19 Julho 2022
Wajeb, 13, tira da mochila, à qual prendeu um pingente em forma de coração, alguns livros, entre os quais um manual em inglês. Todos os dias, para ir à escola, a garota precisa andar quase três quilômetros a pé. “É um pouco longe, mas gosto de estudar" diz. "Quando eu crescer, vou ser pediatra. É o meu sonho e vou torná-lo realidade.” Ela sorri e seu rosto se ilumina.
A reportagem é de Hussam Hammoud e Céline Martelet, publicada por Il Fatto Quotidiano, 18-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Reprodução: Google Maps
Como tantos jovens aqui, na região de Idlib, Wajeb vive há quatro anos em duas barracas de lona que compartilha com toda a família, pais e cinco irmãos e irmãs. Como em todos os campos para deslocados, no inverno a lama penetra nas barracas, enquanto no verão faz muito calor. De acordo com as últimas estimativas da Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, 1,2 milhão de crianças sírias vivem em condições de indigência na região de Idlib, sem perspectivas para o futuro. Mas é uma estimativa por baixo, acreditam muitas ONGs locais. A pequena província de Idlib, no noroeste da Síria, é a única região que ainda escapa do controle do regime de Bashar al-Assad e enfrenta uma grave situação humanitária.
No caos em que vive o país devastado pela guerra, são poucos os meninos e meninas que, como Wajeb, conseguem ir à escola. Todos os anos, a ONG Hurras desenvolve programas específicos para levar de volta à escola o maior número possível de crianças e adolescentes, mas com escassos resultados.
A situação em Idlib é desastrosa. “800.000 crianças não são escolarizadas na região", explica Leyla Hassous, que trabalha para a ONG, "apesar dos projetos que organizamos em colaboração com a ONU. Segundo um estudo recente, pelo menos 38% das crianças são obrigadas a trabalhar para ajudar financeiramente as suas famílias, mas provavelmente são muito mais”. Também os quatro filhos de Mohamed, 45 anos, abandonaram a escola para trabalhar. Vivem em dez em uma barraca em um dos muitos campos para deslocados na província de Idlib: “A situação é trágica", explica Mohamed.
"O último pacote de ajuda humanitária que recebemos remonta há mais de dois meses e dado que a família é grande, dá para apenas quatro dias.” Encontrar trabalho em Idlib é muito difícil e o salário médio por dia de trabalho é de apenas 30 liras turcas, o equivalente a 1,70 euros. Mohamed precisa de pelo menos 50 liras turcas por dia para comprar pão para toda a família.
Desde 2014, uma resolução da ONU autoriza as ONGs que colaboram com as Nações Unidas a distribuir ajudas humanitárias à população local, sem ter que passar por Damasco. Caminhões carregados de alimentos, produtos de primeira necessidade, barracas e remédios atravessam o posto fronteiriço de Bab Al-Hawa, o único ponto de passagem oficial na fronteira com a Turquia ainda utilizado pelas agências da ONU para distribuir ajudas a mais de 4 milhões de sírios, a maioria famílias deslocadas, encurraladas entre a fronteira turca por um lado e o regime de Assad pelo outro, apoiado pelo aliado russo.
A partir do verão de 2021, o corredor humanitário teria permitido que mais de 7.500 comboios e 180.000 toneladas de ajudas entrassem no país, segundo Mazen Alloush, porta-voz oficial do posto de fronteira de Bab Al-Hawa, do lado sírio: "Infelizmente, as ajudas enviadas pelas agências das Nações Unidas, na situação atual", explica Alloush, "não são sequer suficientes para cobrir as necessidades da população local”. Em 12 de julho, o Conselho de Segurança da ONU voltou a votar o mecanismo de ajudas transfronteiriças para a Síria. As ONGs acompanharam a votação com preocupação, temendo o veto da Rússia no contexto da guerra na Ucrânia.
“Fizemos todo o possível para defender o corredor humanitário, para evitar que a Rússia empurrasse à fome e à morte as famílias que vivem fora de zonas sob o controle do regime de Damasco”, explicou Oussama Zakaria, da ONG Ataa. O Conselho da ONU por fim adotou a prorrogação do dispositivo humanitário, mas apenas por seis meses, até 10 de janeiro. Um período mais curto do que outros países gostariam, entre os quais a França e os Estados Unidos, que pediam uma prorrogação de um ano, imposto pela Rússia.
Nos últimos anos, Assad e o aliado russo bombardearam regularmente a região de Idlib sem poupar nem mesmo as zonas próximas às escolas. Em abril passado, quatro garotos foram mortos a caminho da escola. Muitas vezes é também por medo, portanto, que alguns pais preferem não mandar mais seus filhos para a escola. “Nosso principal objetivo é conseguir que os pequenos frequentem as aulas, não só porque é importante que eles recebam educação, mas também para protegê-los de um ambiente hostil, para permitir que eles saiam dos campos”, explica a ONG Hurras.
As ruas da província de Idlib estão cheias de crianças. Algumas vendem pacotes de lenços nos cruzamentos, outras entregam café ou chá. São em sua maioria garotos, com cerca de dez anos, nascidos após o início da revolução síria. Crianças que só conheceram a guerra e que foram privadas de sua infância pela guerra. Muitas vezes, esses jovens sírios tiveram que abandonar tudo com suas famílias para escapar do avanço do regime de Damasco.
Quando perguntados: "O que você sonha fazer quando crescer?", a maioria responde: "Quero ser médico para poder cuidar da minha família." Doze anos de guerra marcaram para sempre uma geração inteira. São feridas invisíveis, que nunca cicatrizam, numa região do mundo onde a prioridade de todos os dias é conseguir alguma coisa para comer. De acordo com a ONG Hurras, quatro menores foram encontrados mortos enforcados no mês passado. “As famílias dizem-nos que morreram enquanto brincavam, por acidente", explica Leyla Hassous, "mas estamos convencidos de que se trata de suicídios. Todos tinham marcas de corda bem visíveis ao redor do pescoço. O suicídio é um grande tabu na sociedade síria, por isso as famílias preferem contar versões diferentes”. Na província de Idlib, 80% dos deslocados internos são mulheres e crianças. A taxa de natalidade explode.
Não há nenhum controle de natalidade e as garotas se casam cada vez mais cedo. No hospital central acaba de ser inaugurada uma nova maternidade graças à ajuda da ONG estadunidense SAMS, mas os quartos estão vazios. Há falta de equipamentos médicos e não há enfermeiros nem médicos suficientes. Muitos fugiram para a Turquia ou a Europa. Ikram Habouch decidiu ficar.
A obstetra traz à luz cerca de quinze bebês todos os dias, dez a mais do que cinco anos atrás.
“Fiquei porque sou louca, não encontro outras explicações", conta o médica síria. "Todos os dias aqui vejo mães e bebês morrerem aqui. Estou exausta. Podia ter ido embora, mas fiquei porque quero ajudar o meu povo.” Uma recém-nascida está chorando ao seu lado numa incubadora. Ela nasceu prematura, dois meses antes do prazo, e é bem pequena. Sua mãe não pode vir visitá-la todos os dias porque mora longe do hospital, então as enfermeiras cuidam dela e a acalmam quando ela chora. Na sala reservada aos bebês prematuros, há quinze incubadoras e todas estão ocupadas. “Não tenho mais espaço para acomodar nem mais um bebê. E é a mesma coisa nos outros hospitais da província", continua Ikram Habouch.
"Faltam recursos. As ONGs estão reduzindo cada vez mais as ajudas humanitárias à Síria após mais de dez anos de guerra.” A taxa de natalidade de bebês prematuros na província de Idlib explode. A médica acredita que isso se deve às complicadas condições de vida das gestantes. Forçadas a viver em campos para deslocados, elas não recebem nenhum tipo de cuidado durante a gravidez e muitas vezes têm que continuar tomando conta também de outras crianças pequenas. Alguns casos são desesperadores:
"Às vezes, há mulheres que quando chegam ao hospital antes da data prevista e descobrem que correm o risco de dar à luz um bebê prematuro", continua a médica, "nos dizem: deixe-o morrer".
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Síria. Idlib, pobreza e sonhos desfeitos: como é difícil ser criança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU