Por: André | 02 Novembro 2013
O cientista político Gilles Kepel, especialista em Islã e no mundo árabe contemporâneo, fala sobre os desafios geopolíticos e religiosos dos conflitos no Oriente Médio, em particular no Egito e na Síria.
Gilles Kepel, cientista político, especialista em Islã e no mundo árabe contemporâneo, é professor do Instituto de Estudos Políticos (IEP) de Paris e membro do Instituto Universitário da França. Dirige a coleção “Proche-Orient” da PUF. É autor de Passion arabe. Journal, 2011-2013 (Gallimard, 512 p.), Prêmio Pétrarque do ensaio Le Monde-France Culture 2013. Kepel retorna ao Le Monde des Religions para falar sobre os desafios geopolíticos e religiosos dos conflitos no Oriente Médio.
A entrevista é de Mélanie Déchalotte e está publicada no jornal Le Monde, 30-10-2013. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Desde a “primavera árabe” em 2011, os acontecimentos se sucedem e o Oriente Médio encontra-se em meio a uma imensa crise. Como analisar esta situação?
A crise do Oriente Médio articula-se em torno de uma dialética em três fases. Primeiro, as reivindicações democráticas da “primavera árabe” em 2011 que desembocam na queda dos antigos regimes na Tunísia, no Egito e na Líbia, ao passo que as revoluções fracassam no Iêmen e no Bahrein e a guerra civil prossegue na Síria. A segunda fase, qualificada de “inverno islâmico”, é a negação da primeira fase com a vitória dos islâmicos na Tunísia, no Egito e na Líbia.
Enfim, a mais surpreendente é a terceira etapa: a queda dos islâmicos se deu em 2013 no Egito e a repressão sangrenta das manifestações. Na Tunísia, o governo do Ennahda está sob pressão, ao passo que em Istambul, o primeiro ministro Recep Tayyip Erdogan (cujo partido é uma variação local da ideologia da Irmandade Muçulmana) está sendo acusado pelas classes médias laicas de querer instaurar uma ditadura religiosa.
Podemos compreender esta dialética das revoluções árabes através do prisma religioso?
Para compreender as diferentes linhas de forças religiosas que se enfrentam hoje no Oriente Médio, é preciso remontar à queda de Saddam Hussein pelos americanos: eles destronaram um ditador sunita, a confissão dos sauditas, suspeito de ter criado Bin Laden. Mas eles acabaram colocando no poder a maioria xiita no Iraque, a mesma que eles pensavam ser filo-americana e inclusive capaz de afundar o regime dos mulás de Teerã. Longe de vacilar, Teerã fez-se o armeiro e o financiador do xiismo iraquiano que torpedeia a organização terrorista sunita Al Qaeda, financiada pelos petrodólares do Golfo Pérsico.
A guerra do Iraque teve, pois, duas consequências paradoxais: ela reforçou “o eixo xiita” dirigida por Teerã que conta agora entre seus aliados Bagdá, Damasco, o Hezbollah libanês e (até 2012) o Hamas palestino, único parceiro sunita; e ela desintegrou a Al Qaeda que se dividiu em braços regionais.
Isso teve dois efeitos: o Irã sentiu-se em situação confortável para perseguir sua ambição nuclear. Teerã, fornecendo armamentos, via Damasco, ao Hezbollah e ao Hamas afim de que possam alcançar Israel, precavendo-se de qualquer tentativa de bombardeio de suas centrífugas pelos Ocidentais, agora que Tel-Aviv encontra-se ao alcance de mísseis aliados interpostos.
Do lado sunita, com o declínio da Al Qaeda como força organizada e centralizada, as ditaduras aparecem como inúteis, até mesmo prejudiciais, tanto para as burguesias locais como para as chancelarias ocidentais.
O eixo xiita viu-se reforçado ao passo que as revoluções rachariam o bloco sunita...
As reivindicações democráticas da “primavera árabe” assustaram as dinastias dirigentes das petromonarquias do Golfo por medo de um “contágio democrático”.
No Iêmen, de maioria sunita, a sublevação contra o ditador Ali Saleh combinava as forças democráticas urbanas e as tribos irredentistas do norte [Ndlr: movimento nacionalista de reivindicação territorial], lideradas por um movimento xiita (hutista) [Nota do tradutor: referência ao seu líder Hussein al-Houthi]. No Bahrein, a sublevação de fevereiro de 2011, em um país de larga maioria xiita, contra a dinastia sunita, foi sentida pelas outras monarquias do golfo como uma ameaça direta da ingerência iraniana.
