09 Mai 2020
Em meio à pandemia de coronavírus, o comércio fechou, pessoas se isolaram dentro de casa e, segundo pesquisas, o comércio eletrônico disparou. Com isso, o número de entregas também cresceu.
A reportagem é de Felipe Souza e Leandro Machado, publicada por BBC News Brasil, 07-05-2020.
Mas um levantamento obtido pela BBC News Brasil, feito por um grupo de pesquisadores em quatro Estados brasileiros, indica que os entregadores por aplicativos disseram que, apesar de terem trabalhado mais durante a pandemia, tiveram uma "redução significativa" do salário.
A pesquisa feita pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir Trabalho) ouviu 252 pessoas de 26 cidades entre os dias 13 e 20 de abril por meio de um questionário online.
Entre os entrevistados, 60,3% relataram uma queda na remuneração, comparando o período de pandemia ao momento anterior. Outros 27,6% disseram que os ganhos se mantiveram e apenas 10,3% disseram que estão ganhando mais dinheiro durante a quarentena.
Os autores da pesquisa disseram ter buscado a maior aleatoriedade possível entre os entrevistados por meio da distribuição do questionário "em diversas comunidades online que congregam diferentes perfis de trabalhadores". Entre elas, estão grupos de entregadores do Facebook e WhatsApp.
Eles disseminaram o questionário seguindo o método conhecido como bola de neve, quando integrantes de diferentes redes sociais o repassam para outras redes. O grupo ainda defende que o uso do questionário online "se mostra, na medida do possível, abrangente e não-enviesada, considerando que estes são necessariamente trabalhadores que realizam seu trabalho online".
Os pesquisadores dizem ser "possível aventar que as empresas estão promovendo uma redução do valor da hora de trabalho dos entregadores em plena pandemia e sobremajorando seu ganho às custas do trabalhador". As empresas negam isso (veja mais abaixo as respostas das quatro empresas citadas pelos entregadores).
Para os pesquisadores, "a redução da remuneração, associada ao aumento do risco de contágio, intensifica a condição que já era precária desses trabalhadores e sinaliza para a exacerbação do ganho da plataforma com as pressões de achatamento da remuneração dos trabalhadores".
Os dados revelaram que, antes da pandemia 48,7%, dos entregadores recebiam, no máximo, R$ 520,00 semanais. Durante a pandemia, estes passaram a ser 72,8% dos entrevistados.
Apenas 25,4% dos cadastrados nas plataformas de entrega dizem ganhar acima desse valor na quarentena — o equivalente a R$ 2.080 por mês. Antes, eram 49,9%.
O levantamento também perguntou aos trabalhadores se as empresas fornecem materiais de proteção para evitar a contaminação por coronavírus, como álcool em gel, máscaras e orientações.
Os pesquisadores disseram que 62,3% dos trabalhadores revelaram não ter recebido nenhum apoio das empresas para evitar se contaminar durante as entregas, o que gera custos adicionais ao trabalho.
Uma das coordenadoras do estudo, a professora da Unicamp Ludmila Costhek Abílio, afirmou à BBC News Brasil que a pesquisa revelou "a perversidade" desse modelo de negócios, no qual as empresas lucram mais enquanto os trabalhadores têm sua mão de obra desvalorizada.
"A gente sabe que as empresas estão ganhando muito mais, tanto é que elas pararam de divulgar o faturamento. Sabemos que a (empresa de delivery) Rappi em fevereiro tinha tido crescimento de 30% na América Latina, mas depois não temos mais dados. O mais importante pra gente pensar agora é que os motofretistas viraram trabalhadores de serviço essencial e precisam ser valorizados", afirmou a pesquisadora.
Abílio afirmou que, apesar de lucrarem mais, as empresas não têm responsabilidade em relação aos motofretistas e que o ideal é que elas oferecessem um programa de bonificações para incrementar a renda dos trabalhadores. Segundo a pesquisa apontou, 89,7% deles tiveram uma redução salarial durante a pandemia ou ganham o mesmo que antes. Apenas 10,3% relataram um aumento.
O levantamento também indicou que, durante a pandemia, 52% dos entrevistados afirmaram trabalhar todos os 7 dias da semana, enquanto 25,4% deles trabalham 6 dias. Os pesquisadores disseram que esses dois períodos de trabalho — relatados por 77,4% — são considerados "ininterruptos".
"O trabalhador já vive no limite financeiro e não pode parar. Não interessa se a saúde está em risco, se eles não estão dando proteção ou garantias de trabalho. A Rappi em março teve um aumento de 300% do número de cadastros. Provavelmente aumentou o contingente enquanto está rebaixando o valor da hora de trabalho sem deixar isso claro. Inclusive não há nenhuma pré-determinação do valor mínimo da hora de trabalho desses motociclistas", afirmou a pesquisadora.
A pesquisa foi coordenada ainda pelos professores Ana Claudia Moreira Cardoso (UFJF), Henrique Amorim (Unifesp) Paula Freitas Almeida (Unicamp), Renan Bernardi Kalil (MPT), Sidnei Machado (UFPR) e Vanessa Patriota da Fonseca (UFPE).
Nas últimas semanas, entregadores de aplicativos fizeram protestos em São Paulo. Eles reivindicam melhorias nas condições de trabalho, remuneração e transparência salarial.
A pesquisadora da Unicamp diz que o ideal seria estabelecer urgentemente uma legislação para definir a operação dessas empresas para reconhecer um vínculo empregatício entre os aplicativos e os entregadores.
"Isso prejudica diversos pontos. Recentemente, uma liminar determinou que as empresas entregassem álcool gel para todos os funcionários, mas (isso) caiu porque não há vínculo. Eu defendo que a gente pense em regulamentações mínimas protetivas para esses trabalhadores", disse Abílio.
A pesquisadora afirma ainda que o trabalhador não tem poder algum de negociação com a empresa e que nem mesmo sabe o motivo pelo qual é eventualmente bloqueado pela plataforma.
Segundo ela, "as regras do jogo variam o tempo todo" e que o algoritmo de distribuição do trabalho, além das remunerações — com disparidade de valores entre entregadores, identificadas pelos próprios trabalhadores — não estão claras.
"Eles falam que não são uma empresa de logística, mas de tecnologia. O que sabemos é que está muito evidente o quanto eles exploram o trabalho", disse Ludmila Costhek Abílio.
A reportagem procurou as quatro empresas citadas pelos entregadores (iFood, Rappi, Uber Eats e Loggi) durante a pesquisa para saber qual o posicionamento delas em relação aos resultados.
A Uber Eats informou por meio de nota que "o estudo em questão tem falhas de metodologia que comprometem seriamente o resultado. Os dados foram coletados a partir de questionários online que não verificavam se o respondente era, de fato, cliente de algum app, muito menos do Uber Eats".
A Loggi afirmou que todos os entregadores sabem previamente quanto vão receber por entrega ao se cadastrar no aplicativo. A empresa disse ainda que todos os entregadores são microempreendedores individuais (MEI) e que a empresa faz a distribuição de kits de proteção com álcool gel, máscaras, luvas e material de orientação aos entregadores.
Segundo a Loggi, os 40 mil entregadores cadastrados na plataforma têm canais de diálogo com a empresa.
A Rappi informou em nota que "continua aplicando os mesmos critérios no valor do frete — que varia de acordo com o clima, dia da semana, horário, zona da entrega, distância percorrida e complexidade do pedido".
A empresa disse que contava com mais de 200 mil entregadores na América Latina no início de janeiro e que registrou um aumento no número de entregadores cadastrados desde o início da pandemia, sem dizer quanto.
O iFood diz que vê com "bastante preocupação" a metodologia usada pela Remir Trabalho, pois 252 pessoas em um universo de mais de 200 mil entregadores gera uma margem de erro alta. Critica ainda o fato de a pesquisa ter sido feita pelo Google, o que pode ter levado outra pessoa a responder pelo entregador. A empresa refuta também o formato em que a pesquisa foi feita e não sabe qual foi o questionário usado, com todas as perguntas e opções de resposta apresentadas.
Segundo a empresa, em abril, "os 170 mil parceiros de entrega ficaram, em média, 73 horas mensais disponíveis na plataforma, o que equivale a 2,9 h/dia (em um mês de 25 dias)". A plataforma disse ainda que, no mesmo mês, 84% dos entregadores ficaram com o aplicativo ligado 6 horas por dia ou menos. Afirmou ainda que 40% deles ficaram disponíveis para entregas apenas 2 horas ou menos por dia.
O iFood disse ainda que, em abril, "61% dos entregadores recebeu R$ 19 ou mais por hora trabalhada, valor quatro vezes maior do que o pago por hora tendo como base o salário mínimo". A plataforma afirmou ainda por meio de nota que "os ganhos médios mensais dos entregadores que têm a atividade de entregas como fonte principal de renda (35% do total) aumentaram 36% em abril quando comparado a fevereiro".
A empresa afirmou ainda que "não houve redução no valor das entregas durante a pandemia, o que significa que a afirmação de que 'os entregadores estão trabalhando no mínimo a mesma quantidade de horas e ganhando bem menos' não é aplicável aos entregadores que trabalham com o iFood". Segundo a plataforma, o valor médio pago por rota é de R$ 8,00 e que todos os entregadores ficam sabendo do valor por rota antes de optar por aceitar a entrega.
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Coronavírus: entregadores de aplicativo trabalham mais e ganham menos na pandemia, diz pesquisa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU