual era a finalidade dessa representação?

 

Gabriel Pessin Adam - Said diz que, a partir da construção desse orientalismo, é possível que as definições políticas, sociológicas, ideológicas, científicas e até a imaginação imagética dos povos do orientalismo fossem definidas pelos próprios europeus. Com isso, se retirou o “lugar de fala” dos próprios povos do Oriente Médio. Isso foi feito, segundo Said, por causa da política, para justificar o processo de dominação dos europeus com o colonialismo. Não foi apenas um erro, uma falha de procedimento ou falha metodológica observar esses povos do oriente a partir de um prisma europeu sem fazer um processo de empatia e imersão nessas culturas para saber qual é a visão de mundo delas; isso era intencional. Ou seja, era feito para que fosse estabelecida definitivamente uma hierarquia de povos, colocando os europeus no topo da hierarquia e categorizando os povos colonizados em escalas abaixo dessa hierarquia, como se fosse uma pirâmide, a partir da visão que os europeus tinham do desenvolvimento sociopolítico, econômico e cultural desses povos.

 

Na verdade, o orientalismo é um instrumento de poder: ele confere poder aos europeus e, mais importante ainda, legitima a postura de colonizar essas regiões. Aí vem o elemento político e legitimador desse pensamento orientalista: na medida em que toda produção cultural divulgada para o mundo partia dos europeus, a visão deles sobre os povos orientais passou a ser a visão corrente em várias partes do mundo que eram culturalmente influenciadas pela Europa. Há uma desigualdade muito grande de poder e ela passa a ser legitimada pela suposta superioridade dos europeus, que justificava o processo de colonização e de dominação europeia em relação ao resto do mundo. Nesse sentido, Said diz que o orientalismo deve ser estudado não porque trata do oriente, mas porque é importante ver como esse discurso foi construído e quais relações de poder se estabeleceram a partir dele e como ele era usado para legitimar as relações de poder e cristalizar uma situação política naquele momento.

 

 

IHU - Pode dar alguns exemplos de como o orientalismo era retratado?

 

Gabriel Pessin Adam - Dentro desse contexto, algumas imagens clássicas do orientalismo mostram uma menina sendo vendida ou possivelmente sendo colocada em um harém (imagem abaixo). Na época da pintura, 1887, o movimento feminista na Europa está em sua primeira onda, então a questão de gênero e da mulher já era debatida nas sociedades europeias e uma pintura como essa impactava fortemente porque demonstrava uma espécie de barbarismo dos povos árabes.

 

 (Foto: Reprodução | Youtube)

 

Nesta outra pintura (imagem abaixo) representativa do orientalismo há um fator exótico: uma criança – de gênero não bem definido –, com uma cobra, nua perante uma plateia. Isso é algo que no islamismo nem aconteceria na vida real, mas essas pinturas traziam a visão exótica do orientalismo que, para os europeus, deveria ser mudada e se europeizar a fim de atingir um processo civilizacional que a trouxesse para a modernidade. Esse era o caminho a adotar.

 

(Foto: Reprodução | Youtube)

 

Identidade social

 

Outro conceito importante nessa discussão sobre o orientalismo é o de identidade social, como o cunhado pela pesquisadora britânica Kathryn Woodward. Segundo ela, a identidade é formada por meio da diferença, ou seja, em alguma medida defino o que sou pelo que o outro é. O que ele é, eu não sou. Ou o que eu não sou, ele é. E aí estamos definindo a identidade.

 

 

IHU – Como isso se aplica no caso dos povos?

 

Gabriel Pessin Adam - Neste caso, estamos falando de povos e países e, portanto, falamos de uma abordagem macro, ou seja, o que eles são, eu não sou; o outro é o diferente. No caso dos europeus, o outro oriental era um outro não civilizado, místico, não racional, não produtivo e arcaico em oposição ao europeu que era produtivo, racional, moderno e civilizado. Quanto mais se estancavam os povos árabes em uma espécie de paralisação no tempo em um momento pré-moderno, na visão europeia, mais reforçava-se a civilidade e a modernidade dos europeus – vamos lembrar que estamos em um período muito importante da era moderna.

 

Quando há esse tipo de situação, é preciso que haja uma diferença de poder entre os povos, porque um povo só consegue definir o que ele próprio é se tem poder de fazer esse processo de definir o que o outro é. Nesse caso, a diferença de poder que havia entre os europeus e os povos asiáticos – decorrentes das instituições europeias, de seu poder bélico e do advento do capitalismo como sistema produtivo – fazia com que essa diferença ficasse muito marcada e permitia que os europeus definissem a identidade social tanto dos povos do Oriente Médio e dos povos asiáticos quanto a visão que tinham de si mesmos.

 

Neste primeiro momento, o emissor do discurso era sempre aquele mais poderoso, quem consegue construí-lo. Esse discurso visava criar duas identidades: de um lado, a identidade do emissor e, de outro, a identidade do outro. O espaço onde essa definição circulava era tanto na sociedade do colonizador, na Europa, quanto nas colônias, para reforçar a legitimidade de dominação dos europeus e das sociedades colonizadas no sentido de indicar que elas também atingiriam a modernidade e a civilização se deixassem estes dominá-las e impor suas instituições e sistemas produtivos nas colônias. Esse é o período da virada do século XIX para o XX, até o final da Primeira Guerra Mundial.

 

IHU – O que aconteceu posteriormente?

 

Gabriel Pessin Adam - Depois da Segunda Guerra Mundial há um troca de guarda, como Said diz. Com o final da Segunda Guerra Mundial e o começo da Guerra Fria, os EUA passam a ser a grande potência dominante do sistema internacional. Segundo Said, os EUA pegam a tocha dos europeus e vão seguir com o processo de produção de identidade para os outros. Mas isso tem duas diferenças no caso dos EUA. A primeira é em relação à amplitude. Os EUA vão ter uma tentativa de dominação global em disputa com a União Soviética e uma dominação efetiva sem a colonização concreta, mas que inclui as Américas e Oceania, que não estavam sob o colonialismo europeu. O segundo ponto é o advento dos instrumentos da cultura de massa: rádio, cinema e, a partir dos anos 1950, a televisão. A cultura de massa é um upgrade para o orientalismo, porque a linguagem alcança muito mais pessoas, se torna muito mais objetiva – não se lê mais um livro, mas se assiste a uma reportagem na televisão, ou não se caminha pelo museu, mas se assiste a um filme de uma hora e meia. Então, se perde em erudição, mas se ganha em alcance e objetividade. Isso facilita muito a forma de construção de identidades e alimentação dos discursos de superioridade dos EUA.

 

 

IHU – Como caracteriza o poder dos EUA?

 

Gabriel Pessin Adam - O poder dos EUA é multidimensional e foi assim desde o momento em que eles passaram a liderar países do sistema internacional. É um poder econômico, diplomático, institucional, cultural e militar. Os europeus não tinham tantas frentes de domínio como os EUA.

 

Dentro do ambiente militar, os EUA estabeleceram o que Chalmers Johnson chama de império das bases, ou seja, a dominação dos EUA não é direta. O país não estabeleceu colônias no sistema internacional; ele tinha colônias nas Filipinas e o Havaí, ex-colônia que foi transformada no quinquagésimo estado dos EUA, e os protetorados, como Porto Rico, por exemplo, mas, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, ele descolonizou, manteve o protetorado, e começou a pressionar os europeus para que fizessem o mesmo processo. Só que isso não significa que os EUA abandonaram o controle de regiões do mundo; o interesse deles era a expansão global. Então, eles criam entrepostos militares – como a Inglaterra já fazia em menor escala – a partir de bases militares da marinha, da força aérea e, de modo menos comum, do exército. Na época da Guerra Fria, os grandes interesses dos EUA com essas bases eram:

 

1. Projetar o poderio militar para áreas de interesse – e aí basicamente tinham bases da Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN no território europeu, no Japão e em alguns países do sudeste asiático, que era a região para conter a União Soviética dentro da Eurásia;

 

2. Preparar para uma guerra nuclear como resposta a um eventual ataque soviético a fim de interceptar um míssil antes de ele chegar nos EUA;

 

3. Servir de dispositivo de alerta em caso de ataque – naquela época os satélites não eram tão desenvolvidos como hoje e então através das bases era mais fácil fazer uma fiscalização em relação ao inimigo;

 

4. Servir de símbolo de poder do país – ou seja, se o país tem bases em outros lugares, isso mostra como é poderoso, porque está presente no mundo inteiro.

 

Depois da Guerra Fria, o contexto muda: desaparece a União Soviética e o sistema internacional passa a ter uma nova configuração, onde surge a ideia de uma nova ordem mundial projetada pelo governo George W. Bush pai. Esse projeto tinha como perspectiva a unipolaridade dos EUA. Ou seja, só eles seriam poderosos no sistema internacional, já que a União Soviética havia se desmembrado e desaparecido enquanto superpotência. Só que essa nova ordem mundial tinha a paz como um elemento escondido no argumento dos EUA, que continuou trabalhando com bases militares ao redor do mundo. Nesse momento, o conceito de império das bases continua sendo válido, mas as razões mudam e passam a ser as seguintes:

 

1. Manter a supremacia militar sobre o resto do mundo;

 

2. Escutar clandestinamente as comunicações dos próprios cidadãos, aliados e inimigos;

 

3. Controlar o maior número possível de poços de petróleo, com presença no Oriente Médio;

 

4. Proporcionar renda e trabalho para o complexo industrial-militar do país.

 

Além desses, Johnson apresenta um motivo extra que é menos pragmático: o impulso das elites do país em dominar outros povos porque é possível e merecido. Aí vem uma questão importante: o excepcionalismo dos EUA. Os EUA, assim como outros países, se sentem como um país único no mundo, e isso lhes dá o dever de policiar o sistema internacional e o direito de dominar outras regiões e interferir nos seus assuntos domésticos, criando grupos e separando os outros países entre aqueles que são aliados, que podem ser agraciados por pertencer aos EUA, e os que são inimigos, que precisam ser isolados. Ou seja, o país está sempre buscando expandir o seu poder. Como não pode existir vácuo de poder, a busca por poder é, em última instância, uma busca pela sobrevivência.

 

 

Bases militares



Os Estados Unidos têm bases militares em pelo menos 80 países, ou ao menos têm algum tipo de acordo ou treinamento. Dentro desse espaço, os EUA vão construir o que chamo de círculo de legitimidade, ou seja, países cujas condutas são legitimas do ponto de vista dos EUA, cujas condutas recebem apoio e cujas condutas não são criticadas e, por mais que violem normas de direito internacional, não são punidas. O critério para isso é ser aliado dos norte-americanos e, obviamente, a própria conduta dos EUA é sempre justificada. Excluídos desse círculo de legitimidade estão os inimigos do emissor, aqueles que são entendidos como rivais ou inimigos, dependendo de quão perigosos são e o quanto conseguem projetar poder no mundo inteiro. Também estão excluídos os aliados dos inimigos do emissor, ou seja, os países que são aliados dos inimigos dos EUA, cujas condutas são questionadas e criticadas se contrariam interesses dos norte-americanos e de seus aliados.

 

IHU – Como o plano de unipolaridade muda ao longo do século XXI?

 

Gabriel Pessin Adam - No século XXI, o sonho de unipolaridade da nova ordem mundial por parte dos EUA começa a “fazer água” e o país não consegue manter essa ordem e cai, relativamente, sobretudo pela ascensão dos outros países, como a China e reascensão da Rússia. O contexto agora é outro e os EUA têm que lidar com países que não têm o seu poder, mas cujo poder é crescente e podem e são vistos como rivais. Então, os EUA precisam de um novo elemento de legitimação. Se no período anterior a legitimação se dava por levar o processo civilizatório e a modernidade para os países da Ásia e da África e durante a Guerra Fria era levar a liberdade e evitar o comunismo, agora o processo de legitimação é outro, dividido em quatro grandes elementos:

 

1. Garantir o respeito aos direitos humanos, ainda que alguns aliados não respeitem;

 

2. Instaurar a democracia a partir da lógica de que ela é o melhor regime político do mundo e que todos, independentemente da sua cultura, devem ser democracias. Parte-se do pressuposto de que as democracias dificilmente entram em guerra entre si;

 

3. Manter a paz e a estabilidade, que é uma lógica dos EUA como guardião do mundo; ou seja, apenas eles sabem o que pode levar à instabilidade ou ser perigoso para o mundo, e eles se arvoram o direito de manter isso;

 

4. A intervenção humanitária, que geralmente acontece para garantir os direitos humanos, para instaurar a democracia quando o país é ditador e para criar estabilidade em país conturbado.

 

Esses são os novos elementos de legitimação. Um país, por mais poderoso que seja, precisa de elementos de legitimação para a sua atuação, que tem uma função dupla: justificar suas ações para a sua própria população e justificar suas ações para o resto do sistema internacional, para os demais países.

 

 

Poder militar

 

O poder militar é o poder mais visível dos EUA. A China está crescendo economicamente, e o Japão já tinha crescido muito nos anos 1980 e 1990, mas, apesar disso, se diz que os chineses estão muito longe de alcançar o poder militar dos EUA. Além disso, dentro da cultura dos EUA, a guerra é muito presente: a Guerra de Independência em relação à Inglaterra, a Guerra de Secessão, a Guerra das Filipinas, a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra da Coreia, a Guerra do Vietnã, a Guerra do Golfo dos anos 90, a Guerra do Golfo de 2003, a Guerra do Afeganistão de 2001, ou seja, a história dos EUA é toda pautada por guerras e isso dá uma ideia de legitimidade para a sua população. É um país que se envolve em conflitos e defende seus interesses e, segundo o seu discurso, também defende os interesses da comunidade internacional.

 

IHU – Qual é a influência da guerra na construção da identidade?

 

Gabriel Pessin Adam - A guerra é um elemento que cria identidade, que fortalece o nacionalismo e a ideia do “eu contra o outro”, “eu e o meu inimigo”. Ou seja, a guerra força muito essa questão do “eu e do outro” no limite da existência: “se eu não matá-lo, ele me mata”. Por isso ela vai ser muito usada para construir essas identidades.

 

Nesse contexto, outro conceito importante é o de imagem como representação social, o qual poderíamos analisar a partir de filmes, séries de televisão e discursos de presidentes e autoridades – mas vou trabalhar com imagens de fotos e pinturas. A imagem, em tese, retrata momentos históricos e, às vezes, ela é muito forte a ponto de exprimir uma ideia que o texto não consegue alcançar com tal grau de profundidade, a fim de atingir o coração das pessoas no sentido de conquistar corações e mentes. O problema é que muitas vezes essas imagens são feitas com intenções específicas; não são apenas um retrato daquela situação. É um retrato pensado para causar determinada reação e esta vai estar muitas vezes relacionada a questões de ideologia e identidade. Os países usam isso fortemente na construção da identidade nacional. Muitas vezes, essas fotos ajudam a forjar a identidade nacional de um país e a criar a autoimagem que as pessoas têm da sua nação.

 

Imagens históricas

 

Esta (abaixo) é uma imagem fortíssima da tomada de Berlim pelas tropas soviéticas.

 

(Foto: Reprodução)

 

Esta outra (abaixo) é do alistamento voluntário nos EUA para a Primeira Guerra Mundial em 1917, expressando a ideia do nacionalismo, de todas as pessoas se alistando rapidamente, ou seja, a ideia do povo imbuído da guerra, o que era muito importante.


A pintura clássica abaixo representa a Revolução Francesa.

 

(Foto: Reprodução)

 

 

A Liberdade guiando o povo, pintura de Eugène Delacroix

 

Esta outra imagem (abaixo) foi muito cara para os soviéticos – e russos, hoje: é a defesa de Sebastopol, mostrando os russos lutando, praticamente de mãos limpas, contra as armas dos nazistas. Mostra a defesa forte da pátria e do povo defendendo o seu território, o que é muito forte na Rússia desde a invasão de Napoleão.

 

 

Tropas soviéticas de Sebastopol repeliram a ofensiva fascista e defenderam a cidade da costa do Mar Negro. Pintura de Alexandr Deineka, 1942.

 

Categorizar o outro

 

A imagem do outro pode servir para construir a minha identidade nacional e ela também serve para categorizá-lo. Há várias formas de categorizar o outro e posso fazê-lo de forma estereotipada e diminuí-lo. Posso fazer a diminuição do outro ou estabelecer o que ele é a partir de um ponto de vista negativo ou de uma intencionalidade. Ou seja, construo uma imagem para passar a ideia de que aquele outro tem características maléficas e crio, com isso, a oposição dele em relação ao eu. Ao negar e diminuir o outro, me reforço e me aumento. Esses cartazes (abaixo) são alguns exemplos da Primeira Guerra Mundial. O gorila seria a visão que os EUA tinham dos alemães. E, de outro lado, o cartaz alemão retrata a cultura dos EUA – a questão do grotesco do outro.

 

(Foto: Reprodução | Youtube)

 

IHU – Como essa construção de identidade e de oposição em relação ao outro continua sendo elaborada pelos países?

 

Gabriel Pessin Adam - Hoje, ainda, segundo Stuart Hall, os países centrais, EUA e seus aliados da Europa ocidental, têm muita capacidade de definir essas identidades. Por mais que haja redes sociais e tenha se democratizado o acesso à informação em alguma medida, ainda hoje os países mais poderosos do sistema internacional conseguem criar as pautas, classificar, categorizar e identificar os outros muito mais do que a versão contrária.

 

 

Guerra entre Rússia e Ucrânia

 

Estamos vendo a guerra entre Rússia e Ucrânia e isso é evidente: os discursos propagados pelo ocidente em relação à Rússia têm muito mais repercussão do que os discursos da Rússia em relação às condutas dos ucranianos no leste da Ucrânia. O impacto disso é que essa situação ajuda a construir as identidades do eu, ou seja, dos EUA e seus aliados, e a do outro.

 

O que seria esse “eu” hoje? Os norte-americanos procuram definir esse “eu” não mais em termos de EUA, ainda que eles acreditem ser os líderes do grupo, mas esse grupo é composto pelo ocidente, ou seja, nós do ocidente estamos em guerra contra aqueles que não são do ocidente - os outros. Como se define ocidente? Essa é uma definição muito maleável. Depende do momento histórico e da necessidade. Geralmente é definido por fatores étnicos ou culturais e históricos, ou seja, por pertencer ao mesmo grupo, ter valores parecidos ou pertencer à mesma etnia. Dentro desse grupo, os EUA não consideram o Japão como um “outro”, porque a cultura do Japão, em alguma medida, foi muito influenciada pela cultura ocidental e, historicamente, desde 1945, o Japão está do lado dos EUA e dos europeus nos embates geopolíticos do mundo. Um fator histórico puxa o Japão para o ocidente, ainda que ele não seja parte do ocidente culturalmente falando.

 

Orientalismo de nova ordem

 

Os “outros” são o que poderíamos chamar de orientalismo de nova ordem, porque há uma relação de poder estabelecida à medida que o ocidente ainda consegue definir quem são esses outros, assim como os europeus faziam em relação aos povos do oriente médio. Além disso, não se debate a fundo ou com amplitude na sociedade se os “outros” realmente o são ou se há uma relação de poder, assim como não se debatia quem eram os árabes – que eram quem o ocidente dizia que eram. Mas diria que hoje os “outros” são, primeiro, os da Ásia que ascendem, como a China - sua ascensão, seus costumes, sua capacidade crescentemente econômica e militar - e, segundo, o religioso que contesta, ou seja, o mundo islâmico que contesta a categorização na qual foi colocado, a visão que o ocidente tem da sua religião, a visão que um grupo de cristãos tem sobre o que seria todo o islamismo. Em terceiro lugar, ainda acrescentaria que os “outros” são o oriente que migra e reforça sua identidade quando entra no território do ocidente.

 

Por isso os orientalismos de nova ordem são de três tipos: um é o “outro” que está se tornando poderoso e é uma ameaça nesse sentido; o segundo “outro” existe porque é de uma cultura diferente, historicamente rebaixada pelo próprio ocidente e que é estigmatizada quando vai se reafirmar; e o terceiro tipo é o “outro” que vem e que, na visão dos europeus e de alguns governos dos EUA, vai macular a homogeneidade interna do ocidente, trazendo a sua cultura e criando um hibridismo cultural que a cultura ocidental, apesar de ter, não quer reconhecer que tem nem quer que aumente.

 

 

Transmutação

 

Nesse contexto, o discurso do país mais poderoso continua, mas agora temos dois ambientes: o ambiente interno, com a questão da migração, e o ambiente exterior. No ambiente exterior, o ocidente luta contra o “outro” que é inimigo, e vai lutar contra o “outro” que é vítima. O “outro-inimigo” tem que ser derrotado, como Bashar Hafez al-Assad, na Síria, o regime do Irã, Putin, na Rússia, sobretudo para proteger a população local. Só que aí vem um ponto interessante: os “outros” que são vítimas e precisam de proteção – atitude paternalista dos EUA – migram para o ocidente. Só que enquanto são vítimas [dentro de seus países] e precisam ser protegidos, estão com um sinal positivo, mas quando eles tentam entrar no território do “eu”, no ocidente, nas fronteiras da União Europeia, sobretudo, e nas fronteiras dos EUA, eles saem do papel de “outro-vítima” e assumem o papel de “outro-invasor”, e aí passam a ser combatidos também porque passam a ser uma ameaça não no sistema internacional, mas dentro do território do “eu” ocidental.

 

Essa transmutação é muito interessante de perceber, porque o mesmo sírio que está sendo protegido na visão do discurso oficial dos EUA é o sírio que quando entra na Hungria, na Itália, nos países nórdicos, é o “outro” rejeitado. É curiosa essa transmutação de proteger um povo desde que ele não saia do seu lugar.

 

Neste novo contexto, amplio a concepção de orientalismo de Said para os asiáticos em geral, incluindo a China. Algumas imagens continuam construindo essa visão nos dias de hoje, como as do The New York Times sobre a guerra do Iraque em 2003. São imagens obscuras – e muitos filmes inclusive retratam o oriente médio com imagens de estrada de chão, sem prédios, com casebres perdidos, desertos, mulheres vestidas de preto e burca, elas de um lado e os homens de outro, ou como aquela (abaixo) em que parece que o ocidental está ensinando o árabe a votar e compreender.

 

 

(Foto: Reprodução | Youtube)

 

Bagdá é uma cidade antiquíssima, que tem mais de mil anos além da idade dos EUA. E eles se dão ao direito de destruir uma cidade como essa a partir dos bombardeios que realizaram. Essas (abaixo) são algumas imagens da vida urbana em Bagdá, um grupo de mulheres escritoras do Iraque, cenas do Iraque urbano, que poderiam ser de qualquer outra metrópole, que não são mostradas. Vemos sempre aquelas imagens da aridez da guerra, como se os EUA estivessem lutando contra povos do deserto que não saíram do período de Aladim no Oriente Médio.

 

(Foto: Reprodução | Youtube)

 

Outro tema em que claramente há uma diferenciação é a questão dos refugiados ucranianos e refugiados sírios. O tratamento é muito diferente e mostra como os ucranianos não são tratados como “outros”, enquanto os sírios são retratados dessa forma na reprodução imagética deles. Nesta imagem (abaixo), há uma casa de emergência sendo construída em Antuérpia e, ao lado, um campo de refugiados na França, com tendas em locais de barro. Depois, no aeroporto de Paris, uma imagem de boas-vindas a ucranianos e, ao lado, outra dos sírios não conseguindo entrar na Sérvia. Depois, a chegada dos refugiados ucranianos, com uma menina e seu brinquedo, e alimentos para que, na travessia, eles possam comer alguma coisa e, de outro lado, os sírios que são apresentados nas fotos como se estivessem invadindo: são fotografados de frente, saindo do barco, caminhando na estrada, os barcos chegando. De outro lado, as crianças refugiadas em um hotel, brincando, e as crianças sírias na grade, em um campo de refugiados. Essas imagens definem bem quem é o “eu” ucraniano, colocando os ucranianos no lado ocidental e os sírios do outro lado, aquele “outro” que não pode chegar, que não pode entrar. As reportagens que são contadas como histórias geralmente são escritas no sentido de reforçar a identidade do “outro” em oposição a do “eu”, reforçando o perigo que o outro representa sempre.

 

 (Fotos: Reprodução | Youtube)

 

 

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