A revolução iemenita foi debelada e a do Bahrein abortada. O Catar, por sua vez, engaja-se num apoio material e midiático em massa – através da sua cadeia Al Jazeera – à Irmandade Muçulmana. Viu neste islamismo socialmente conservador a massa humana crítica necessária para compensar seu peso demográfico menor com vistas a tornar-se a potência hegemônica do mundo árabe sunita. Diante disso, a Arábia Saudita e os outros Emirados formaram um bloco contra a Irmandade, que compete com sua própria vontade de controle sobre o Islã mundial. A Arábia apoiou em todas as partes os salafistas, rivais da Irmandade, especialmente no Egito.
Como a Irmandade Muçulmana pôde ser derrubada no Egito?
Eles foram eleitos por uma coalizão que comportava seus próprios simpatizantes e uma franja não negligenciável da sociedade que estava convencida de que a Irmandade sempre foi melhor que os representantes do antigo regime.
É esta mesma parcela da sociedade que se afastou gradualmente da Irmandade em decorrência de dois fatores: sua política cada vez mais autoritária, marcada pela vontade de Morsi de obter os plenos poderes, e sua péssima gestão dos assuntos do Estado.
Após as manifestações de 30 de junho de 2013, quando a maioria da população egípcia exigiu a saída do presidente Morsi e, em seguida, se dá sua deposição pelo Exército no dia 03 de julho, ocorre a liquidação de perto de mil membros da Irmandade Muçulmana em meados de agosto.
A queda de Morsi abala o Oriente Médio e provoca o desmantelamento do bloco sunita...
Com efeito, neste momento ocorre um realinhamento maior na região, do que os líderes iranianos, sírios e russos tiram imediatamente proveito: o fracionamento do bloco sunita em duas facções em torno do apoio ou da hostilidade à Irmandade. Esta profunda falha separa, então, a Turquia e o Catar, de um lado, e os outros países do Golfo – tendo à frente a Arábia Saudita –, de outro, que forneceram ao general Sissi 12 bilhões de dólares de ajuda depois de 03 de julho.
Que lugar resta para os cristãos nesta luta entre xiismo, sunismo e Irmandade Muçulmana?
No Egito, os coptas pagaram um pesado tributo à violência das revoluções: primeiro, o atentado contra a igreja de Alexandria no dia 31 de dezembro de 2010 imputado a um salafista que era, na verdade, manipulado pelos serviços secretos. O objetivo era atiçar as chamas de uma sedição confessional que serviria de contrafogo ao regime de Mubarak para a revolução. Os ataques e destruições de igrejas pelos salafistas se multiplicaram e “os acontecimentos de Maspero” foram o ponto culminante deste imenso mal-estar dos coptas: no dia 09 de outubro de 2011, no Cairo, alguns jovens coptas saíram às ruas para protestar contra a cadeia nacional que ignorava o ataque dos salafistas contra a igreja no alto Egito. Os blindados do Exército literalmente massacraram os manifestantes. Resultou disso um profundo divórcio entre a juventude copta e o Exército. Em decorrência, nenhum copta votou em Morsi e a Irmandade permanece tradicionalmente pouco simpática para com os cristãos. Depois da queda de Morsi, os coptas foram acusados pelos islâmicos destituídos do poder de serem a encarnação do mal e de apoiarem o Exército. Em consequência, um aumento da violência anticristã no Egito.
Na Síria, os jihadistas da resistência entregaram-se às atrocidades em relação aos cristãos, especialmente na cidade de Malula, perto de Damasco. O papa e as redes cristãs pelo mundo afora mobilizaram-se para impedir o ataque contra o regime de Bashar. De acordo com eles, as minorias cristãs no Oriente conseguem sobreviver melhor se não se aliarem a outras minorias, especialmente os alauitas ou xiitas, do que se fizessem um rolo compressor sunita acusado de querer erradicá-los. De repente, entre o regime e os jihadistas que controlam de agora em diante a resistência, os cristãos escolheram o regime.
Qual é a especificidade do conflito sírio? Por que o regime não caiu?
No começo, em março de 2011, a revolução síria teve o mesmo perfil que na Tunísia ou no Egito: uma juventude educada, assumindo a liderança das reivindicações democráticas contra um poder autoritário. Mas a intensidade da repressão e sua transformação gradual em guerra civil de caráter confessional impediram a mudança das forças armadas contra o presidente (contrariamente ao que permitiu a queda de Mubarak ou de Ben Ali). Com efeito, a maioria dos alauitas, a etnia-confissão de Assad, e as outras minorias permaneceram fiéis ao poder, ao passo que uma grande parte dos sunitas aderiu à rebelião.
O aspecto confessional do conflito inibiu, assim, o apoio ocidental à rebelião. Aproveitando-se dessa situação, os países do Golfo inundaram a oposição de petrodólares e de armas para apoiar os sunitas, o que perturbaria o elo fundamental do eixo xiita, caso Damasco caísse. Eles favoreceram, dessa maneira, o avanço militar dos grupos islâmicos e complicaram o apoio às forças democráticas da resistência.
Quem se opõe a Bashar al Assad? É possível identificar claramente quem quer ajudá-lo?
Os europeus gostariam de ajudar o Exército Sírio Livre (ASL) não jihadista, mas isso não é muito confiável no plano militar, assim como sobre sua capacidade de lutar contra os jihadistas. Fornecer armas ao ESL é correr o risco de que essas armas caiam nas mãos de jihadistas e mesmo entrem novamente na França através de franceses que lutam na Síria e sejam, na sequência, utilizadas nos subúrbios.
Hoje, distinguem-se três campos: Bashar al Assad, os jihadistas e o ASL. Os jihadistas opõem-se oficialmente a Bashar al Assad e ao ASL. Mas esta oposição ao regime é muito complexa. Ao liberar da prisão ideólogos jihadistas que estão ansiosos para se juntar às fileiras da resistência, parece que o regime sírio, em conexão com seus conselheiros russos, inoculou voluntariamente o vírus da jihad na oposição a fim de que imploda e se massacre sozinha. Uma estratégia que tem sido comprovada: para acabar com a rebelião chechena dos anos 1990-2000, os serviços secretos russos inocularam nela o mesmo vírus, fazendo-a implodir.
Hoje, as profundas divisões no interior da resistência fragmentam seu apoio, ao passo que Bashar al Assad dispõe do apoio inabalável da Rússia e da China.
Qual é o interesse da Rússia em apoiar tanto Bashar al Assad?
O apoio inabalável ao poder sírio é um desafio central para o Kremlin, simultaneamente de política exterior e interior. Primeiro, a Rússia conta com 20 milhões de muçulmanos, em sua maioria sunitas, e o Cáucasso comporta muitos lares jihadistas.
Em seguida, se a Rússia tinha sido descartada do Oriente Médio desde os anos 1970, com exceção da Síria, ela não é mais em 2013 uma potência decaída. Sob Putin está em vias de se tornar uma grande potência: maior gasomonarquia do mundo, ela retorna ao Oriente Médio graças à Síria.
A arma química é particularmente proibida no direito internacional. Que interesse o regime de Damasco teve ao atrair a atenção internacional sobre si?
Não foi por acaso que as armas químicas foram utilizadas na semana seguinte ao banho de sangue no Cairo. Bashar al Assad e Putin manifestaram seu apoio a Sissi em sua repressão sangrenta, argumentando que eles estavam perseguindo o mesmo combate contra a Irmandade Muçulmana, tão influente hoje na resistência síria.
Caso ficasse provado que o regime de Damasco era o autor desse bombardeio de gás sarin sobre sua própria população, isso teria provocado a comunidade internacional para que constituísse uma “linha vermelha” que jamais seria ultrapassada, segundo as palavras de Obama.
Uma “linha vermelha” porque, no imaginário ocidental, o recurso ao gás permanece ligado ao genocídio judeu. É também a bomba atômica dos pobres, que poderia ser utilizada em todos os lugares e que afeta principalmente as populações civis.
Mas se o gás sarin matou naquele dia entre 1.000 e 1.500 pessoas na Síria, não devemos esquecer que as centenas de milhares de pessoas que perderam a vida desde o começo do conflito sírio foram vítimas de armas convencionais.
O mundo concentra sua atenção de agora em diante nas armas químicas ao passo que não são o desafio principal da vitória na Síria: é com armas convencionais que se ganha a guerra. Com o desarmamento químico da Síria, liderada pelos russos, Bashar é legitimado como interlocutor e Putin pode continuar a lhe vender as armas convencionais: o regime sírio e seu aliado russo sairão reforçados da operação.
Atualmente, a Rússia ganhou uma mão no jogo contra os presidentes francês e americano: a política não é feita de moral.
Qual é o futuro da Síria?
Um novo ator impõe-se hoje no cenário diplomático: o Irã, apoio do regime de Damasco, está atualmente numa ofensiva de charme na questão do dossiê nuclear. Em que medida Teerã deseja que Bashar permaneça no poder ou que haja uma sucessão aceitável para todos? Ainda não sabemos.
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O quebra-cabeça do Oriente Médio. Entrevista com Gilles Kepel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU