O assassinato do general iraniano Qassem Soleimani, em Bagdá, no Iraque, acendeu o alerta de uma nova guerra em grandes proporções. O Irã tornou-se protagonista das notícias pelo mundo, suas respostas controversas, de ataques às bases estadunidenses no Iraque e a derrubada por engano de um avião civil ucraniano que causou a morte de 176 pessoas, acentuaram a instabilidade no Oriente Médio. Para entender a história e a conjuntura política do país, conversamos com Bruno Lima Rocha, doutor e mestre em ciência política e professor nos cursos de relações internacionais, jornalismo e direito da Unisinos, e Luiza Cerioli, doutoranda no Departamento de Política Internacional no Centro de Estudos do Oriente Médio e da Universidade de Marburg, Alemanha.
Pensar o Oriente Médio a partir do Ocidente é geralmente uma caricatura difundida pela cultura europeia e estadunidense — como no filme Lawrence das Arábias, de David Lean, lançado em 1962. Em 1978, o historiador palestino Edward Said publicou o livro Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, construindo uma arqueologia da narrativa preconceituosa de uma região desértica, de grandes xeques, políticos fundamentalistas e tesouros a serem resgatados. Para Said o Orientalismo "era a relação de poder e dominação do Ocidente sobre o Oriente" em "teoria e prática".
Uma prática constante até os dias atuais, e expressada de formas diversas. Em 1993, Samuel P. Huntington escreveu sobre o "Choque de Civilizações". Uma teoria sobre os novos conflitos do mundo unipolar, que não seria mais dividido entre capitalismo e socialismo, mas sim em civilizações, que teriam no seu cerne as diferenças étnicas e religiosas. O grande da "civilização ocidental" seria enfrentar a "civilização islâmica", como se cada uma dessas fossem homogêneas internamente e distantes uma da outra. A Guerra ao Terror, perpetrada pelos governos estadunidenses do século XXI reforçaram esse imaginário ao tratar os atentados de 11 de setembro como um "Choque de Civilizações".
Os conflitos inacabáveis e que se tornaram centro da política internacional a partir de 2001: guerras no Afeganistão, Iêmen, Iraque, Líbano e Síria, no sudoeste asiático; mudança de regimes na Líbia, Egito e Tunísia, no Magreb; a emergência do Daesh (ISIS) na região do Levante, a perseguição constante aos curdos, a intensificação da repressão sobre o povo palestino.
Nesta série Oriente Médio para além do Orientalismo, a IHU On-Line procura ouvir pesquisadores para desmistificar e descrever como é o Oriente, sua história e seus povos.
A República Islâmica do Irã tornou-se o país mais visado no início do ano de 2020. O segundo país mais populoso do Oriente Médio e conhecido por ter a religião islâmica oficial no país. No entanto, como ressalta Bruno Lima Rocha, professor de Relações Internacionais da Unisinos: “o Irã é um país com diferentes religiões, diferentes etnias e uma multiplicidade de idiomas”, no entanto possui uma longa e complexa história. Sua origem está ainda na Antiguidade, no antigo Império Persa – o nome Irã foi adotado apenas em 1934, antes disso era a Pérsia. Portanto, diferentemente do imaginário orientalista, que generaliza o Oriente Médio, o Irã não é um país árabe, tampouco fala árabe”.
Mapa de distribuição das populações xiitas e sunitas. Sunitas estão destacados em verde claro, e xiitas em verde forte. Fonte: CIA | Wikicommons
A religião islâmica também não é a “do senso comum”, é composta por uma maioria xiita – que é minoria dentro do grande escopo da religião, e basicamente se concentra no Estado iraniano. “Xia é facção, vem da quebra da descendência do profeta Mohammed e de quem iria liderá-la, e se organiza em três grandes setores: zaidistas, ismaeilitas e duodecimanos”, explica o professor Bruno Lima Rocha. A Revolução Iraniana de 1979 será principalmente liderada por estes, que compõem 80% da religião islâmica.
Mapa etnorreligioso do Irã. Fonte: Wikicommons
O principal ponto de virada da história recente do Irã é a Revolução Islâmica de 1979. O país que até então era uma monarquia governada pelo xá Pahlev desde 1953: “o Xá, ajudado pelos Estados Unidos e Reino Unido, deu um golpe de estado que eliminava a posição de primeiro ministro e lhe concedia poderes quase absolutistas. Esses eventos ficaram na memória iraniana como um período de traição e entreguismo, visto que o primeiro-ministro deposto, Mohammad Mosaddegh, era um líder nacionalista extremamente popular e que visava nacionalizar os poços de petróleo do país. O xá visava transformar o Irã em um ‘locus ocidental’ dentro do Oriente Médio”, explica Luiza Cerioli, doutoranda em Relações Internacionais na Universidade de Marburgo, Alemanha.
De acordo com Cerioli, a Revolução Iraniana foi produto de uma série de insucessos do regime do xá, gerando uma desconexão e descontentamento entre governo e população. “Boatos de que o monarca importava comida e chefs da França contrastava com a crescente crise econômica em que o país se encontrava na década de 1970. Principalmente após o fracasso do plano de modernização (Reforma Branca) dos anos 1960, a população rural foi forçada a migrar para as grandes cidades, onde desigualdade, inflação, desemprego e escassez de bens básicos (como energia, comida e água encanada) gerava protestos, esses respondidos violentamente pelo governo. Eventos como o Incêndio no Cinema Rex (Abadã, 1978) e a Sexta-Feira Negra (um assassinato em massa de manifestantes em Teerã, 1978) levaram a população a protestar pela saída do xá”, descreve a pesquisadora.
Assim, a liderança do aiatolá Ruhollah Khomeini, então exilado na França, começou a ganhar força com o respaldo popular. Os princípios da Revolução, segundo Cerioli foram o “anti-imperialismo (sentimento direcionado majoritariamente aos EUA e sua aliança com o Xá), independentismo (um desinteresse de ser vinculado ao Ocidente ou ao Oriente), e Islamismo militante (o Islã teria todas as ferramentas político-sociais para governar e libertar os muçulmanos de forças opressoras e, por isso, seria função do Irã exportar sua revolução para aonde fosse necessário)”.
Episódio "Para entender o Irã", com o professor Tanguy Baghdadi, no podcast Viracasacas
Em algum momento, o orientalismo tornou a tachar os xiitas como ultrarradicais. No entanto, dentro do Islã, há regimes e vertentes mais radicais e intolerantes, como o sunismo wahabista ou salafista. Esse fator, como destaca o professor Bruno, é essencial para compreender o regime teocrático islâmico: “o Islã tem uma enorme complexidade – são xiitas, sunitas, sufis, etc. –, porque não é uma prática religiosa de uma vez por semana. Há uma institucionalização do Islã na forma também de serviços, atendimentos etc. É muito equivocado entender a religião como se fosse um conjunto de práticas formais de relação com o sagrado, é muito mais que isso”. Porém, apesar da maioria xiita e de ser a religião oficial do Líder Supremo, Cerioli faz a ressalva que os ideais da Revolução e Constituição nasceram como “pan-islâmicos”.
Portanto a oposição “permitida” no Irã deve ser fiel ao líder supremo e organizada em facções políticas. O sistema político se organiza da seguinte forma: “há um poder que emana do povo (presidência e Majlis – assembleia) e um poder superior que emana de Deus (o Líder Supremo e o Conselho dos Guardiões)”, detalha a pesquisadora.
Manifestantes nas marchas da Revolução Iraniana carregavam cartazes com o rosto de Ruhollah Khomeini. Foto: Iran News
Como explica Cerioli, são três grandes grupos que compõem a política: “os tradicionalistas (ou conservadores), os reformistas (ou internacionalistas) e os pragmáticos (ou moderados)”. Dos cinco presidentes desde 79 – quando também foi extinto o cargo de primeiro-ministro – Ali Khamenei (o atual Líder Supremo), Akbar Hashemi Rafsanjani, Mohammad Khatami, Mahmoud Ahmadinejad e o atual Hassan Rohani representaram as diferentes facções.
Conforme relata a pesquisadora, na última década as ruas receberam diversos protestos, sobretudo desde 2016, “vimos sequências de manifestações populares vinculadas à insatisfação com a gerência do governo e à crise econômica – essas que foram respondidas com crescente violência, aprisionamento e assassinatos. Contudo, os protestos foram organizados online ou gerados de maneira espontânea, não indicando algum grupo específico como liderança de oposição”. Os grupos de oposição ao regime do Aiatolá também existem, mas não são fortalecidos internamente, tendo maior respaldo internacional. “Grupos como o MEK (Mohahedin e Khalq), étnicos separatistas, republicanos seculares e o Farashgard têm voz ativa fora do país se posicionando a favor de sanções, pressão internacional e até ataques militares a alvos políticos. O Farashgard, ou renascimento em português, promove a figura de Reza Pahlevi, o filho do xá, e tem ganho bastante proeminência nos EUA desde a ascensão de Donald Trump à presidência. Esses grupos, no entanto, têm pouco ou quase nula influência dentro do Irã, e muitas vezes servem para unificar a população à narrativa de resistência frente às forças internacionais”, explica Luiza Cerioli. Em síntese, ela afirma que a população do país não é "monolítica, mas dinâmica, com diversos interesses, e ativa em um processo de formação e reformulação de ideologias políticas".
A Revolução Iraniana, como destacado, foi anti-imperialista. Essa característica foi um rompimento com o que se definia como “Diplomacia de dois Pilares” entre 1969 e 1979, isto é, um controle da ordem regional junto à Arábia Saudita com o interesse dos EUA e, como detalha Cerioli, “controlariam a expansão do comunismo e protegeriam o fluxo de petróleo para o Ocidente e os EUA ofereceriam segurança via armamentos e treinamento”.
A nova política externa do Irã foi de não alinhamento a nenhum dos polos da Guerra Fria — EUA e União Soviética. Conforme explica Cerioli, o país "passou a utilizar um discurso de não alinhamento e de solidariedade entre os países 'do terceiro mundo' em uma resistência global à distribuição de poder, gerando aos países do status quo a ideia de ameaça maior que o Irã, por ter uma ideologia expansiva e revolucionária, causaria à ordem regional. O Irã passou a desenhar laços com grupos não tradicionais, como o Hezbollah, que também projetavam uma política externa de resistência e de anti-imperialismo".
A Força Quds, uma das unidades da Guarda Revolucionária Iraniana, e comandada pelo general Qassem Soleimani, assassinado no dia 02-01-2020 pelos EUA, era a responsável pelo treinamento e expansão de grupos revolucionários islâmicos na região, desde 1980. Luiza Cerioli explana que a unidade, hoje, opera "no Líbano, apoiando e treinando o Hezbollah (que, por sua vez, treina e apoia outros grupos regionais), na Síria, defendendo o governo de Assad e no Iraque, apoiando grupos xiitas e as Forças de Mobilização Popular - PMF (na sigla em inglês). Está também direta ou indiretamente envolvido com grupos no Afeganistão, no Iêmen e na Palestina".
No entanto, no Oriente Médio, o Irã compete com a Arábia Saudita pelo poder de influência na região. As compreensões da ordem regional diferem entre os dois Estados, sobretudo pelo suporte estadunidense aos sauditas. Para Cerioli, as capacidades dos estados são diferentes, mas a correlação no âmbito internacional favorece a Arábia Saudita "pela imensidão de petrodólares que recebe" e "pela retórica sectária contra os xiitas, minoria na região".
O Irã conta com menor apoio internacional comparado à Arábia Saudita, além de ser formado por uma minoria étnica (persa) e religiosa (xiita) na região. Informações: Luiza Cerioli (Universidade de Marburgo, Alemanha, e Bruno Lima Rocha, Unisinos. Arte: Jonathan Camargo | IHU)