Na conferência “Imagens e identitarismos em guerras. Orientalismos de nova ordem”, que ocorre hoje (23-06), Gabriel Pessin Adam retoma o conceito de Edward Said para pensar abordagens de conflitos como o entre Rússia e Ucrânia
Parece elementar, mas é crível que não tenhamos aprendido bem. Em 1978, quando o professor Edward Said elaborou a formulação “orientalismo” como uma invenção cultural e política, seu conceito foi tido como um dos marcos dos estudos pós-coloniais. Afinal de contas, como bem pontuou o professor, dividir o mundo em duas partes, chamando uma de Oriente e a outra de Ocidente não é um procedimento da Geografia Física, mas uma designação arbitrária e com questões e pressupostos ao fundo. Mais arbitrária ainda se vier de apenas um dos lados, pois, como sabemos, essa ideia de dividir o mundo entre Ocidente e Oriente é pura invenção somente dos pensadores ocidentais. De origem palestina e partidário das causas de seu povo, Said concebe esse conceito mais especificamente a partir de uma visão distorcida sobre o mundo árabe, com efeitos e consequências diretas na guerra entre judeus e palestinos.
Uma das edições mais recentes da obra de Said em português, editada pela Companhia das Letras (2007) (Foto: divulgação)
Hoje, mais de 44 anos depois de sua obra, embora consideremos ela uma referência, parece que continuamos nutrindo um olhar enviesado sobre complexos conflitos e guerras, especialmente aqueles que envolvem povos da fatia do globo que costumamos chamar de Oriente. Com a situação da guerra na Ucrânia não tem sido diferente. Embora essa nação esteja no limiar do que convencionamos como Ocidente, a Rússia, que por sua vez é quase sempre vista como do lado de lá dessa linha, parece galvanizar forças que colocam ocidentais e orientais em pé de guerra. De outro lado, ocidentais constroem suas narrativas acerca dos conflitos à revelia das complexas relações que existem entre os povos em disputa, no caso, russos e ucranianos.
O pior ainda é que esses discursos navegam livremente na sociedade midiatizada e que se alimenta de discursos prontos, como verdadeiros embustes postos em circulação por telas e redes. “O que nós vimos agora é um show de discursividades viajando por todo o mundo, completamente acessível para as pessoas, que são racistas. É racismo puro, que nós negros, negras e indígenas já conhecemos há muitos anos. A diferença é que passa agora na TV e a gente começa a ver tão claro como esse discurso opera em vários ângulos. Não é somente no âmbito dos refugiados, não é somente no âmbito de guerra, mas, quando se está falando em racismo estrutural global, significa que o racismo atravessa todas as nossas relações”, analisa Karine de Souza Silva, professora dos programas de pós-graduação em Direito e em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, em reportagem reproduzida no site do IHU.
Com os olhos centrados em toda essa conjuntura, Gabriel Pessin Adam, professor de Relações Internacionais na ESPM-Sul e na Unisinos, tem se proposto a refletir sem perder de vista as chaves oferecidas por Edward Said. Afinal, será que não assimilamos bem a ideia de orientalismo de Said? Ou será que assimilamos e, diante de novos conflitos, apenas polimos a velha lente do orientalismo para olhar a realidade? Essas e outras tantas questões devem orientar a conferência ministrada por ele, som o título “Imagens e Identitarismos em Guerras. Orientalismos em Nova Ordem”, nessa quinta, às 17h30min, dentro do espaço do IHU Ideias, com transmissão ao vivo pelas redes sociais do IHU.
Não é de hoje que os autoproclamados ocidentais têm se colocado não como uma parte, mas sim centro de um mundo em que o ideal de civilização é o seu próprio. Nesse sentido, qualquer movimento adiante do leste europeu é motivo de alerta. Desde o arranjo pós-Guerra Fria, a Organização do Tratado do Atlântico Norte – Otan tem tentado estender seus braços e abraçar países como a Ucrânia que estão no limiar do que conceber como Ocidente. De outro lado, àqueles que não pertencem ao “clube” tem movimentado para fazer frente do lado de lá do quase instransponível muro imaginário criado nessa cisão global.
O professor Gabriel Pessin Adam vem há tempos observando esses movimentos. É o caso de sua pesquisa, que culminou na dissertação de mestrado intitulada “As relações entre Rússia, Ucrânia e Belarus e o papel que nelas exercem os recursos energéticos”. Afinal de contas, muito mais do que territórios, as potências dos séculos XX e XXI já se deram conta de que os detentores de recursos naturais, incluindo reservas de combustíveis fósseis, é que dão as cartas nesse jogo mundial de usura ambiental.
Como bem pontua Adam em sua dissertação, desde 1991, quando da queda da União Soviética, a configuração do sistema internacional se modifica como não se via desde a II Guerra Mundial. “Seu desaparecimento extinguiu o equilíbrio de forças entre a superpotência soviética e a superpotência norte-americana”, reforça. Com isso, a queda dos muros na verdade abriu porteiras para o avanço neoliberal de outra ordem que ora se escamoteia em zonas como a União Europeia e ora como "forças" de paz em conflitos locais.
É assim na Faixa de Gaza, da Palestina de Edward Said, e tem sido assim na Ucrânia de hoje que busca liberdade no fiel entre um antigo e potente rival e um clube de amigos por conveniências e cheios de interesse. Aliás, esse é mais uma ingrediente numa complexa relação que tem ainda origem no medievo.
O que não se pode perder e vista é que, desde 1991, outras nações bem adiante da tal linha que divide Ocidente e Oriente têm também se movido nesse novo arranjo global em busca de seu espaço. É o caso da China, que também foi foco de pesquisa de Adam na pesquisa de doutorado que deu origem à tese intitulada “Rússia, China e a Organização para Cooperação de Xangai”. Não à toa, em artigo publicado no livro “O Renascimento de uma potência? A Rússia no século XX” (Brasília: Ipea, 2012), organizado por André Gustavo de Miranda Pineli Alves, Adam observa que a Rússia, em sua verve de grande potência, vê a China como parceira estratégica. “Os eventos do início do século XXI reforçaram a ideia de essencialidade da China nos cálculos de política externa realizados no Kremlin. Por tal motivo, é plenamente justificada a investigação das relações russo-chinesas contemporâneas”, reflete, ao observar estes desde a perspectiva de Moscou.
Embora essa seja uma das discussões cruciais sob o ponto de vista das relações internacionais, baseada em análises e movimento geopolíticos, não se pode perder de vista que na dureza da realidade concreta vivemos uma guerra. E isso significa dizer que pessoas morrem, famílias são desterradas enquanto supostos líderes, do alto de seus palácios ou refúgios, orquestram ações e reações. E seja no Oriente ou no Ocidente a destruição reverbera e se perfaz em crise, falta de alimento e muitas, muitas incertezas.
Por isso, talvez seja interessante revisar o pensamento de Edward Said. Talvez, mais do que discutir disputas políticas e culturais, ele estivesse querendo chamar atenção para um olhar diferente sobre o outro, àquele que é diferente de mim, mas que não necessariamente é meu inimigo. Talvez, se retomarmos essa reflexão pós-colonial e verdadeiramente olharmos além desse muro imaginário que supostamente divide o globo entre Ocidente e Oriente não enxerguemos bem mais.
Graduado Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1998), é também mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008) e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013).
Gabriel Pessin Adam (Foto: Arquivo pessoal)
É professor de Relações Internacionais na ESPM-Sul e na Unisinos. Tem experiência na área de relações internacionais, atuando principalmente com os seguintes temas: Rússia, União Soviética, Ásia Central, Cáucaso, América do Norte, geopolítica, cultura e relações internacionais.