14 Agosto 2013
Bastou uma música para desencadear uma onda de violência contra os cristãos coptas e anglicanos de Bani Ahmad. Uma música, mas qual? As várias versões dos acontecimentos de sábado (3) nessa cidade ao longo do Nilo, 260 quilômetros ao sul do Cairo, dão margem a todo tipo de teoria nesse Egito profundamente dividido após a deposição do presidente Mursi pelo Exército, no dia 3 de julho.
A reportagem é de Serge Michel, publicada pelo jornal Le Monde e reproduzida pelo Portal Uol, 13/08/2013.
O inspetor de polícia enviado ao local no dia seguinte foi categórico. Seu relatório, divulgado por toda a imprensa egípcia, afirma que um jovem cliente cristão de um pequeno café, na entrada da parte oriental da cidade --10 mil habitantes, sendo uma esmagadora maioria de cristãos-- ouvia em loop em seu smartphone a canção "Abençoadas sejam suas mãos, exército de meu país", composta em julho de 2013 por Mostafa Kamel e cantado por uma dezena de estrelas egípcias em homenagem à intervenção militar contra o presidente oriundo da Irmandade Muçulmana. O filho do dono do café, um muçulmano que jogava dominó com esse cliente louco por música, lhe teria pedido para desligar seu telefone e, após a recusa, os dois teriam começado uma briga.
Os testemunhos coincidentes dos vizinhos do café, nessa rua de Bani Ahmad-Leste agora ocupada pelas forças de segurança --repleta de carcaças de veículos carbonizados, lojas saqueadas e paredes enegrecidas-- permitem entender que essa versão era mentirosa. Ela provavelmente tinha como objetivo jogar a responsabilidade sobre a Irmandade Muçulmana, que, entrincheirada em seus campos improvisados no Cairo e nas grandes cidades do país, desafiam as novas autoridades.
Para o farmacêutico, o açougueiro e seus primos, a música era "Islameya", um hino à sharia (lei islâmica) e ao presidente Mursi, composto pela Irmandade Muçulmana depois de ser derrubada do poder e tocada sem parar pelos canais islamitas. "Egito islâmico, Egito islâmico, diga ao mundo que o Egito é islâmico, não secular, não secular". O dono do café, um certo Abou Moneim Radi, havia deixado o volume de seu televisor no máximo. Um jovem cristão de 19 anos, Hanna Dos, que comprava material agrícola na loja vizinha, lhe pediu para abaixar o som. "Ele falou com arrogância", lamentam discretamente seus correligionários. Chérif, o filho do dono do café, o teria agarrado pela camisa, logo ajudado por seu pai. Os transeuntes intervieram, e o episódio durou 15 minutos. Eram 17 horas.
Duas horas mais tarde, um rumor correu as mesquitas de Bani Ahmad-Oeste --50 mil habitantes de maioria muçulmana--, do outro lado da estrada principal: os cristãos do leste teriam incendiado uma mesquita e matado 70 fiéis. Algumas centenas de muçulmanos correram então para o leste, com os moradores de outros vilarejos mais ao sul. Os cristãos, que haviam sido avisados, fecharam suas lojas, prepararam coquetéis molotov, armaram seus fuzis de chumbo grosso, montaram uma barricada às pressas e esperaram seus adversários posicionados nos telhados.
Os agressores, bem equipados, atiraram nos reservatórios dos caminhões estacionados na entrada do vilarejo, que ficaram em chamas. Eles arrebentaram os cadeados da farmácia, do açougue e de sete outras lojas para saqueá-las. Não foi difícil identificar as lojas pertencentes a cristãos: à noite, em Bani Ahmad, assim como em toda a região, desconhecidos rabiscam cruzes sobre as portas de aço das lojas cristãs e "Alá Akbar" sobre as muçulmanas. Os agressores provavelmente teriam penetrado mais a fundo no vilarejo não fosse a intervenção --tardia, mas maciça-- da polícia. Nos dias seguintes, cerca de 15 pessoas das duas comunidades foram presas.
"Eles colocaram na prisão nossos filhos mais bonitos, os que faziam exercícios", chorava uma mãe enquanto abria, pela primeira vez em uma semana, a porta da igreja evangélica do Mensageiro. Entre os cristãos, é a teoria da conspiração que domina. "Eles prepararam o ataque há muito tempo", ela diz. "Eles tiraram as mulheres e as crianças de seus próprios vilarejos antes de virem aqui. Eles querem cortar as gargantas de todos nós."
Chega o pastor, com um discurso mais conciliador. Faouzi Ibrahim Bolis, 75, faz parte da delegação de dez sábios cristãos do vilarejo que negociaram durante toda a noite de sexta-feira (9) um acordo de reconciliação com dez sábios do lado muçulmano. "Tudo isso é culpa de nossos jovens, de ambos os lados, que se exaltaram. Nós, os anciãos, fizemos um acordo para retomar o controle das coisas." Segundo uma fonte segura, a negociação havia começado mal.
Os muçulmanos impuseram como condição a desistência de qualquer queixa e de qualquer pedido de indenização para os danos, afirmando que os cristãos tinham interesse em aceitar porque outros ataques poderiam acontecer.
Nessa região do Alto Egito, os cristãos, sobretudo coptas ortodoxos, mas também protestantes, representam uma parte importante da população (ao passo que representam somente de 5% a 10% dos 83 milhões de egípcios). Aqui, suas terras são mais vastas e mais férteis que as dos muçulmanos. A essas antigas invejas se somou, no dia 3 de julho, a presença do papa copta Tawadros 2º ao lado do general Sissi (e do grande xeque da universidade islâmica de Al-Azhar) durante o anúncio da destituição do presidente Mursi. Desde então, ataques contra os coptas ocorreram no Sinai, no Cairo e em Luxor, fazendo uma dezena de mortos. Tanto que Tawadros cancelou no dia 8 de agosto as missas da catedral de São Marcos da capital, não longe do lugar onde Jessica Boulos, uma menina copta de 10 anos, foi morta com um tiro no coração dois dias antes.
Sem indenizações? Para o farmacêutico Georges Mounir, que perdeu todo seu estoque, além de seu computador, e o açougueiro Eshak Fenous Abd el-Malek, também proprietário de um restaurante destruído, a situação é difícil. Nenhum dos dois sabe como poderá retomar suas atividades. "A indenização é a paz", diz o pastor Faouzi Ibrahim Bolis. "A indenização é Deus que nos dará. Felizmente não houve mortos, não poderíamos resolver tudo isso tão facilmente."
Na verdade houve um morto, mas todos fingem esquecer. No dia seguinte ao ataque, o corpo de um homem foi encontrado à beira da estrada principal. Como ele não vinha da cidade, Bani Ahmad o ignorou e agora o lado dos cristãos faz um grande discurso vazio sobre a volta da fraternidade e da serenidade. Assim, Anzi Mahrous Bilates, comerciante de trigo aposentado, recebeu em sua casa uma delegação política que ele se empenha em tranquilizar. "É tudo culpa dos americanos", diz um de seus visitantes, membro do movimento Tamarrod ("rebelião") que exigiu e conseguiu a destituição do presidente Mursi. "São eles que apoiam esses terroristas da Irmandade Muçulmana e lhes entregam armas provenientes da Líbia", diz um de seus colegas.
Uma pequena volta por Bani Ahmad-Oeste permite relativizar esse otimismo. Claro, ninguém conhece ninguém que tenha participado do ataque: "Nem chegou a ser um ataque", conta um homem diante de um restaurante, "só uma briguinha entre dois jovens." Ninguém sabe por que nove lojas do lado leste foram incendiadas. "Eles provavelmente atearam fogo em suas próprias lojas para poderem nos acusar", diz um outro cliente, enquanto come um frango.
A animosidade permanece intacta: "Os cristãos ainda querem incendiar nossas mesquitas e estuprar nossas mulheres", afirma um terceiro, vestindo uma longa djellaba azul. "Eles estavam todos armados, e nós, não. Há muitos terroristas entre os cristãos", diz o segundo, que terminou seu frango. "Por enquanto, nossos líderes estão no Cairo, nos campos de Rabiya e de Nahda, para exigir a volta do presidente Mursi," conclui o homem de djellaba. "Estamos esperando pela volta deles para saber como responder a todas essas provocações dos cristãos."
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Os coptas como vítimas da crise política egípcia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU