Professor destaca a horizontalidade do movimento. Articulações se dão na mesma lógica das plataformas, tendo como base as redes sociais
Não é de hoje que o trabalho via plataforma de aplicativo vem tensionando reflexões sobre as mudanças no mundo do trabalho. No entanto, diante do contexto da pandemia, os aplicativos que gerem entregas explodiram e, além do crescimento do setor, revelaram a precariedade dos trabalhadores que atuam sem assistência ou proteção social. O ápice foi em 1º de julho, quando entregadores decidiram parar e denunciar suas condições de trabalho.
Guardadas as proporções, a mobilização ganhou manchetes e provocou debates semelhantes a greves de operários nos anos 1970 e 1980. A diferença, no caso dos entregadores, é a quase ausência de entidades representativas, como um sindicato da categoria. “A primeira característica notável dessa greve é que os atores que a convocaram são coletivos horizontalizados em comunidades dispersas, mobilizadas principalmente em redes sociais (Facebook, Twitter e Instagram) e grupos de WhatsApp”, destaca o jurista e professor Sidnei Machado. Embora reconheça que no Brasil houve o apoio de entidades sindicais que chegaram a mobilizar seus filiados, Machado destaca que esse é apenas um apoio solidário e que a maioria dos entregadores não compõe esses grupos organizados.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor detalha lógicas que constituem o trabalho via plataforma de aplicativos que, numa espécie de atualização do capitalismo no século XXI, concebem essa forma de exploração das forças de trabalho. Nisso, segundo ele, também residem as dificuldades em regular e assegurar direitos básicos a esses entregadores. São dilemas que também estão presentes quanto à representação sindical. “Os sindicatos têm a responsabilidade de defender os empregos tradicionais no mercado de trabalho e seus direitos e, por isso, avaliam os riscos de organizar os novos trabalhadores precários, externalizados e contratados basicamente por tarefas, num espaço totalmente desregulado”, observa.
Machado ainda problematiza que “o desafio da representação também aparece pelo modelo da organização sindical brasileira, ainda delimitado pela noção de ‘categoria profissional’”. “Como justificar a ‘categoria’ de trabalhadores por plataformas?”, questiona. É por isso que o professor destaca a importância de dar voz à luta desses trabalhadores. Na sua avaliação, o que contribuiu para o êxito do movimento de 1º de julho “foi a ampla adesão e solidariedade de consumidores dos serviços, que usaram as plataformas para criticar as empresas por meio de avaliações negativas dos serviços”.
Além disso, o professor destaca a importância de se olhar para esses trabalhadores sociologicamente, apreendendo as mudanças do mundo do trabalho e os desafios que tais transformações têm imposto, especialmente para assegurar direitos e assistência a quem vende sua força de trabalho. E, com isso, pensar novas formas de representação que vão além do já conhecido sindicalismo. “Os grupos de redes sociais de auto-organizações, em regra não formais, sem grande hierarquia, atuam como fonte de informações, com possibilidade de mobilizações pontuais para reivindicar melhoria nas condições básicas de trabalho, a exemplo de demandas por melhor atendimento da plataforma e de aumento de remuneração”, conclui.
Sidnei Machado (Foto: Arquivo pessoal)
Sidnei Machado é professor adjunto de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Também é colaborador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPR. Tendo realizado pós-doutorado na Université Paris Nanterre, na França, lidera o Grupo de Pesquisa Clínica de Direito do Trabalho CDT-UFPR. Entre os livros mais recentes publicados, destacamos Direito do trabalho e democracia: reflexões a partir da reforma trabalhista no Brasil de 2017 (Porto Alegre: Editora Fi, 2019) e A exposição ao amianto e sua proteção jurídica (Curitiba: Kairos, 2014).
IHU On-Line – Que avaliação faz da greve dos entregadores que trabalham via aplicativo de plataforma, realizado no início do mês?
Sidnei Machado – A greve de 1º de julho dos entregadores e motoboys foi muito significativa do ponto de vista da representação coletiva e, da forma mais ampla, da resistência no conflito coletivo do trabalho instaurado frente ao modelo de negócios das plataformas digitais. A minha avaliação é que a convocação do “Breque dos APPs” teve grande êxito organizativo, a julgar pelas paralisações e protestos em cidades importantes brasileiras, pela forte repercussão nas redes sociais e pelos impactos produzidos na entrega de comida.
A primeira característica notável dessa greve é que os atores que a convocaram são coletivos horizontalizados em comunidades dispersas, mobilizadas principalmente em redes sociais (Facebook, Twitter e Instagram) e grupos de WhatsApp. Mas o que se observou no Brasil, diferentemente de greves de entregadores em outros países, é que o movimento teve apoio e impulso organizativo de centrais sindicais e sindicatos de classe, que chegaram a mobilizar trabalhadores do setor formal de entregadores nos protestos. Identifico nessa estratégia uma articulação nova e emergente, um sentido de solidariedade na luta por direitos dos trabalhadores.
Um segundo elemento da greve, que também contribuiu para o seu êxito, foi a ampla adesão e solidariedade de consumidores dos serviços, que usaram as plataformas para criticar as empresas por meio de avaliações negativas dos serviços. Esse importante apoio dos consumidores, associado à grande repercussão nas redes socais e uma cobertura positiva do movimento pela grande mídia, deu um significado de uma greve necessária e legítima.
É prematuro prever os desdobramentos que a greve terá, mas o balanço do ponto de vista da representação coletiva desses trabalhadores é muito positivo. A greve demonstrou que é possível superar as imensas barreiras da ação coletiva para esses trabalhadores precarizados, que trabalham dispersos e que competem entre si. Além disso, a greve evidenciou também que há uma possibilidade concreta de contornar as muitas limitações jurídicas ao exercício de direitos coletivos desses trabalhadores. Embora não organizados em sindicatos verticais, no modelo tradicional da organização sindical, o pleno exercício do direito de greve como expressão da liberdade sindical e como um direito coletivo fundamental.
IHU On-Line – O que a paralisação destes trabalhadores significa neste momento, especialmente em meio à pandemia?
Sidnei Machado – A precariedade do trabalho mediado por plataformas digitais de entrega já vem sendo denunciada há anos como protótipo do trabalho precário, sem direitos trabalhistas, com práticas de abuso das plataformas em tratar entregadores como meros parceiros. São trabalhadores que permanecem conectados e disponíveis sete dias por semana, em longas e exaustivas jornadas e a retribuição é uma tarifa baixa.
Durante a pandemia, o serviço de entregas a domicílio foi considerado atividade essencial, gerou um aumento de demanda para essas empresas, que aproveitaram a oportunidade para expandir seus negócios, contratar um número maior de entregadores. O problema contrastante é que para os trabalhadores as empresas impuseram condições desfavoráveis durante a pandemia, fazendo, com isso, exacerbar a precariedade do trabalho e das práticas abusivas oriundas do poder das empresas de plataformas.
Esse movimento das empresas foi captado em uma pesquisa da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista - Remir e da Clínica Direito do Trabalho da UFPR, realizada durante a pandemia, que mostrou precisamente que a renda desses trabalhadores não aumentou com o crescimento da demanda por entregas, eles passaram a trabalhar mais e ganhar menos pelas entregas. Sem uma regulação protetiva pelo Estado e sem respostas adequadas do Poder Judiciário quando provocado, a precariedade e a exploração a que estão sujeitos esses trabalhadores não diminuíram no período da pandemia. Pelo contrário, a crise da covid-19 serviu apenas para acentuar as piores práticas das empresas de entrega, pois há uma percepção pelos entregadores que as plataformas usam a pandemia para modificar as condições de trabalho. O estalido da fúria dos entregadores com as plataformas decorre dessa percepção de abuso das tarifas. A greve se prestou a dar uma visibilidade maior às duras condições de trabalho desses trabalhadores e das práticas abusivas.
Um outro sentido da greve foi o de desvelar o discurso encoberto pelas novas tecnologias e lançar luz sobre o conflito coletivo central instalado com as plataformas digitais, que é o seu modelo de uso e exploração do trabalho que promove o trabalho independente e se dissociam dos direitos do trabalho (contrato de trabalho, salário mínimo, limite de jornada, férias etc.), instituindo um mercado de trabalho paralelo e precário. A ocultação da qualificação jurídica do trabalho visa obstruir a intervenção do Estado, gerando um aumento do poder empresarial e das assimetrias nas relações de trabalho.
Apesar da greve se apresentar com pauta basicamente pelo aumento no valor das tarifas e condições de segurança frente à pandemia, ela representou também uma luta por direitos, direitos de cidadania básicos, associado claramente a uma postura de resistência à racionalidade da governamentalidade neoliberal para, ao mesmo tempo, denunciar a degradação da remuneração e o modelo da falsa independência do trabalho.
IHU On-Line – Como analisa as respostas das empresas ao movimento brasileiro?
Sidnei Machado – As grandes plataformas digitais continuam com a mesma estratégia discursiva e de atuação, que está cada vez mais fragilizada. Elas ficam presas ao discurso de uma economia digital e inovadora, para afirmar que seus negócios têm um papel de intermediárias entre clientes e prestadores de serviços. O que é fundamental, e que está subentendido nesse discurso, é a necessidade que elas têm de aferrar-se à lógica de que os entregadores não são empregados, mas sujeitos autônomos, microempreendedores. É com essa narrativa que elas buscam transferir os riscos ligados à atividade ao entregador e, por isso, não têm alternativas de ação.
Essa estruturação de base do capitalismo de plataformas, vinculada à mercantilização do trabalho independente, faz com que esses atores econômicos não criem espaços de diálogo social e de negociação coletiva com os entregadores, ao menos nos moldes de um modelo democrático de relações de trabalho. As respostas às demandas do trabalho pelas plataformas em geral são dirigidas aos consumidores e ao mercado e, por vezes, ao Judiciário e ao Estado, como prevenção às decisões judiciais dos tribunais e às iniciativas de regulatórias.
Durante a greve de 1º de julho o iFood foi a única plataforma a fazer uma manifestação formal sobre as demandas dos entregadores, publicada em seu portal de internet e em forma de propaganda exibida em horário nobre na TV aberta. No entanto, o conteúdo não foi uma resposta às demandas dos entregadores, já que elas se limitam a se defender desqualificando as reivindicações dos entregadores, com apoio em pesquisas internas e, ao mesmo tempo, reafirmam os valores de seu modelo de negócios, para dizer que valorizam a flexibilidade de horário e liberdade para compor sua renda e, ainda, que o entregador é livre para entregar via app quando, como e onde quiser.
O que se constata é que o iFood, e outras plataformas que silenciaram durante a greve, não têm interesse em dialogar diretamente com os entregadores. Elas continuam a se valer de suas estruturas de poder para defender a estruturação do negócio e confiam muito na sua capacidade de controle do processo do trabalho e na potencialidade de evitar a resistência coletiva dos entregadores.
IHU On-Line – Quais transformações o trabalho por plataforma impõe aos trabalhadores e ao mundo do trabalho? E como as compreende? Que consequências geram?
Sidnei Machado – As plataformas são um modelo de negócios, estrategicamente importantes para o capitalismo global. Quando surgiram havia muitas teses e hipóteses em torno do caráter disruptivo para o trabalho vinculado geralmente à revolução tecnológica. Há muitas disputas conceituais sobre o conceito de plataformas, se representam um capitalismo de vigilância ou um capitalismo de plataformas, mas isso não contribuiu decisivamente para compreender como elas de fato funcionam.
Nos últimos anos, uma série de pesquisas empíricas importantes têm contribuído para uma compreensão mais refinada e profunda do funcionamento das plataformas, desconstruindo o grande mito associado à revolução tecnológica e da suposta neutralidade tecnológica no gerenciamento das plataformas. Essas pesquisas têm demonstrado que as plataformas reconfiguram substancialmente a natureza do trabalho e isso é que ofusca as questões sobre emprego, condições de trabalho, qualificação jurídica do trabalho, proteção social e relações coletivas de trabalho, para mencionar alguns temas nucleares. Do meu ponto de vista de jurista, a questão da relação de emprego é central para as plataformas.
No modelo das plataformas, o que se constata como singularidades na organização do trabalho são essencialmente o seu modelo de seleção de trabalho e os mecanismos de controle e avaliação dos prestadores de serviços. As plataformas não são corporações hierarquizadas, na medida em que elas atuam pelo gerenciamento algorítmico que possibilita gerar muitos dados e mapear completamente a atividade de uma multidão de trabalhadores e controlar essa atividade. É na organização e gerenciamento do trabalho nas plataformas que reside o seu caráter disruptivo, pois fica ofuscada a relação empregado e empregador pela governança digital. A coordenação triangular de poder entre cliente, plataforma digital e trabalhador cria confusão, espaços não regulados e zonas cinzentas. Aqui é que o trabalho subordinado clássico se vê eclipsado, fazendo que se gerem muitas assimetrias entre trabalho e plataformas.
O conhecimento do funcionamento desse gerenciamento tem demonstrado, no entanto, que a tecnologia não é mera mediadora, ela faz prescrições, cria cálculos e métricas sofisticadas e, também, promove mecanismos de incentivos de recompensas, a exemplo de tarifas dinâmicas e bonificações para os entregadores, para fortalecer a relação com os prestadores. É algo próximo daquilo que apropriadamente John Cheney-Lippold denominou de biopolítica soft.
O problema central é que a falta de compreensão dessas práticas não tem permitido a explicação dessa nova relação entre o clássico binômio subordinação e autonomia, que longe de serem noções opostas, se articulam no trabalho gerido pelas plataformas. Essa incompreensão de como operam os controles pela governança digital, que se vê presente em grande número de decisões judiciais, resulta no encolhimento da proteção social pela desconexão entre trabalho e direitos.
IHU On-Line – Em que medida a atuação dessas empresas digitais reconfigura as relações de poder e direitos humanos no mundo do trabalho?
Sidnei Machado – É fundamental pensar as plataformas a partir de um quadro mais amplo de generalização da precariedade do trabalho para o qual as plataformas concorrem como fenômeno de transformações no modelo de emprego, fatores que colocam novos desafios de como proteger esse trabalho, assegurar direitos individuais e coletivos. Paralelamente, há o movimento de desregulação da proteção social do trabalho, com reformas legislativas que reforçam o trabalho por conta própria, em grande parte promovendo a liberdade individual e a liberdade contratual.
Então, na perspectiva da regulação do trabalho e de suas categorias jurídicas construídas pelo entorno do modelo fordista, as plataformas estão dentro de um quadro de desmantelamento do contrato de trabalho. Essa combinação de circunstâncias da crise do trabalho gera um ambiente de “tempestade perfeita” a favor do negócio das plataformas.
IHU On-Line – Quem são os trabalhadores por plataforma no Brasil? O que difere um motorista de aplicativo de um entregador de delivery?
Sidnei Machado – Não há dados precisos no Brasil de quem são e quantos são os trabalhadores de plataformas. O que se sabe é que é um setor em ampla expansão e correspondem aos trabalhos mediados por algoritmos e baseado em plataformas. Alguns estudos começam a estratificar esse trabalho por tipologias, por nível de habilidade ou por natureza do trabalho produzido, por exemplo.
Sobre o trabalho de motoristas de aplicativos, a exemplo do Uber, já se tem um conhecimento maior do modelo de gerenciamento do trabalho dos condutores. Já as peculiaridades do trabalho do entregador, o que chamam de delivery, têm sido objeto de estudos mais recentes, ainda em desenvolvimento. Ambos são trabalhos mediados por plataformas. A primeira diferença é que o motorista de aplicativo atua no setor de transporte urbano privado de passageiros, enquanto o entregador está vinculado ao setor de transporte de mercadorias.
A atividade do motorista parceiro foi regulada em 2012 no Brasil, como modalidade de transporte urbano dentro da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Para o motofretista e motoboy houve a regulamentação em 2009, mas ela não abrange o entregador de aplicativo. Do ponto de vista do gerenciamento do trabalho há muitas singularidades, mas ambos têm em comum o conflito sobre a qualificação jurídica do trabalho.
IHU On-Line – Quais são as maiores fragilidades desse trabalho por plataformas?
Sidnei Machado – A principal problemática é que as plataformas não promovem um trabalho decente, na medida em que se recusam a associar o trabalho a direitos, à proteção social. Transferem aos trabalhadores os riscos e custos do negócio e deixam o trabalhador sem direitos e sem proteção social, ou seja, vulnerável socialmente. Isso é absolutamente indesejável e insustentável socialmente, porque o trabalho em plataforma está muito longe de um trabalho bem remunerado, livre e autônomo.
Então, a vulnerabilidade desse trabalho é a ausência de reconhecimento do seu correto status jurídico de um trabalho assalariado. Esse modelo cria uma erosão no Estado Democrático de Direito, que bem ou mal temos previsto na Constituição, que articula trabalho, democracia econômica e direitos de cidadania. O modelo das plataformas fragiliza o trabalho como valor e promoção de cidadania, em nome dos interesses do mercado, ou seja, da mercantilização do trabalho. Por isso a fragilidade conceitual do trabalho por plataformas e a sua pretensão de tornar o trabalho mera mercadoria, fora de um modelo de direitos do trabalho de base democrática, que contemple direitos individuais e coletivos.
IHU On-Line – Como se dá a representação coletiva e o exercício de negociação coletiva por trabalhadores de plataformas digitais?
Sidnei Machado – A representação coletiva e sindical dos trabalhadores em plataformas digitais é um grande desafio. Há muitos obstáculos para a correta adequação do modelo organizacional das plataformas digitais ao modelo clássico de representação coletiva. O trabalho em plataformas digitais em muitos aspectos se assemelha aos modelos clássicos de trabalho, mas é problemático o acesso desses trabalhadores aos direitos coletivos de representação coletiva e aos direitos derivados da liberdade sindical e da negociação coletiva.
Do lado dos sindicatos, há um dilema sobre a estratégia dessa representação. Os sindicatos têm a responsabilidade de defender os empregos tradicionais no mercado de trabalho e seus direitos e, por isso, avaliam os riscos de organizar os novos trabalhadores precários, externalizados e contratados basicamente por tarefas, num espaço totalmente desregulado. Os sindicatos compreendem também as dificuldades práticas da representação. No mercado desregulado das plataformas, inexiste o contrato de trabalho e, nesse espaço, os sindicatos estão totalmente excluídos da representação coletiva. Além disso, as empresas de plataformas digitais, dispersas e ocultas por seu próprio modelo de negócios, não se consideram empregadoras, o que revela uma imensa dificuldade de entrar nessas empresas.
O desafio da representação também aparece pelo modelo da organização sindical brasileira, ainda delimitado pela noção de “categoria profissional”. Como justificar a “categoria” de trabalhadores por plataformas? A base de representação também é problemática, pois essas plataformas são um ente deslocalizado e difuso, de difícil identificação e localização, não raro organizadas com distintas identidades opacas e ocultas.
Na representação coletiva há também o impasse frente à heterogeneidade cada vez maior desses contratos de serviços, com características de uma atividade intermitente e independente, que de tempos em tempos vincula o trabalhador ao empregador ou ao cliente. A perda do sentido de pertencimento ao coletivo gera dificuldades para unificar o interesse coletivo heterogêneo e fragmentado e, também, para mobilizar e organizar de maneira eficiente a representação.
A despeito dos muitos impasses de representação coletiva, a ação coletiva dos trabalhadores em plataformas digitais é movimento em ascensão no Brasil e em diversos países. Consta-se que o movimento nas redes sociais de coletivos organizados é crescente. Em diversos Estados foram criados sindicatos, principalmente no setor de transporte de passageiros e de entregas a domicílio. Os sindicatos de aplicativos quanto às associações têm atuações bastante similares, de natureza preponderantemente assistencial, com o fornecimento de serviços, e não se identifica em seus estatutos ênfase na representação coletiva dos trabalhadores.
Os grupos de redes sociais de auto-organizações, em regra não formais, sem grande hierarquia, atuam como fonte de informações, com possibilidade de mobilizações pontuais para reivindicar melhoria nas condições básicas de trabalho, a exemplo de demandas por melhor atendimento da plataforma e de aumento de remuneração. Diferentemente de organizações de outros países que reivindicam o reconhecimento da relação de trabalho — a exemplo do Sindicato Free Riders, da Espanha, e do Riders Union Bologna, na Itália — esses grupos não se organizam com esse objetivo central. Os grupos organizados em redes sociais surgem basicamente daqueles que exercem a mesma tarefa (entrega de comida, por exemplo) e as suas reivindicações são muito específicas (problema de comunicação com a plataforma, por exemplo).
Não há registro de experiências no Brasil de atuações visando ao estabelecimento de processo de negociação coletiva, ou mesmo a reivindicação do estabelecimento de um código de conduta pelas plataformas digitais, com padrões de trabalho justo, que poderia reforçar as melhores práticas na relação entre plataformas digitais e seus prestadores de serviços. Até este momento as iniciativas de representação e ação coletiva não reivindicam o modelo de representação tipicamente sindical, embora haja ações com iniciativas de resistência e denúncias.
Certamente que uma efetiva representação coletiva pode ter impacto na melhoria das condições de trabalho desses trabalhadores. Apesar das dificuldades, são muitos os possíveis espaços de intervenção via representação, a exemplo de temas de remuneração, tempo de trabalho, formação profissional, proteção à saúde e segurança.
IHU On-Line – Como as instituições públicas, em especial o Judiciário, têm tratado das questões trabalhistas relativas aos trabalhadores de plataformas? O quanto já se avançou em termos de entendimentos e proteção dessas pessoas e no que ainda é urgente que se avance?
Sidnei Machado – Não há regulação do trabalho em plataformas no Brasil e, também, não se avançou no debate público sobre a necessidade de regulação. Há projetos de lei apresentados no parlamento brasileiro; contudo, eles não avançaram, em grande medida pelo contexto político desfavorável no país, marcado por uma dinâmica de crescente desregulação do trabalho. É preciso lembrar que o Ministério do Trabalho foi extinto no Brasil pelo presidente Jair Bolsonaro, que nos retirou a possibilidade de alguma mediação pública para esse conflito com as plataformas.
A instituição pública que tem se destacado nesse tema é o Ministério Público do Trabalho. Com um ativo grupo de procuradores, muito vinculado à pesquisa acadêmica, tem impulsionado o debate público do trabalho das plataformas com publicações de estudos técnicos, ao mesmo tempo que inicia uma estratégia de judicialização do conflito coletivo sobre a qualificação jurídica do trabalho e garantia de um trabalho digno e seguro. Durante a pandemia, o Ministério Público do Trabalho promoveu diversas ações contra as plataformas com o objetivo de garantir renda mínima aos trabalhadores.
O problema é que o Poder Judiciário, em especial os tribunais do trabalho, não tem dado respostas adequadas e esperadas ao conflito coletivo. O desenvolvimento da jurisprudência brasileira ainda se mostra muito resistente à qualificação jurídica dos serviços prestados por meio de plataformas digitais. A despeito de que não há um precedente jurisprudencial forte e consolidado sobre o tema a orientar os juízes, as decisões judiciais proferidas nos últimos, em sua maioria relativas ao caso dos motoristas da Uber, que promoveram alguma repercussão, tendem a dar ênfase aos elementos de autonomia do motorista, a sua liberdade de escolha de aceitar e cancelar viagens, para afastar o reconhecimento da relação de emprego.
O debate judicial das plataformas, que tem interesse em diversos países, está centrado na resposta adequada sobre dois problemas nucleares. O primeiro deles é sobre o caráter de intermediário das plataformas e, o segundo, a natureza independente e autônoma do trabalho. Nos EUA, Inglaterra, França e Espanha os tribunais já proferiram importantes decisões contrárias às plataformas Uber e outras plataformas de entrega. Nesses quatro países, as decisões conseguiram demonstrar que as plataformas não têm um mero papel de intermediárias e que os trabalhadores não são independentes, mas integrantes da organização das plataformas.
Eu acredito que a intensificação do conflito coletivo dos entregadores com as plataformas provocará uma evolução na jurisprudência brasileira. A meu ver, chegou a hora de haver uma regulamentação das plataformas digitais na via legislativa, que seja capaz de enfrentar essas novas realidades, qualificando os entregadores como trabalhadores assalariados.
IHU On-Line – Na UFPR, o senhor trabalha com uma clínica jurídica de direito do trabalho. Gostaria que detalhasse esse projeto, destacando como atuam e quais os maiores desafios no que diz respeito a direitos fundamentais do trabalho.
Sidnei Machado – Na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná temos uma rica experiência com os projetos da Clínica de Direito do Trabalho. A Clínica é um projeto de extensão universitária e de pesquisa acadêmica. A atuação se dá por projetos com temas de direitos humanos do trabalho, em casos paradigmáticos e de impacto social relevante. A equipe do projeto é constituída por graduandos e pós-graduandos da faculdade e voluntários selecionados anualmente, sob a minha coordenação como professor.
Os projetos são desenvolvidos em parceria com órgãos públicos e associações. A metodologia da Clínica Jurídica e da advocacia de interesse público, que tem inspiração em modelos de ensino clínico do direito, são as chaves do projeto. O pressuposto é de intervenção em casos reais paradigmáticos que são gerem uma demanda de pesquisa jurídica sobre reconfigurações jurídicas e novos direitos e que permitam uma atuação jurídica em casos judiciais ou legislativos. Com isso, a Clínica consegue associar e integrar ensino, pesquisa e extensão.
Um dos projetos em andamento na Clínica, iniciado de 2019, é a Clínica dos Entregadores por Plataformas Digitais. Esse projeto surgiu a partir de uma demanda apresentada à Universidade por um grupo de entregadores da Plataforma Loggi que haviam sido excluídos da plataforma depois de terem feito uma paralisação em Curitiba por melhores condições de trabalho. O caso clínico dos entregadores, como denominamos, gerou um estudo e depois uma denúncia no Ministério Público do Trabalho - MPT, que instaurou um inquérito civil.
Para desenvolver o projeto, fizemos um termo de cooperação técnica com o MPT com objetivo de fornecer subsídios com estudos jurídicos. Esse projeto teve um desenvolvimento de muitas atividades de pesquisa com a finalidade de compreensão do conflito analisado e, ao mesmo tempo, para entender o complexo funcionamento das plataformas. Fizemos relatórios de dezenas de trabalhadores, realizamos audiência pública, diversos seminários acadêmicos. Desenvolvemos uma pesquisa empírica, com um questionário estruturado, cujos resultados têm sido a base das nossas atuações. O projeto hoje está numa segunda fase, de pesquisa já mais avançada, com a produção de artigos acadêmicos dos resultados dessas intervenções. A grande lição do projeto foi o imenso aprendizado que tivemos com a experiência dos relatos dos trabalhadores.