Em conferência promovida pelo IHU, professor analisa a obra de Bruno Latour, Investigação sobre os modos de existência: Uma antropologia dos modernos
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dentro do propósito de fomentar o debate a fim de conceber saídas para o estado de crises que parecemos mergulhadores, está promovendo o 2º Ciclo de Estudos A (In) Existência de um Mundo Comum. Pensamento Vivo e Mudanças Possíveis à Luz de Bruno Latour. Como no ciclo anterior, o objetivo é mergulhar em obras do autor para, a partir delas, refletirmos desde nossa conjuntura. E o primeiro livro analisado foi Investigação sobre os modos de existência: Uma antropologia dos modernos (Petrópolis: Vozes, 2019), trabalho que coube ao professor André Lemos. Para ele, o que o autor faz é “denunciar essa racionalidade que é aplicada de forma absoluta, o que não seria, na própria concepção do Latour, racional porque apagaria as transformações e mediações em rede”.
É uma obra que, em certa medida, responde a outro livro de Latour, Jamais Fomos Modernos (1991). Afinal, como o próprio autor questiona, ‘se não somos Modernos, o que somos e quais valores devemos herdar?’. Para ele, embora o conhecimento científico corresponda a apenas um dos muitos modos possíveis de existência que descreve, uma visão irrealista da ciência se tornou o árbitro da realidade e da verdade. André Lemos identifica que, a partir da leitura de Latour, “o problema dos modernos é que eles não deram muito espaço aos modos de existência”. “O desafio é criar espaço para haver trajetórias sem sucumbir a essa separação entre sujeito e objeto, de uma objetividade aparecendo e aumentando, negando as referências e aparecendo por saltos transcendentes”, acrescenta.
Investigação sobre os modos de existência: Uma antropologia dos modernos. Petrópolis: Vozes, 2019. | Foto: divulgação
Para Lemos, Latour vai organizar um debate e destacar a importância de abrir a possibilidade para outros modos de ver o mundo que não seja sempre desde uma genuflexão à ciência racional ocidental. “O que ele vai tentar fazer é limpar a casa, tirar esses problemas, fazer com que possamos entender formas diferenciadas do existir. E isso tudo ainda mais hoje, os últimos livro do Latour apontam para essa necessidade de aterrissar, de dar espaço a modos diversos de existência”, resume.
Lemos ainda observa que “se a gente não conseguir interpretar e entender modos diferentes, nós não vamos conseguir conversar; a crise é tamanha e nós precisamos conversar para que nossa existência do planeta se mantenha. A diplomacia, que é esse objetivo final, emerge dessa atenção às diferentes condições de felicidade e infelicidade de cada modo. Estamos no meio desse debate hoje com questões relativas, por exemplo, com a verdade, ciência, fake news, estamos vendo isso hoje no Brasil”.
Essas e outras tantas questões estão na conferência de André Lemos que, abaixo, reproduzimos na forma de entrevista a partir de questões que ele mesmo levanta desde sua leitura do livro. O 2º Ciclo de Estudos A (In) Existência de um Mundo Comum. Pensamento Vivo e Mudanças Possíveis à Luz de Bruno Latour segue com conferências até 30 de novembro. Acesse a programação completa.
André Lemos (Foto: Reprodução | Youtube)
André Lemos é professor Titular do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia – UFBA. É engenheiro mecânico formado pela UFBA, mestre em Política de Ciência e Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro –UFRJ e Doutor em Sociologia pela Université René Descartes, Paris V, Sorbonne.
IHU – Como Latour compreende os modos de existências?
André Lemos – Bruno Latour agrupa os modos de existência em cinco grupos:
1) Os sem quase-sujeitos e sem quase-objetos, que são os modos de reprodução da metamorfose hábito, o que podemos chamar aqui de persistência dos vivos com suas transformações e a essência dos modos (vou explicar isso mais adiante);
2) Os quase-objetos, técnica referência, são os objetos pela técnica, ciência e arte;
3) Os quase sujeitos, política, direito e religião, que são os seres da palavra que vão constituir o sujeito pela palavra comum, política, a palavra justa, o Direito, e a palavra que salva, a religião;
4) A ligação dos quase sujeitos com os quase objetos, que é o que estou traduzindo como vínculo ou vinculação, a organização e a moralidade, isso trata mais a dimensão econômica do oikos que vai ligar o sujeito pela organização, pelo vínculos de interesses passionais e pela moralidade;
5) Nesse quinto grupo não são modos propriamente dito, mas são o que ele vai chamar da metalinguagem da investigação e da pesquisa, que é formada pela rede, pela preposição e pelo duplo clique, que são os elementos centrais que estão em todos os processos ou que aparecem para balizar todos esses processos.
Bem, o primeiro estranhamento aqui é a ideia de “quase-sujeito” e “quase-objeto”, que vem de Michel Serres. Para Latour, o “quase-sujeito” e o conjunto dos “quase-objetos” que estão a eles associados. E os “quase-objetos” se transformam no conjunto dos “quase-sujeitos” que estão a eles, por sua vez, também associados. Essa forma de entrelaçar sujeito e objeto é muito importante porque toda obra vai, justamente, criticar a bifurcação (para usar uma expressão de Alfred Hayward), que é a discussão sobre a separação de cultura, natureza e sociedade, técnica, sujeito e objeto. Assim, não se pode resumir nem definir sujeito e objeto sem matar aquilo que os constitui, aquilo que a gente entende justamente como a tradução de um do outro, por isso a ideia do quase-sujeito, quase-objeto que está para definir esses modos de existência.
O que está na base disso é que, para Latour, a cosmovisão moderna vai se constituir como um emaranhado de modos e visões de mundo que vai constituir uma espécie de confusão, como um novelo colorido, e que ele vai efetuar um trabalho de formiguinha que é o de puxar cada uma desses fios para colocar cada coisa no seu lugar. O imbróglio é que os modernos tendem a interpretar esse novelo a partir de um único posicionamento e Latour vai dizer que isso não é ser diplomata, não é algo que seja importante para que a gente possa compreender e dar peso ontológico a diversas formas de existência.
Assim, o que ele vai tentar fazer é limpar a casa, tirar esses problemas, fazer com que possamos entender formas diferenciadas do existir. E isso tudo ainda mais hoje. Os últimos livros do Latour apontam para essa necessidade de aterrissar, de dar espaço a modos diversos de existência.
IHU – Esses modos são modelos prontos a serem seguidos ou podem ser ampliados?
André Lemos – Latour aponta também no livro que os modos podem ser ampliados, podem haver outros. A hipótese central, que é também um mantra de Latour e que vem ecoando nesses 30 anos, é que os seres, para existir, precisam passar por outros. Essa é uma perspectiva social-humanística, política e mesmo religiosa do reconhecimento e do entrelaçamento entre as existências. Existir é continuar uma trajetória através de uma superação de descontinuidade, agindo e sendo agido no curso das transformações. Não se trata de um ser enquanto substância ou essência, mas, sim, um ser enquanto subsistência.
O objetivo é justamente retirar os erros de categoria que insistem em tomar um modo de existência pela condição de felicidade de outros modos de existência. Então, por isso a ideia central é produzir uma diplomacia. Se a gente não conseguir interpretar e entender modos diferentes, nós não vamos conseguir conversar. A crise é tamanha e precisamos conversar para que nossa existência do planeta se mantenha. A diplomacia, que é esse objetivo final, emerge dessa atenção às diferentes condições de felicidade e infelicidade de cada modo. Estamos no meio desse debate hoje com questões relativas, por exemplo, com a verdade, ciência, fake news, estamos vendo isso hoje no Brasil.
Recentemente, na CPI, alguém falou que confiava na ciência e um dos senadores perguntou: “mas em que ciência?”. Estão, nós estamos numa confusão de modos; é um embaralhamento que faz com que a gente não consiga entender e conversar, limitando a circulação da palavra, que é própria da política. Exigir, por exemplo, eficiências algorítmicas em processos jurídicos seria tratar o Jurídico num outro modo, que não é modo do Direito. Entender a chuva pelas danças dos índios seria compreender a chuva de uma forma diferente de um modo científico de falar sobre a chuva. Assim, temos modos de viver diferentes e o que Latour vai fazer é abrir espaço para esses modos de existência diferentes, que têm em suas condições de felicidade formas de identificação da verdade.
IHU – Que relação se pode fazer entre essa reflexão de Latour e a teoria ator-rede?
André Lemos – O que desponta, imediatamente, para um leitor atento da obra de Latour é que ele avança em relação à teoria ator-rede clássica, porque essa teoria falava das associações, das redes, mas não qualificava as redes. Então, as noções de mediações são centrais ainda. Elas já estavam na noção ator-rede, mas faltava algo que daria maior consistência e continuidade, que ele vai apontar na noção de hábito. Seria algo como o falar juridicamente, tecnicamente, cientificamente, ficcionalmente, esses advérbios que vão criar uma qualidade dessas categorias que a teoria ator rede clássica não via.
O objetivo dessa investigação é descrever bem os valores e contrastes das instituições que fizeram de nós modernos. Para isso, ele inventa uma personagem fictícia, uma antropóloga, que vai tentar fazer uma antropologia dos modernos. É como se fosse o contrário: não são os modernos que vão fazer uma antropologia dos ditos primitivos, mas é ela quem vai fazer uma antropologia dos modernos e tentar entender como eles funcionam na realidade. Observe que esse ‘eles’, os modernos, somos nós. Ou seja, vai tentar entender esse diversos domínios que são permeáveis, mas que têm uma certa particularidade.
Essa antropóloga começa a seguir as conexões e isso seria mais interessante do que ficar nos domínios fixos. Portanto, a noção de rede que tem na teoria ator-rede continua sendo fundamental para escapar da redução da complexidade do social, permitindo um momento de associações e passagens entre elementos diversos. A noção designa assim uma série de associações que permite ver as descontinuidades necessárias para gerar uma ação. Então, há descontinuidades e saltos que são mobilizados a partir da ideia de rede. Rastrear a rede é assim criar uma prova de herdeiros e descendentes nesse processo de se constituir como uma existência. Assim, existir é sempre passar por outros.
A noção de rede é a primeira a ser destacada e ela é fundamental para entender qualquer forma de existência, mas, como falei antes, essa noção tem limites por não qualificar essa associação. Para qualificar, ou seja, falar juridicamente no Direito, cientificamente na Ciência, economicamente na Economia, tecnicamente na técnica, politicamente na política etc., o que precisa ser feito? E isso sem purificar, sem tratar, por exemplo, Direito como ciência ou a política como ficção, como faço isso sem embolar esses fios? Por isso é essa noção de desembaraçar, porque é o modo que é sempre julgar o outro pela sua própria condição de julgabilidade e é aí que começam os problemas.
IHU – E como se pode evitar ciladas criadas por esses problemas?
André Lemos – Por isso, considero que será preciso uma outra ferramenta para lidar e qualificar esses valores que circulam, detectando o que Latour vai chamar de erros de categoria. Julgar o modo pelo modo de verificação de um outro. É como, por exemplo, julgar a chuva dos índios pela chuva da ciência.
IHU – E, visando essa clareza conceitual, o que é um modo?
André Lemos – São valores que circulam em redes e que constituem suas condições de felicidade e de verificação. Todos os modos teriam uma arte específica. Eles aparecem no fenômeno, se mantêm nas coisas e se infiltram; e eles devem passar por outros para existir. Esse será o princípio que sempre estará em jogo para todos os modos, pois o modo de existência é sempre a passagem de uma versão do ser enquanto outro, uma descontinuidade, uma diferença em um regime próprio de verificação.
Todos os seres são atravessados por modos de existências e por vários modos de existência, no sentido que têm uma trajetória desenhada por um modo que, por sua vez, vai definir essa linhagem no curso da ação. A sociedade, obviamente, não é um modo de existência - isso já está na própria teoria ator-rede. A sociedade é o que deve ser explicada e não o que explica as coisas. Não é como uma substância. Na verdade, ela é o resultado dos modos de subsistir. O que é verdadeiro e falso, portanto, se diz dentro de cada modo que vai definir o que Latour chama de as condições de felicidade.
Junto com as redes, que ele vai chamar de res [coisa], nós temos uma outra dimensão importante, que é a preposição, o lugar assertivo para achar a condição de felicidade de um modo. Se eu julgar o Direito pela Ciência, eu estou numa posição equivocada, então não vou alcançar as condições de felicidade. Surge aí uma segunda metalinguagem, que é a preposição.
A preposição é o lugar de valor do modo. Obviamente os problemas, para Latour, não são os erros de sentido, mas, sim, de categoria. Por exemplo: o que é verdade falso não se dá em relação a coisa em si, mas, sim, nos modos de sua condição de felicidade. O que importa são os erros que insistem, são chaves de interpretação e não necessariamente as coisas, porque a gente pode ter sempre instrumentos melhores para analisar determinadas coisas. Não se pode mediar a verdade do religioso pelo jurídico ou pelo científico ou vice e versa. Cada modo em sua forma específica de critério de verdade.
Um modo quer sempre fazer isto: julgar o outro pelo seu próprio critério. Esse é o cuidado de todo o livro e de toda enquete que Latour faz. Achar a boa preposição, no sentido gramatical mesmo, de tomada de posição antes da preposição, é o fundamental aqui: uma posição da leitura do modo, as chaves de interpretação do modo. Trata-se, na realidade, de falar bem. Falar bem é falar com eloquência, saber falar. É falar de diversas formas, uma metafísica do falar, e é o falar político também, como algo que vai agregar o comum, colocar no círculo, ou a diplomacia. Falar bem não é uma única fala sobre todas as coisas, mas são falas diferenciadas sobre modos que exigem formas diferentes de falar.
Na metalinguagem, a primeira é a rede, afirmando que não é deslocamento sem o estabelecimentos de conexões custosas. Temos que prestar atenção às mediações. Se algo aparecer sem dar conta das mediações, estamos em alguma outra dimensão, mas não na dimensão da experiência. Segunda preposição é a chave de interpretação do modo. Então, tem que entender de que modo nós estamos falando para achar a sua fase de julgamento, a sua posição de julgamento, que vai permitir comparar com outros modos. E para existir é preciso passar por outro a partir de uma maneira específica que é a preposição.
Vamos ter um terceiro elemento, em que Latour vai usar a metáfora da informática para definir o que é o duplo clique. Ele não explica o que é isso no livro, mas é como quando eu clico duplamente numa pasta aqui no computador e a pasta abre e aparece. Só que eu não vejo todo o processo de mediação com o algoritmo, a interface com o sistema operacional que está por trás disso para abrir a pasta. O duplo clique é o que ele vai chamar de o demônio que tende a matar as mediações, dizer o que algo é em sua essência e não construído nas mediações.
Se a teoria ator-rede nos ajudou a compreender a emergência das associações, nós temos que hoje achar essas preposições para falar bem das conexões. Precisa, assim, descrever a rede, verificar o que se diz na prática e como é que isso funciona, explorar as diferenças e achar a boa preposição para saber falar do modo. É aí que começa a crítica aos modernos.
Essa investigação racional é aquilo que segue as ações em diferentes redes e múltiplas trajetórias a partir de distintas preposições. Não é um racional como única forma de olhar para tudo, mas formas adaptadas a cada modo, definindo suas chaves de interpretação, as suas redes e condições de felicidades. Ou seja, ligados à experiência e atento às mediações.
IHU – No que consiste essa ‘crítica aos modernos’ que apontas?
André Lemos – A modernidade vai começar no século XV, mas a ciência moderna vai aparecer no século XVII com uma explicação racional do mundo justamente como uma luta contra a barbárie, a crença e os diversos irracionalismos. A modernidade vai instaurar uma racionalidade científica, que seria a encarnação da razão, e a técnica, como um poder humano, usando essa razão para transformar o mundo. O cientifico seria tipo particular de verificação que passa a ser tomado como a verdade para os modernos, como uma forma de entender a realidade.
Com isso, a ciência passa a absorver toda a realidade, deixando aos outros modos apenas jogos de linguagem, como diz Latour. Ele vai dar um exemplo sobre o Monte Agulha, que é um lugar em que vai passeando com mapas e guias locais. Ele vai usar essa experiência para falar um pouco como funciona a ciência. A correspondência entre o mundo e o mapa, o monte e o mapa, vai se dar justamente pagando essas correspondências para entender o lugar em que ele está e a própria constituição do Monte. O ganho vai se dar justamente porque o mapa é um produtor de cadeias de referências, de encadeamento, e as redes são criadas por essas cadeias de referência que vão produzir continuidade entre o signo e a coisa, como paradas provisórias.
O mapa não é o Monte e o Monte não é o mapa, mas o mapa dá exatamente a localização ao usuários para poder ir e vir com segurança ao Monte numa cadeia de referências, documentos etc. O espírito conhecedor e a coisa conhecida não são duas extremidades da ação produzidas de forma independente, mas são produtos efetivos dessa cadeia de referência construída por esses “mobiles” “imobiles”, podendo assim reconhecer suas diferenças o tempo todo. Não é o espírito e a coisa que se ligam misteriosamente por um duto, mas o resultado progressivo da extensão dessas cadeias de referências que vão montar determinada situação.
Se pularmos do sujeito ao objeto, matamos a rede como um passo de mágica. Ora, os objetos e as coisas não passam necessariamente por esses mapas ou esses mutantes e mutáveis para existir. O que a eles são não têm a mesma propriedade das inscrições, das documentações, dos mapas, dos aceleradores de partículas, dos telescópios etc. O Monte não é o mapa; nós sabemos isso no senso comum.
Assim como a coisa não corresponde apenas ao que dizem os cientistas. O Monte pode ser dito por outros modos de existência, sem esgotar sua realidade nas associações científicas, por exemplo. Podemos também falar pelo modo religioso, pela arte, pela experiência. Ou seja, não podemos insistir em erros de categoria.
IHU – O que acontece com o objeto quando cessam essas referências?
André Lemos – Esse modo seria justamente o que Latour vai chamar do modo de referência, dessa referência que precisa pagar o preço das conexões para ser entendido. Então, não é uma crítica ao conhecimento, porque não podemos confundir erros de categoria entre duas redes e valores, pois o modo de reprodução das coisas tem as suas próprias trajetórias, que não pode se confundir com o modo da referência da Ciência, como cadeias criadas que permitem um acesso específico à coisa. Se fizermos isso, diz Latour, nós podemos celebrar ao mesmo tempo o Monte Agulha e o mapa do Monte Agulha sem esquecer nem um nem outro, sem reduzir um ao outro. Tudo vai emergir numa epistemologia moderna bastante interessante. Se essas redes são esquecidas, salta-se de um lado para outro, institui-se caixas pretas e isso vai fazer, justamente, o demônio moderno da purificação, que é o duplo clique.
O duplo clique vai acusar tudo que necessita de uma rede para existir de falso. Todos que estão atentos às redes, às transformações, aos saltos e descontinuidades, são estigmatizados como relativistas. Isso sem se dar conta de que aqueles que querem que haja transporte sem transformação são absolutistas. Trata-se, portanto, de denunciar essa racionalidade que é aplicada de forma absoluta, o que não seria, na própria concepção do Latour, racional, porque apagaria as transformações e mediações em rede.
Consequentemente, o problema dos modernos é que eles não deram muito espaço aos modos de existência. O desafio é criar espaço para haver trajetórias sem sucumbir a essa separação entre sujeito e objeto, de uma objetividade aparecendo e aumentando, negando as referências e aparecendo por saltos transcendentes. Essa trajetória vai se passar de novo, sempre por linhas de forças e linhagem em rede, que é essa mudança por pequenas imanências.
Assim, o que Latour vai fazer é uma genealogia dos modernos. É interessante que mais adiante ele vai falar sobre a confusão entre ciência e religião e diz que a ciência é pensada como aquilo que fala do que está aqui perto da gente, que fala da realidade, e a religião é o que fala do mundo além, do que está no céu. Na realidade, vai dizer que é justamente o contrário porque o que a Ciência faz é aproximar o mundo justamente conectando o longínquo por essas cadeias de referências. O telescópio, o mapa, é essa conexão com o que está longe, enquanto a religião é a palavra que circula para produzir um nós, que vai nos salvar ou nos constituir aqui e agora. Há uma inversão; os modernos começam a não entender as coisas e embolam os modos.
Esquecer esses encadeamentos é apontar o mundo exterior sem essas redes, sem essas cadeias de entrelaçamento, que é a ação do duplo clique. Como ele diz, não vemos a etiqueta, a gaveta, a forma de etiquetagem, a organização das gavetas, a gente vê só os documentos [a partir de um duplo clique]. O perigo é dizer que, ao final, o conhecimento aparece de forma mágica, como se numa corrida por barreiras a gente pegasse apenas a última barreira que se passa e não todo o encadeamento da construção desse processo.
A noção moderna do mundo é devedora não do mundo, mas de um tipo de acesso ao mundo e, ao mesmo tempo, esquecendo que para obter esse acesso ele precisa passar justamente por instrumentos de acessos. É isso que faz a referência.
A antropóloga já começa a entender que os humanos começam a não ver exatamente o mundo. Parecem ser materialistas e objetivos, quando na realidade estão sendo idealistas, reduzindo o movimento de aproximação do mundo pela interrupção dos encadeamentos. No fundo, está reduzindo o conhecimento e apagando o amálgama entre o mundo e as coisas do mundo, as cadeias de referência. Latour vai dar um nome bizarro para isso, vai dizer que os modernos, desde de Descartes, não estão falando mais da res extensa [coisa extensa], mas no que ele chama de uma res extensa cogitans [coisa extensa pensante]. Esse é o movimento idealista que daí criou a grande bifurcação apontado por Whitehead.
O pensamento formalista é longo de ponta a ponta, mas perde a razão por apagar esses fios dessa trajetória. A res extensa, que é uma res extensa cogitans, é um mundo sem redes de transporte e transformação, mágico, irracional e pouco material, diz Latour. É com isso que ela tira o primeiro fio e faz a primeira crítica interessante ao mundo dos modernos, que de racional não tem nada, e passa a ser idealista por agir fora das cadeias de referência. De um só golpe de varinha mágica, eliminamos todas as dificuldades, todos os riscos e esquecemos todas as falhas; não precisamos mais de quaisquer condições materiais, onerosas. Necessidades que ninguém produziu são transferidas sem transformação, sem o conduíte, sem rede, gratuitamente através de um real e cognoscível composto inteiramente por formas que são as únicas substâncias.
IHU – Isso significa que, ignorando todas essas questões, somos cegos para o mundo?
André Lemos – O que Latour vai dizer é que os modernos começam a apagar o mundo. Mais do que materialistas, são idealistas e por não serem empíricos dão esses saltos mágicos. Mais do que uma res extensa cogitans, Latour vai falar de uma res entensa ratiocinans, que seria uma maneira de pensar que apagaria o mundo.
Essa res entensa ratiocinans não é mais uma questão de res extensa, trata-se de um outro animal, um outro ideal que deveria ser chamado de res ratiocinans, uma invenção decisiva para a ideia que os modernos terão de si. São uma res, uma coisa, mas são uma coisa que raciocina, ratiocinans. A enquete, trazida no livro, começa a achar formas de proteger do idealismo dos modernos, entendendo a dimensão da rede, da preposição, do duplo clique que quer matar, e a tese começa a ser fortalecida. Essa tese consiste na ideia de um ser que não passa por nenhuma alteração e nenhuma descontinuidade, que vê tudo pela sua posição e condição específica de verificação - só pode ser totalitário. Não é nem racional e nem objetivo. Essa ideia ampliaria espaço para outros modos de ação, para diferentes formas de fala. Os modos buscam evitar que os modernos continuem a esvaziar o mundo das coisas, transferindo tudo para o res ratiocinans, ou a linguagem, desrealizando o mundo nessa pretensa racionalidade e objetividade.
Então, assim, ele estabelece um método que não está dizendo que tudo é verdade, mas que todas as versões da existência, o mal ou bem, verdadeiro ou fictício, devem coexistir sem que nós nos importemos em os separar – como sugerido pela versão popular do relativismo que o duplo clique ameaça quando alguém se recusa a julgar tudo pelo critério de sua própria fala, mas apenas que a triagem deve ser feita a partir de agora em pé de igualdade, segundo testes precisos, sem podermos nos dar mais essa surpreendente facilidade de afirmar que uns existem com certeza e que outros não ou que são apenas maneiras de falar. Podemos ver que a expressão ‘a cada um à sua verdade’ não tem apenas o tom relativista que costuma ser dado a ela, mas implica numa terrível exigência de saber falar cada modo na sua própria língua e de acordo com seu princípio de veracidade.
Tudo vai se constituir, e porque tanto duplo clique como os modernos vão apontar que toda forma de construção seria algo falso, quando na realidade, para a enquete e para Latour, a verdade estaria numa boa construção que significa saber falar dentro de cada modo. O construir vai se dar sempre numa definição que os modernos vão saltar rapidamente, como os fundamentalistas, segundos os quais tudo existe sem construção, embora vivam num mundo em que tudo é construído o tempo inteiro.
Latour propõe abandonar a palavra construtivismo ou construção, já bastante carregada, e vai usar a ideia de instauração, do Étienne Souriau. O artista, o artesão, o prático, o teórico, não são construtores do falso, do fictício, do ilusório, mas instauradores de mediações que constituem a realidade. Essa constituição se propõe a reconhecer ocasiões de encontro entre seres susceptíveis de nos interpelar. Não só seres em potência ou o criador, nem da matéria, mas articulados neles mesmos.
O que importa é reconhecer não o ser enquanto ser, a ideia de uma essência, mas o ser enquanto um outro, que resulta da continuidade da passagem por hiatos. Há múltiplas formas de existir em contraste com as múltiplas formas de olhar para uma única forma de existência. Se falarmos de seres de ontologia de construção e de instauração de erros de categoria, podemos dizer que o problema dos modernos é com a criação, uma questão de base religiosa, fazendo com que eles tenham se enganado sobre o papel das mediações. Essa herança grega, judaico-cristã pode estar na origem da confusão de um mundo supostamente bruto e distante em uma representação racional que daria sentido e explicaria todas as coisas pelas suas substâncias. Parece haver aqui um erro do que ele vai chamar de um modo da religião e da metamorfose.
IHU – Como podemos, dadas estas três metalinguagens, beneficiarmo-nos dos pluralismos dos modernos?
André Lemos – O livro vai apontar para muitos modos, 12 modos e três enquetes, muito embora eu não vá comentar aqui de todos, mas vou destacar aqueles que são importantes para pensar duas coisas que definem os modernos, mas que ainda não foram apontadas. Há dois pesquisadores alemães que propõem o modo da mídia, o que eu discordo, pois não se trata do modo da mídia, mas da comunicação.
Primeiro, o que ele chama de seres da metamorfose. Assim como os modernos apagaram o mundo na res extensa e res cogitans, eles também vão precisar encontrar um espaço para colocar seres imaginários. Como não tem muito espaço na res extensa, eles vão chamar isso de simbólico. Os modernos passaram a chamar o mundo invisível de mundo simbólico, diferente do materialismo, que na verdade é um res cogitans, que não é tão materialista assim, porque capta mal os seres da reprodução, da experiência etc. Ou seja, a pesquisadora deve estar atenta para duvidar daquilo que os seus informantes modernos falam sobre a inexistência de seres imateriais, já que os modernos vão colocar toda a realidades desses seres e a irracionalidade das culturas no psiquismo dos sujeitos humanos, então ela precisa se perguntar sobre a subjetividade. O modo da metamorfose é o que vai lidar com essas coisas.
Os modernos se enganaram sobre eles mesmos ao pensar que estariam livres de dispositivos que vão agir na constituição de sua própria subjetividade. Uma análise ator-rede mostra, rapidamente, uma aparelhagem que se constitui para a produção desse sujeito, produção da interioridade, mas os modernos são movidos por forças que os superam, os dominam, os alienam numa rede produtora de interioridade, quando, na realidade, eles meio que abstraem dessa ação. Latour vai chamar isso de psicogênese, que são psicotrópicos, drogas, confissões públicas, profissões psicanalíticas, filmes de terror, jogos eletrônicos... tudo isso vai constituir uma rede psicogênese que vai produzir essas interioridades a partir do exterior, ao inverso da experiência que engendraria as interioridades a partir de um “eu” principal.
Os modernos acreditam que possuem um "eu nativo", autóctone, primordial, de modo que não enxergariam essa instauração da interioridade, negando essa relação com os seres da metamorfose. Mais ainda, eles vão ridicularizar aqueles que acreditam na produção exterior da subjetividade, como os religiosos, os totens, os fetiches etc. Vejam como eles agem de forma similar, com outras redes, negando as cadeias de referência.
Tudo se passa como se os modernos se enganassem sobre o mundo exterior e sobre o mundo interior também por existirem erros de categoria sobre os modos de existência. Não respeitam, assim, as trajetórias desses seres e suas ontologias, que buscam suas condições específicas de felicidade e que tudo vai se produzir por uma infeliz separação entre sujeitos e objetos. Tudo, diz Latour, acontece na mente por causa da distinção radical e essencial entre sujeito e o objeto. Se o exterior for preenchido rapidamente por um gesto estranho, de expandir as cadeias de referências confundido com o que elas estavam acessando o modo da referência.
O interior também será resultado de um outro gesto estranho, de um problema simples que dificilmente ousamos sugerir, de armazenamento de logística, como se eles dissessem “desculpe, nossa resistência já está cheia, vá procurar acomodação em outro lugar”. É um mundo sobrenatural ou é um mundo simbólico. Não se trata de dizer que não há sujeito, mas que a interioridade é também produzida e visível pelo exterior e que se deve tratar, na lógica da enquete, de fazer aparecer essa rede e achar a boa preposição para não matar o modo (de existência), senão eu mato o modo pela ciência.
IHU – Como essa instauração se constitui?
André Lemos – Latour vai chamar esses momentos de crise de arrebatamento, “como se houvesse seres que devessem ser chamados de psicotrópicos, no sentido de que alteram completamente o quadro de quem você é, que giram em torno de você e literalmente fazem sua cabeça”. Mais adiante. “A invisibilidade desses entes não é irracional [porque o racional, para a enquete, é aquele que segue as referências, os rastros, não o que dá grandes saltos], sobrenatural, misterioso; vem de sua forma precisa de articulação: tomamo-los por outros porque se tomam e no tomam por outros, dando-nos assim os meios para nos tornarmos outros, para desviar de nossa trajetórias, para inovar, criar." Estamos sempre sobre influência desses psicotrópicos, devemos entender o que eles são, como eles falam, seus modos de enquadramento porque eles são exigentes e nós precisamos falar bem deles – e Latour brinca com as palavras – para eles não nos amaldiçoarem, em francês se diz “maudire”, mal dizer.
Esses seres que os modernos chamam de invisíveis não se opõem ao mundo visível, já que não existe um gabarito para existência, a invisibilidade desses entes não é sobrenatural, irracional misteriosa, mas vem da forma de articulação que eu apontei anteriormente. Os seres da metamorfose são aqueles que vão constituir nossa subjetividade e precisamos estar atentos a eles e julgá-los por seus critérios de julgabilidade.
Como os modernos ocultaram os seres invisíveis, eles também ocultaram aquilo que eles produzem muito, que é uma ação técnica sobre o mundo. Então ele vai descrever aquilo que ele vai chamar de “seres da técnica”. O mais impressionante nos modernos não é que eles desenvolveram desconfianças ontológicas em relação à religião ou à subjetividade, mas o pouco reconhecimento sobre os seres da técnica. Há um grande desenvolvimento técnico e científico, mas pouco conhecimento, porque eles vão entrar em uma análise muito própria do que Latour chama de res extensa / res cogitans e vão esconder os objetos pela ideia do homo faber, da essência da técnica ou do mito do instrumento e da ferramenta.
Embora a técnica seja muito desenvolvida, ela só existe sob um modo de invisibilidade para Latour, já que ele depende de formas exclusivas de astúcia, de desvio, de apropriações para revelar a sua subsistência. Sabemos que não há domínios separados – a ideia de rede aparece aí – e não há social e técnica, as coisas estão sempre entrelaçadas. Os atores-redes híbridos circulando e ultrapassando fronteiras o tempo inteiro. O problema dos modernos é que eles produziram uma ficção em que eles mesmos passam a acreditar e que corresponde a uma ontologia desses seres.
Diz Latour, sobre a técnica, que são infraestruturas sempre pontuais e provisórias, sendo que essas controvérsias ajudam a revelar esse imbróglio que vai constituir essas caixas pretas. O domínio da técnica se constitui em um mecanismo de simplificação grosseira da realidade, compreendendo a técnica como um sistema autônomo, ela sendo constituída por ela mesma etc. Para o Latour, essa crítica é muito clara, tanto em Heidegger, quando no sistema técnico de Jacques Ellul ou da ideia do homo faber que serão os causadores do ocultamente da técnica. A visão essencialista, que vai caracterizar esse homo faber é que a técnica desaparece supostamente no aparecimento de sua própria essência. Portanto, considerar a técnica como um meio para um fim é uma forma indigna de tratar seres tão importantes para seres tão importante para a constituição dos seres e da sociedade. Com isso cria-se um movimento de ocultação da técnica de Platão a Heidegger.
Para dar ar de nobreza e retirar o objeto técnico de sua opacidade, Latour vai, de novo, na lógica da enquete, desmontar a ação de duplo clique, para tentar apontar as cadeias e as redes que se constituem e achar a boa preposição. O modo de ser dos objetos técnicos vão se dar pegando algo de dois outros modos, o da metamorfose – que consiste em transformar o existente – e os da reprodução – que pretendem se manter em uma certa persistência. Ela vai resultar desse entrelaçamento de seres, o que embora o Latour não diga isso exatamente, pode remeter à própria ideia dos modos de existência do Simondon, que ele reconhece como algo interessante, mas o modo de existência que ele está tratando é mais ligado aos modos plurais de existência do Étienne Souriau.
A técnica é um movimento que vai tirar dos inertes e dos vivos um momento de transformação e de persistência. Não é nem uma coisa, nem outra, mas algo que é melhor entendida não pelo substantivo, mas como um advérbio, ou mesmo como um verbo.
Latour diz, precisamente, assim:
"Técnica não é um substantivo mas um adjetivo: 'isto, é técnico", um advérbio: 'é tecnicamente realizável'", ou enfim ainda mais raramente um verbo: 'tornar técnico, tecnicizar'. Dito de outra forma, a técnica não designa um objeto, mas uma diferença, uma exploração nova do ser-enquanto-outro, uma nova declinação da alteridade. Mas, ao mesmo tempo, minha mesa, os muros da minha casa, meu vaso de cristal, persistem depois de sua transformação. Contrariamente aos seres da metamorfose, uma vez radicalmente transformados, os seres da técnica imitam os da reprodução por sua persistência, obstinação, insistência. É como se a técnica tivesse retirado da reprodução [rep-tec], como das metamorfoses [met-tec], uma parte dos seus segredos, fazendo crescer as duas espécies de modos de existência. A técnica aparece em primeira aproximação com um modo misto: a rapidez proteiforme, de um lado, a persistência, de outro.
IHU – A técnica aparece como uma primeira aproximação de um modo misto. Qual seria seu modo de felicidade, de subsistência?
André Lemos – Dizer que as técnicas são eficientes, transparentes, dominantes ou dominadas, é perder seu espírito, a sua gênese. Os dois modos da técnica seriam o modo que chama de dobra – pli, em francês –, e débrayage, que eu traduziria como engate, que são duas ações fundamentais para qualificar esse modo de existência, que não é da substância, da essência, mas da relação, do movimento. Há toda uma filosofia do objeto aqui que, por exemplo, a ontologia orientada ao objeto do Hartmann não compactua. Para Hartmann, os objetos têm uma essência vicária, pois ela nunca é esgotada na experiência, os objetos vão aparecer por meio de múltiplas dimensões a depender da experiência, mas algo se mantém que permite ao objeto ser ele mesmo. Para Latour e para as sociologia pragmáticas o que define os objetos e as coisas são as relações. Ou há relações ou não há nada, diz Latour.
“A dobra é uma forma de evitar de falar em domínio técnico (independente) sobre a matéria, a natureza ou o sujeito. Há sempre neste "pli" aqui que é, a cada associação, "implicado", "complicado", "explicado". A dobra á a tradução labiríntica de outros modos de existência, da subsistência. Logo, nada de linearidade, de substantivo ou de essencial pode explicar os modos de existência dos seres da técnica."
Em um outro texto, Latour vai dizer que os outros animais também são complexos, mas nós somos complicados porque somos compostos por dobras que complicam o tempo e o espaço. Se eu for dormir amanhã, acordar e apertar um botão no meu computador que eu desliguei ele – puf! – volta ao seu estado atual. Eu não preciso reinventar tudo do começo, porque tem essa dobra implicada em várias ações e domínios. É também essa ação de engatar a marcha de um carro que faz com que algo faça fazer. Essa ação seria o que caracterizaria os seres da técnica. Nada de linearidade, de substantivo ou de essencial para explicar os seus modos, daí a ideia da dobra e do engate.
Não se trata tanto de um homo faber, mas de um homo fabricato, filho de suas obras, híbrido, levado e inventado pelo acoplamentos e pelas dobras da tecnicidade. Consequentemente, liberado da matéria e do domínio, sujeito e seres da técnica podem se livrar dessa visão instrumental e essencialista que não consegue detectar os que eles são exatamente, nem lhes dá um status ontológico importante.
Por isso Latour vai falar que os modernos produzem tanto mas ocultam esses seres da técnica que os olhos das dinâmicas sociotécnicas apontam. Quando falamos que o problema do Facebook foi um problema técnico, isso se constitui como uma maneira de falar totalmente equivocada porque o erro do DNS afetou a bolsa, a política, os hábitos, as formas de as pessoas trabalharem. Ou seja, abriu uma caixa-preta gigantesca de diversas dobras que fica muito difícil de situar um problema como algo técnico, jurídico, dentro de um domínio muito claro. Se localizamos os seres conseguimos entender melhor os seus modos de funcionamento.
Vou explorar um último modo, que são os seres da ficção. Da mesma forma, os modernos vão dizer que há o mundo material e o mundo fictício. Vejam que eles são tão eficientes que os próprios produtores de um mundo ficcional acreditam nisso. Latour vai referir que os próprios artistas dizem que eles produzem coisas de outro mundo. De novo, ele vai achatar o mapa, a cartografia e vai dizer que esse mundo é o mundo que vai nos convocar, que nossa imaginação não é algo interno que tenho pronto para receber os seres da ficção, mas, de novo, é algo produzido pelos seres da ficção.
Da mesma forma que apagam os seres materiais pela res extensa cogitans, os modernos também vão apagar os seres da ficção, jogando eles para um mundo irreal. Essa grande bifurcação vai criando esse mundo material, que no fundo é idealista e um duplo, que é um mundo ficcional supostamente imaterial. É uma tentativa de reconhecer aí um pouco de realidade numa coisa chamada de imaterial ou simbólico que não teria nenhuma realidade material. Eles aparecem e desaparecem assim nesse mundo externo. De novo é uma racionalidade que é muito pouca racional, que não paga a experiência, os rastros. Mais uma vez, o duplo-clique agindo. Tem o mundo real e o mundo da ficção.
IHU – Como se entende os modos de felicidade desse mundo?
André Lemos – Latour vai dizer que mesmo os artistas vão aceitar e reivindicar isso, que fazem licenças poéticas, que estão no mundo da ficção etc., que é um erro de categoria. A análise se torna mais interessante e rica, porque, para Latour, os seres da ficção não vêm de nossa imaginação, mas é nossa imaginação que é oferecida por esses seres sem os quais nós não teríamos imaginação nenhuma. Por exemplo, gostar de música não é descarregar o download de uma subjetividade, de uma poética, de uma informação que estaria dentro. Mas, ouvir música vai produzir essa subjetividade fazendo com que esta seja parte da trajetória de instauração desses seres. Assim, eles vão nos convocar a uma certa receptividade. Uma vez, alguém me disse que não gosta de música, não foi de um gênero musical, disse “eu não gosto de música”. Ora, se ninguém gostar de música, a música desaparece. Ela convoca esse assujeitamento pela música é fundamental.
Se a obra necessita de uma interpretação subjetiva, é nesse sentido muito o praticar do adjetivo que estamos assujeitados a ela. Ou melhor, que dela ganhamos nossa subjetividade. Quem diz que ama Bach passa a ser, por outro lado, um sujeito capaz de amar essa música, rebaixa algo para a apreciar. Emitido pela obra, essa download permite comover-se, tornando-se gradualmente amigo dos objetos interpretáveis. Ou seja, os seres da ficção precisam de nós para existir se não eles desaparecem. Se ele é tomado por isso, não é porque ele projetaria sua subjetividade patética sobre esta música, é porque a obra exige que ele seja parte, que ele seja o amador parido, o intérprete brilhante ou o crítico apaixonado.
O artista ainda vai dizer que estamos no caminho dele, fazemos parte de sua trajetória na sua criação contínua, que se encontra distribuída ao longo do caminho da vida desses seres, de tal ponto que nunca sabemos realmente se é o artista ou o público que está fazendo a obra. Muitos artista dizem isso, que são tomados pela música. Eles também trabalham em rede. A imaginação nunca é a fonte, mas o receptáculo dos seres ficcionais, assim como a pessoa se torna objetiva ao se conectar às cadeias de referência e não dá saltos mágicos da res cogitans, assim como se torna engenhosa ao receber o dom dos seres da técnica, assim como nós recebemos algo para nos reposicionarmos graças aos seres da metamorfose.
Da mesma forma, nos tornamos imaginativos recebendo obras de ficção. Não é à toa que falamos sempre que um escritor nunca vai se tornar escritor se ele não ler. Só escreve quem lê. A escrita é a prática que vai sendo construída por esses seres ficcionais se há o receptor para isso. Somos filhos de nossas obras, nada mais preciso dito sobre a reviravolta ontológica causada pelas obras. Mais uma vez a ideia aí é identificar a rede e não uma essência, por isso que Latour vai falar que o que importa não é o ser; o ser pode falar de um indivíduo, mas é o ter que vai falar da coletividade.
IHU – Como isso circula e nos atinge?
André Lemos – Ouvi várias pessoas falando de como as pessoas estavam alienadas pelo Facebook porque elas pensam que são os dados. Ora, a grande alienação é justamente o contrário, achar que elas têm uma essência própria que não é construída pela materialidade da sua relação com as coisas, que podem ser os dados, a urna, podem ser os documentos, podem ser os automóveis etc. Ou seja, algo que tenha um eu puro e essencial que esses objetos atingem e que logo revelava o Facebook que eu estaria alienado porque eu estaria sendo construído por esses dados. Ora, a grande alienação é achar que não somos construídos, que os dados não nos constroem. Talvez a grande tomada de posição política seja essa e reconhecer isso, agindo a partir disso já que eu sou isso.
Eu preciso ter posições de soberania para saber o que aceitar e o que não aceitar, porque não há um eu meu, interior, o meu ser que posso apagar dessas interrelações. Se apagarmos os brinquedos, as pessoas, as relações, os livros, os filmes, a escola, de que sujeito estamos falando? É isso que os modos tentam identificar.
IHU – E o que está em jogo?
André Lemos – Latour vai apontar outros modos que são muito interessantes para interpretarmos o que acontece conosco hoje. Ele vai agregar isso entre o que seria o modo dos quase sem sujeito e sem objeto é o que constitui a vida ou a rede. São os seres da reprodução, a metamorfose que vão nos constituir e que vamos ser provocados por ela. Que ideia de amor nós temos, por exemplo? De onde veio o amor? Vem de uma construção, seja pelos livros da religião, pela literatura, pelo cinema, é sempre construção. Não é falso porque é construído, mas a boa construção é que vai nos permitir produzir verdades dentro dos modos.
Temos, ainda, o hábito, que é algo que mantém uma certa essência dentro da busca por existência dentro de cada uma dessas categorias. É um modo do modo, na realidade. Hoje, estava dando aula e falei isso para meus alunos: o modo é achar a primeira vez como se fosse a primeira vez, mas estar dentro da dimensão do modo ao qual isso se aplica.
Veja, por exemplo: estava dando aula. Todo dia vou dar minha aula. Dar a minha aula significa que, se me habituo a isso, posso ligar algo que vai matar o modo de existência do hábito. Seria justamente o automatismo. Se começo a dar minha aula de forma automática, mato aquilo que faz a essência ou a veracidade do modo de existência do hábito que é encontrar a primeira vez na primeira vez no refazer a coisa. O que nós, como professores, tentamos fazer é entrar em sala de aula como se fosse a primeira vez para começar de novo e não simplesmente no hábito porque o hábito vai apagar aquilo que interessa nesse tipo de relação.
Latour também fala dos objetos dos quase sujeitos, que são a política, o direito e a religião. Na verdade é a palavra, a circulação da palavra. A política como circulação da palavra para encontrar o círculo, a vida comum e como é que isso pode ser contaminado por outros modos. Por exemplo, se acho que devo ser governado por um mito, na realidade já sai do círculo da circulação da palavra e estou com o modo da religião tentando produzir a sua instância de veracidade dentro da dimensão política. Não se trata de achar aquilo que salva, mas, sim, achar a palavra que vai os colocar no comum, no círculo do comum.
Por isso, a política é sempre encontrar um lugar certo da circulação do discurso. Também não pode ser algo como: vamos colocar tudo no computador para resolver a CPI, porque isso seria colocar o modo da ciência, da referência, na política. Não é a mesma coisa, mataria o ser da política.
O Direito é a palavra que vai dar a segurança. E ele não é, necessariamente, a verdade do justo. O Direito é algo que dá segurança porque ele se estabelece a partir de protocolos e dossiês. Eu posso ter certeza que alguém matou a outra pessoa, mas se eu não tiver os rastros documentais disso, que vai dar essa segurança, não estou mais no domínio do Direito. O domínio do Direito é o da segurança e da continuidade, a partir de uma sucessão de dossiês.
Então, também não posso misturar. Coloque um computador para resolver os processos. Mas não é isso porque o modo de existência do Direto quer achar as condições de julgabilidade. Por isso é lento. A política também, por isso é esse vai, conversa, volta, conversa de novo, porque essa circulação que é importante. A continuidade do círculo, as condições de julgabilidade do Direito, ou a religião que vai achar a palavra que vai se constituir como uma palavra que vai nos agregar, é que vai nos colocar juntos para uma salvação. O que não se confunde com as igrejas.
O modo de ser da política não pode ser tomado pela ciência, aqueles que acreditam em Deus são seres supersticiosos, são pessoas que não entendem o mundo porque o mundo não está cheio de deuses, a ciência aniquilou isso, os modernos aniquilaram isso. Por isso que o da religião não é o mundo lá em cima, é o mundo aqui em baixo. A ciência que está com o telescópio a achar o buraco negro lá longe, ou a forma como eu posso andar no monte. A ciência é que vai lá longe pelas cadeias de referência, a religião não.
Vejam que o é interessante nesse livro é que os modernos embaralham tudo e a gente começa a acredita nisso, que tudo é assim, que a religião fala do que está lá em cima, a ciência fala do que está aqui. Havia uma publicidade aqui em Salvador que dizia assim: “um sorvete é pura química, uma montanha russa é pura matemática, uma praia é pura geografia”. Ora, isso é justamente a forma de matar o ente pelo formalismo, saltar sem as cadeias de referência e pensar num único modo de existência. Eu posso falar de um sorvete, da praia, de uma roda gigante cantando domingo do parque pelo Gilberto Gil, por exemplo.
O que Latour quer fazer é chamar atenção que precisamos reconhecer aquilo que existe dando peso de existência a essas coisas que existem, porque, se não, não vamos mais conversar. E na crise que estamos hoje, que é a crise atual do antropoceno, precisamos conversar.
O quarto grupo é o que liga os quase sujeitos aos quase objetos que é o que, na realidade, vai constituir a economia, oikos, a casa, que são questões que ele vai apontar como o que fazer, o reino dos fins, do ótimo possível, que não pode ser o valor econômico, pode ser oikos, mas a economia mata a moralidade no sentido de um ótimo possível de escrúpulos de preocupação com relação ao fim. É a organização que vai produzir persistências por protocolos e que vai produzir formas funcionais a partir de scripts de continuidades espaciais e temporais, mas que precisam estar sempre convocando esses dois modos, o da moralidade e também o do vínculo do que motivo o nosso interesse pessoal.
É como a Unisinos, a minha universidade, o meu departamento, a minha escola, isso se organiza. Qual é o hábito que está aí? É começar a coisa sempre da primeira vez. Se isso vira um automatismo essa organização pode perder o vínculo com esse vínculo do interesse compartilhado, da própria forma desse script que está produzido aí e também do próprio fazer bem que se diz dentro do modo, de um ótimo possível.
Então, Latour vai apontar esse quatro pontos, esses outros modos, que vai ser a terceira parte do livro mais voltado para a economia, no sentido do oikos, mas também dos valores. Ele vai dizer que o pensamento econômico perdeu a linha com os valores. Então, precisamos resgatar isso também.
Não vou me alongar aqui nos dois modus que ia falar, que é o do lúdico e o da comunicação. Embora o modo da comunicação seja muito importante para conhecer os modernos, pois quando a gente fala de comunicação falamos em sociedade da comunicação, comunicação em rede. Isso caracteriza os modernos e teríamos aí três princípios importantes que é a metamorfose, se eu não escuto o outro eu não vou romper o isolamento; o artefato, não há nenhuma comunicação que prescinda de artefatos, a própria língua, os diversos objetos que estão no meio; e a circulação da palavra, sem comunicação a gente não faz política.
Esses três modos estão dentro e compõem o falar certo da comunicação. Eu posso estar no Facebook, mas se estou com a comunicação rompida a metamorfose e o político não estão funcionando. Logo, não estou na comunicação. A comunicação pressupõe, como dizia Luhman, a comunicação é improvável. Ela não é impossível, mas é improvável. Precisa ter essas três satisfações aí e o humano no processo para romper o isolamento. É importante, mas não vou entrar nisso e deixo para quem quiser ver isso nas referências (disponíveis no vídeo da conferência).
IHU – E a que conclusão chegamos a partir dessa obra de Latour?
André Lemos – Primeiro, descrever os valores e o contraste das instituições que constituem essa antropologia dos modernos, apontar essa irredutibilidade social a categorias instâncias e a chamar a necessidade para gente encontrar condições de felicidades em outros modos. Harman, por exemplo, vai dizer que Peter Pan, para ele, é um objeto. Isso está próximo dessa ideia de que os seres ficcionais são seres que merecem um lugar, porque, se não, não conseguimos mais conversar com pensamentos diferentes e reconhecer a existência desses modos.
Tem uma metodologia, que consiste em escolher os domínios que configuram os modernos, nós. Dar atenção para as redes, detectar as maneiras que as redes ganham tonalidades distintas. Por exemplo, quando a gente fala de Fake News, estamos falando de cadeias de referência do jornalismo, próximo da ciência ou não? Eu acho que Fake News não tem nada a ver com jornalismo. Fake News é uma ação intencional de mentira usando a rede para disseminar algo contra grupos e pessoas, funcionando dentro do modo da palavra que salva. Se eu trato Fake News como notícia, como algo jornalístico, eu estaria dentro do modo da referência porque isso não faz nem sentido em termos jornalísticos, pois notícias não podem ser “notícias falsas”. Se é notícia, é porque ela é verdadeira. No jornalismo massivo que temos, são notícias somem devido ao viés da empresa, mas não Fake News.
Pense: a terra é plana. Você nunca vai ver isso numa manchete na Folha de São Paulo, por exemplo. Agora, tem coisa que não vão aparecer nesses jornais e vão aparecer em outros. Mas há um erro de categoria porque as Fake News funcionam dentro dessa agregação de uma palavra que salva, de uma tribo. Se aquele amigo que gosto muito, que pensa politicamente como eu, me mandou essa mensagem, ela só pode ser verdadeira. E assim se começa a replicar. Temos, assim, um erro de categoria. Precisamos entender esses erros de categorias para poder situar os problemas.
Comparação entre modos vai nos ajudar a respeitar essas questões. A investigação deve ser nomeada não como um conhecimento de Latour, mas como um questionário plurimoderno, um filosofia empírica ou o que ele chama de uma metafísica experimental, porque de novo a racionalidade estaria presa a esses rastros.
A diplomacia aqui é buscar esses valores negociados, um relacionismo prático para evitar a destruição do relativismo. Não é uma questão de que ‘tudo é verdade’. Tudo se diz no modo. Quando alguém perguntava, na CPI, de que ciência estávamos falando, isso não faz o menor sentido. Se estamos falando de ciência, estamos falando de um modo específico. Assim, essa discussão se perde completamente num sofista ou, como todos falam agora, numa narrativa. Tudo é narrativa, toda a narrativa pode ser falsa ou verdadeira. Mas virou narrativa aquilo que o outro diz. Narrativa significaria falso, ilusório.
O problema do antropoceno é que os modernos estavam acostumados a natureza com uma concepção diferente, como mestres e possuidores da natureza e que vão tomar a natureza para seu projeto. Só que agora a natureza começa a reagir e alerta que ou a gente pára por aqui ou a vida no planeta não vai mais se sustentar.