Por: Vitor Necchi | 18 Mai 2018
O advogado e ativista Rafael Zanatta proferiu a palestra A biopolitização das plataformas: capitalismo de vigilância e resistências na noite de segunda-feira (14-5), no Instituto Humanitas Unisinos – IHU. No início, apresentou parte de sua trajetória, para relacioná-la ao assunto da palestra. Ele trabalha em projetos sobre direitos na internet. Salientou que estabelece uma análise politizada, pois “a escolha dos objetos de estudo é influenciada por uma prática e um ativismo”. A pesquisa, por sua vez, é uma forma de qualificação do ativismo e dos múltiplos atores que compõem a esfera pública em rede. No seu entendimento, “direito, economia política e ética não podem ser isolados”.
Para aprofundar o tema da palestra, Zanatta propôs algumas questões fundamentais: o que se entende por capitalismo de plataforma?; que tipo de economia política é estruturante do capitalismo de plataforma e o que difere de um fordismo industrial do século 20?; que diferença existe entre capitalismo de plataforma e capitalismo de vigilância?; e por que o conceito de biopolítica tem sido colocado nessa discussão?
Zanatta entende que a expressão “capitalismo de plataforma”, proveniente de uma linguagem própria do ramo de softwares, é enganosa e mais confunde do que ajuda. Citando o professor Tarleton Gillespie, da Cornell University, afirmou que o termo “plataforma” tendenciosamente funde diferentes significados em benefícios das empresas de tecnologia, combinando a “plataforma de software” com o sentido figurativo de um mundo associado com liberdade.
O conceito “capitalismo de plataforma” é ligado a trabalhos de orientação crítica influenciados por Marx. Entre eles, o ensaio que o ativista alemão Sasha Lobo publicou na revista Der Spiegel em setembro de 2014, um dos primeiros a contrapor “economia do compartilhamento” com “capitalismo de plataforma”. Conforme Zanatta, “de compartilhamento não tem nada, se trata de um capitalismo de plataforma”.
O termo é amplamente utilizado em seminários de orientação progressista, como Platform Cooperativism, organizado por Trebor Scholz em 2015 e 2016, em Nova York. Também é foco do trabalho do economista canadense Nick Srnicek, que leciona Economia Digital no King’s College e aponta três elementos estruturantes: efeitos em rede (quanto mais pessoas utilizam, mais valiosa é a plataforma); subsídios cruzados (certos braços da plataforma têm custos reduzidos ou gratuitos, enquanto outros têm preços mais elevados para fomentar efeitos em rede; arquitetura central desenhada (a intermediação ocorre dentro de uma arquitetura projetada e com intencionalidades específicas).
Srnicek classifica as plataformas em quatro tipos: advertisement platform (algoritmos e matching para segmentação focada em publicidade); cloud platform (oferecimento de máquinas, dispositivos e serviços para negócios e indústria, a internet das coisas – IoT); product platform (transformação de produtos em serviços e monetização de recursos abertos); e lean platform (intermediação de serviços sem bens físicos e terceirização de custos).
Ainda baseado em Srnicek, Zanatta citou os impactos desse modelo: plataformas têm um modelo econômico adequado para a captura de dados pessoais e para extração de valor a partir dos dados; empresas tradicionais (ou mesmo os bancos) querem se tornar “plataformas”; aumento da concentração econômica em poucas empresas – cenário de monopólios digitais que aumentam a extração de dados independentemente dos riscos coletivos e futuros; e inadequação do direito concorrencial para entender atos de concentração e compra de empresas de tecnologia por plataformas.
Para subsidiar a discussão, Zanatta apresentou o conceito de capitalismo de vigilância, introduzido pela professora Shoshana Zuboff, da Harvard Business Schooln, no ensaio Big Other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization, de 2015. Para ela, big data não é tecnologia ou processo autônomo, mas componente fundacional de uma lógica de acumulação intencional chamada de “capitalismo de vigilância”.
Essa forma de capitalismo informacional busca prever e modificar o comportamento humano como forma de produzir lucro e controle de mercado. A automação do capitalismo contemporâneo não só impõe informação (instruções programadas), mas também produz informação em escala massiva. Assim, não há uma única forma de economia de mercado institucionalizada, e o que se está experimentando é a transição para um novo tipo hegemônico.
Zanatta destacou que os processos extrativos de dados acontecem sem consentimento e diálogo, apesar de estarem ligados a subjetividades e contextos. Neste cenário, o modelo que se impõe como dominante para startups e empresas de tecnologia é a multiplicação de fontes de dados, extração e análise em hiperescala. “Isso constitui uma variação de capitalismo desenraizada e sem reciprocidades entre empresas e populações”, afirma.
Ao tratar desses temas no âmbito da biopolítica, Zanatta trouxe o aporte do pensamento da professora Julie Cohen, da Georgetown University Law Center. Para ela, práticas contemporâneas de processamento de dados pessoais constituem um tipo de “domínio público biopolítico”, um repositório de materiais crus que podem ser utilizados e que são enquadrados como inputs para atividades produtivas. Uma analogia que pode ser estabelecida é com a ideia de terra nullius da colonização estadunidense, ou seja, algo a ser livremente apropriado, mapeado e colonizado.
“Há contestações relevantes para se mudar este cenário”, observa Zanatta. Isso se expressa na sociedade civil por meio de pessoas que se juntam para combater as narrativas. Diversas ONGs se dedicam aos direitos digitais no Brasil e na América Latina. A resistência se opera a partir de grupos ou da mobilização que leva à modificação de legislações. Um efeito dessa postura é o trabalho da Coalizão Direitos na Rede, movimento independente de organizações da sociedade civil, ativistas e acadêmicos em defesa da internet livre e aberta no Brasil.
Zanatta coordena a campanha “Seus dados são você”, a partir da Coalização. O objetivo é aprovar uma lei de proteção de dados pessoais, alertando o cidadão sobre o uso que é feito de informações pessoais que não deveriam ser registradas e usadas para além do autorizado inicialmente. Os promotores defendem que é preciso uma legislação que estabeleça formas de saber quais dados são retidos e que a qualquer momento seja possível desistir da permissão.
A campanha defende uma legislação em que pessoas possam controlar todo o fluxo de dados gerados por elas; empresas respeitem princípios éticos que regulem a forma como tratam os dados; e empresas e governos se responsabilizem quanto ao vazamento de dados, sujeitos a cobrir indenização em casos de uso indevido de informações. Para a lei funcionar, no entanto, é preciso que haja uma autoridade pública que fiscalize os direitos digitais, a fim de coibir mais violações e abusos.
Ao tratar da necessidade de se resistir, Zanatta observou que a Universidade de São Paulo – USP e a Universidade Estadual de Campinas – Unicamp assinaram acordos com o Google, que passou a armazenar as bases de dados das instituições. No seu entendimento, a mobilização precisa ser permanente.
Rafael Zanatta é doutorando em Ciências Ambientais do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo – USP, mestre em Direito e Economia Política pela Universidade de Turim, mestre em Direito pela USP e bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Líder do programa de direitos digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – Idec. No InternetLab, liderou a pesquisa sobre Economia do Compartilhamento entre 2015 e 2016.
Rafael Zanatta | Foto:Vitor Necchi-IHU
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A necessidade de se resistir ao avanço do capitalismo de vigilância - Instituto Humanitas Unisinos - IHU