O discurso proferido pelo Papa Francisco na audiência com os participantes do XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal no Palácio Apostólico Vaticano, no dia 15-11-2019, é um “alerta” e um “repúdio aos processos de manipulação política” e ao “avanço da ideia de que os fins justificam os meios”, diz José Carlos Moreira da Silva Filho, professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, ele comenta algumas das advertências feitas pelo papa Francisco ao modo como o Direito Penal trata crimes cometidos por grandes corporações, crimes de corrupção e apropriação privada de recursos públicos, os delitos ambientais e também os casos de lawfare e de encarceramento em massa. “Esses crimes que o papa pontuou devem ser julgados e deve haver a responsabilização e a visibilização institucional deles. Esse é um ativo e um valor que devemos buscar, mas isso não pode ser confundido com a busca da punição e com a intensidade dela. Não acho que a punição tenha grandes benefícios. Temos que evoluir analisando caso a caso para avançarmos na direção de possibilidades cada vez menos violentas de punição e de recomposição dos laços rompidos por estratégias restaurativas”, sugere.
Assim como o papa Francisco, José Carlos Moreira da Silva Filho também defende que o Direito avance em direção à justiça restaurativa. “Sem dúvida, concordo com essa afirmação do papa de que devemos ir em direção a uma justiça restaurativa e que o desafio para todo advogado é conter a irracionalidade punitiva. Para lidar com essa contradição, para aquelas situações em que não é possível a estratégia de restauração, que haja, sim, a punição. No entanto, que o foco esteja mais na responsabilização, no reconhecimento e na recomposição dos prejuízos da vítima e na participação da vítima nesse processo de reconhecimento do dano que ela sofreu, do que no justiçamento do agressor”, argumenta.
José Carlos (Foto: Leslie Chaves | IHU)
José Carlos Moreira da Silva Filho é doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Também é mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Atua como professor na Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais – Mestrado e Doutorado – e Graduação em Direito). Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq e coordenador do Grupo de Estudos CNPq Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição, além de membro fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia - ABJD e Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça por quase 10 anos (2007 a 2016).
IHU On-Line - Como interpreta o discurso do Papa Francisco em audiência com os participantes do XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, realizado em Roma, de 13 a 16 de novembro, sobre o tema "Justiça criminal e negócios corporativos”?
José Carlos Moreira Filho – Já tinha tido notícia deste discurso do papa porque alguns colegas estiveram presentes no Congresso, como o meu colega do PPG em Ciências Criminais (PUCRS), professor Fábio Roberto D'Ávila, e a juíza carioca Simone Schreiber. Eles tiveram a mesma impressão que eu tive ao ler o discurso: ficaram impressionados com a clareza do sumo pontífice e com a importância do que ele falou. O papa é um dos mais importantes líderes políticos do mundo porque traz uma mensagem que vai na contracorrente de um processo pernicioso de morte que está em curso no mundo com o crescimento do modelo neoliberal coordenado, principalmente, pelas grandes corporações econômicas. Elas têm como objetivo o lucro e a exploração econômica predatória de sistemas financeiros e do meio ambiente, manipulam e apoiam a manipulação de sociedades e regimes democráticos para obter os seus fins e acabam conseguindo isso em função do grande impacto que o poder econômico delas detém e exerce. Isso causa um efeito cascata de articulação internacional ao qual é difícil fazer frente, especialmente com as novas linguagens, novas tecnologias, novos fenômenos, que ainda demandam uma melhor compreensão.
Acredito que de um modo geral este é um discurso de alerta, de repúdio aos processos de manipulação política, de repúdio ao avanço da ideia de que os fins justificam os meios, sendo que os fins às vezes são apresentados de maneira falaciosa. Quando se apresenta o combate à corrupção como um fim que justificaria a violação de direitos básicos da Constituição e do devido processo, há que se questionar se de fato esse fim está sendo procurado. Na medida em que algumas suspeitas e esquemas de corrupção são investigados, esquemas que não estão devidamente provados ou comprovados, com um visível objetivo político, sem que de fato haja um combate honesto, acabam favorecendo outros esquemas de corrupção. É interessante o papa trazer a questão das grandes corporações para mostrar que por trás de processos nacionais há uma corrupção muito maior, a qual é naturalizada e vista como algo necessário por uma certa ideologia que hoje se apresenta.
O discurso do papa foi um repúdio a essa tendência que autores como Pierre Dardot e Christian Laval já tinham caracterizado como a nova razão do mundo, que é muito individualista e está na contracorrente dos valores cristãos, porque prega a intolerância, o ódio, o egoísmo e a indiferença para aqueles mais desvalidos que não têm como se manter diante de uma redução do Estado e de uma instrumentalização das instituições para atender a poucos interesses e aumentar a distância entre os mais ricos e os mais pobres. Também acho importante o discurso do papa Francisco no sentido de chamar atenção de novo para a mensagem original do cristianismo, que traz um contraponto àquela visão velho-testamentária que está tão em voga em muitos grupos religiosos que estimulam um espírito de combate, a aversão a certos grupos, que são vistos como o mal. Não se cultiva o valor da caridade, do perdão, da fraternidade e do reconhecimento das diferenças. O papa também se preocupa com isso.
IHU On-Line - Em sua crítica à maximização do lucro por si só, que gera excluídos no presente e compromete as gerações futuras, o papa convida os juristas a se perguntarem o que podem fazer com seus conhecimentos para combater esse fenômeno. Que contribuições o Direito pode trazer para combater esse fenômeno?
José Carlos Moreira Filho – Em primeiro lugar é preciso entender que, para lidar com esse fenômeno, o jurista tem que ter uma compreensão interdisciplinar: ele precisa entender o que está por trás desse processo e precisa ter capacidade técnica de explorar os aspectos e instrumentos técnicos e institucionais relacionados à atividade jurídica, tendo claro que por trás da utilização do sistema jurídico sempre estão escolhas políticas, axiológicas e valorativas. Essas escolhas foram feitas pela sociedade brasileira a partir da Constituição e outras normas fundamentais, como tratados internacionais de Direitos Humanos que o Brasil reconheceu e incorporou ao seu ordenamento jurídico. Esses tratados apontam exatamente o contrário do que acontece no país hoje.
O juiz deve chamar a atenção para a incoerência da atuação governamental, judicial, e também muitas vezes do próprio Ministério Público, que buscam criar finalidades e propósitos que não estão colocados na Constituição nem contemplados nos tratados internacionais de direitos humanos. Esse conjunto jurídico deve, sim, ser o norte principiológico que comanda a interpretação das normas e a produção das normas inferiores. Então, o jurista hoje no Brasil tem uma função fundamental de defender o óbvio: os grandes valores e direitos civilizatórios que estão contemplados nos tratados e que estão nas constituições dos diferentes estados nacionais. Só isso é uma grande contribuição.
O juiz tem que ter também a hombridade de denunciar as flagrantes violações que muitas vezes são técnicas e que, em nome da busca de uma transformação, os direitos deixem de ser protegidos e seja revogada a rede de proteção jurídica que foi construída ao longo de todo o século XX. Portanto, chamar a atenção para isso e ter a clareza de denunciar as distorções técnicas e de princípios e normas que comandam e deveriam comandar a aplicação e entendimento do Direito, é muito importante. Isso também não impede que o jurista avance um passo e consiga se articular com conhecimentos das Ciências Sociais para compreender a sociedade que hoje se coloca: de retorno a um flerte com o discurso fascista, com ações violentas, com discursos de ódio, com defesa de privilégios, de aumento da distância social, de construir uma cultura de descaso para a sorte dos menos favorecidos. São duas direções em que os juristas podem contribuir com discursos, com textos, publicações, com intervenções no sistema de justiça, com a provocação das esferas de justiça internacional.
Outra questão importante para responder à pergunta é que ela se articula a outro tema que você traz mais adiante, relacionado ao lawfare: muitas vezes, para derrubar as barreiras de princípios e de fundamentos jurídicos que foram construídos como antídoto ao que aconteceu em termos de morte, fascismo e atitudes autoritárias de regimes totalitários, vivemos hoje um processo no qual o Direito é utilizado, talvez como em nenhum outro momento da história, para criar justificativas falaciosas para erodir os fundamentos democráticos e as garantias de direitos e de busca da diminuição das desigualdades e das discriminações. Então, seguindo uma cadeia de financiamento econômico e influência política de grandes corporações e de políticos colocados em posições-chave do Estado, o Direito é instrumentalizado para dar uma aparência de legalidade e legitimidade a processos que buscam repetir efeitos que, no século XX, esperávamos que não voltassem, os quais foram denunciados sob o lema do “Nunca Mais”, para que nunca se repetissem. Mas creio que o problema em relação a isso é de formação educacional dos operadores do Direito e é preciso construir uma preparação mais humanista. As questões de concurso para a admissão no Poder Judiciário são eminentemente técnicas e não trazem uma necessária compreensão ética e mesmo a construção de um repúdio a essa instrumentalização ilegal dos instrumentos jurídicos.
As nossas prisões estão um caos, uma vala de violência: um jovem que entra numa prisão com 18 anos tem que se transformar num criminoso para poder sobreviver. Para isso tem que fazer parte de uma daquelas facções que dominam os presídios brasileiros, porque o estado de penúria, de promiscuidade, de descaso e falta de dignidade favorece esse cenário de criminalidade organizada de facções. Quanto mais se colocam pessoas na cadeia, mas difícil fica o combate à criminalidade organizada. Precisamos urgentemente de medidas de desencarceramento em vez de colocar mais de 41% das pessoas presas sem serem julgadas, muitas vezes movidos por uma avaliação de periculosidade completamente preconceituosa e que não condiz com a realidade.
IHU On-Line - No pronunciamento, o papa mencionou o “uso arbitrário da prisão preventiva”, cujo número de detentos sem condenação já ultrapassa 50% da população carcerária. Quais são as causas dessa realidade no Brasil, as dificuldades do Direito brasileiro acerca desse ponto especificamente e que propostas jurídicas poderiam sugerir saídas para esse quadro?
José Carlos Moreira Filho – Neste ponto, o papa foi certeiro. No Brasil, as pessoas ficam esperneando porque não deveria haver a terceira instância, ou as pessoas deveriam ser presas antes de serem devidamente julgadas culpadas, e se esquecem de que 41% das pessoas que estão presas no Brasil não foram sequer julgadas e estão numa prisão preventiva por período indefinido; isso é um retrato evidente da banalização. Neste caso, o poder judiciário tem grande responsabilidade: constrói sem fundamento científico a ideia de periculosidade que vem da criminologia positivista do [Raffaele] Garofalo, segundo a qual é possível avaliar a personalidade de alguém que cometeu um crime e julgá-la perigosa a ponto de justificar o seu encarceramento. Por trás dessa avaliação, é comum a apresentação de preconceitos e discriminações em função da cor da pele, do local social da pessoa, do tipo de crime de que ela é acusada, do tipo de roupa que ela utiliza.
Há juízes sérios e que avaliam corretamente quando alguém representa uma ameaça à segurança pública, mas há um abuso e uma banalização e algo que viola, sem dúvida alguma, como disse o papa em seu discurso, o princípio da presunção de inocência. Temos uma dificuldade prática, nem tanto por conta da legislação. Talvez se pudesse criar uma legislação que estabelecesse critérios mais incisivos e se tentasse construir formas de evitar esse procedimento. É algo parecido com o que acontece no instituto da delação premiada: não está dito em nenhum lugar da lei que, para obter a delação de alguém que está sendo acusado de um crime, é preciso mantê-lo preso até ele dizer o que se quer ouvir. Essa é uma prática que se assemelha e se apresenta como tortura. Não deveria ter sido assim interpretado, mas desde o início foi, e isso acabou se normalizando ao arrepio do ordenamento jurídico, dos princípios constitucionais e da própria lei da delação premiada.
Hoje a coisa fica mais complicada por duas razões: as corporações se tornaram muito maiores e foram se fundindo umas com as outras. São corporações que superaram o poder de muitos estados nacionais. Assim, pelo seu poder, ao conseguirem manipular e ter uma presença garantida nos poderes legislativos dos estados, conseguem inclusive legalizar a sua conduta, que acaba por causar danos enormes à sociedade. Então, hoje se discute que a criminologia não deve se voltar apenas para a ideia de crime que é definido na legislação dos estados; ela deve se preocupar com os danos sociais (como defende hoje de modo enfático o criminólogo irlandês Paddy Hilyard), produzidos por ações que são legalizadas em alguns estados, mas legalizadas de forma canhestra, contrariando tratados internacionais e constituições e produzindo danos terríveis ao meio ambiente, à sociedade e ao equilíbrio econômico, político e social dessas sociedades. Muitas dessas condutas poderiam ser catalogadas como crimes, mas há um debate relacionado ao próprio conceito de crime e hoje esse debate é mais necessário ainda na medida em que vemos ocupações de espaços de poder por esses agentes econômicos e por uma tentativa de legalizar os seus atos.
Então, é preciso construir uma compreensão sociológica, econômica e política de que essas ações são predatórias em muitos sentidos e que precisamos urgentemente de uma regulação de várias coisas: da questão dos dados que são usados de forma promíscua pelas redes sociais e empresas, da supressão maciça de direitos sociais essenciais para as classes mais populares, de extermínio da previdência pública para beneficiar os grandes bancos, enfim de todos os aspectos econômicos e corporativos que o papa menciona em seu discurso. Sem falar também da exploração econômica descarada de regiões devastadas por ações militares oriundas dos próprios países dos quais tais corporações procedem, como se viu e se vê no Iraque.
IHU On-Line - Em seu discurso, o papa também denuncia as “omissões mais frequentes do direito penal”, referindo-se à “escassa ou pouca atenção que os crimes dos mais poderosos recebem, sobretudo a macrodelinquência das corporações”, ao tratar dos paraísos fiscais e dos crimes cometidos pelo capital financeiro global. Ele afirma que “é curioso que o recurso a paraísos fiscais, um expediente que sirva para ocultar todo tipo de crime, não seja visto como uma questão de corrupção e criminalidade organizada”. Como avalia essa crítica em particular? Como a justiça brasileira trata essa questão e, em termos jurídicos, como seria possível reverter essas omissões do direito penal?
José Carlos Moreira Filho – É uma alegria ver o papa falando sobre esse que é um tema que venho estudando e no qual vou me aprofundar mais no pós-doutorado que vou realizar no próximo ano. A ampla discussão relacionada às grandes corporações e aos crimes econômicos vem na linha de um criminólogo chamado Edwin Sutherland, que procurou mapear os casos praticados por empresas estadunidenses no período do New Deal, criado por Roosevelt, o qual criou um conjunto de normas e regras que não foram bem recebidas por essas corporações, que procuraram violá-las.
Sutherland fez um estudo e concluiu que 99,9% dessas empresas praticavam crimes que tinham um impacto muito grande, como omissão de informações na venda de produtos que podem causar mortes e lesões na população e no meio ambiente. É importante pensar nisso, porque em nosso sistema capitalista, essa é a verdadeira fonte de corrupção. Fala-se muito dos políticos que são corrompidos, mas pouco se fala dos agentes que foram os ativos, que têm interesse econômico e apresentam e dominam o cenário político com seu poder e sua presença. Esse é um problema que fica difícil de visualizar num contexto em que há uma intensa desregulação.
Na época de Roosevelt, nos anos 1950, havia uma tendência de regulação e o Estado regulava a economia para diminuir a desigualdade a fim de resolver a crise social em consequência da guerra. O Estado se preocupava em criar empregos dignos e não empregos precários, como se coloca hoje no cenário do Brasil. Hoje vivemos um cenário de desregulamentação e vimos os efeitos disso em 2008, com os crimes praticados por instituições financeiras no mundo. Elas causaram danos e não foram sequer reconhecidas como condutas delitivas e muito menos responsabilizadas; pelo contrário, os Estados logo acudiram para cobrir os rombos dessas instituições financeiras.
Sobre este ponto do discurso do papa: “é curioso que o recurso a paraísos fiscais, um expediente que sirva para ocultar todo tipo de crime, não seja visto como uma questão de corrupção e criminalidade organizada”, é preciso dizer que quem divulga informação sobre isso está apodrecendo numa prisão, como é o caso do Julian Assange.
Queria destacar que esse reclame e essa indignação da população com relação à corrupção é um pouco irracional. Veja, por exemplo, os escândalos de corrupção que foram descobertos e apontados na Petrobras pela Lava Jato: a sociedade ficou extremamente indignada, com raiva e escandalizada com o argumento de que o dinheiro público estava sendo usado para pagamento de propina, envolvendo nossos recursos naturais. Mas não se tem o mesmo repúdio à venda dos nossos recursos naturais, descobertos recentemente, como o caso do pré-sal, a troco de banana, nem à tentativa de ir desmembrando a Petrobras, tirando-a de um âmbito de proteção de uma empresa estatal e estratégica e a colocando no âmbito de uma empresa de mercado que atua na Bolsa de Valores. Isso é engraçado. As pessoas pensam que quando a empresa não for mais pública, não haverá necessidade de se preocupar com a corrupção, quando na verdade a maior corrupção terá sido vender a empresa e nossos recursos naturais a preço de banana, uma vez que a lei anterior ao atual desmonte estabelecia que uma porcentagem expressiva dos lucros advindos da exploração desses recursos iria para a saúde e a educação.
Então, de que adianta lutar contra o desvio do dinheiro público, seja lá por que causa for, para obter apoio político, governabilidade, ou qualquer coisa que o valha, se junto com isso não defendemos que o investimento dos recursos públicos seja para o benefício da população, para garantir uma aposentadoria digna, um serviço de saúde ou educação de base, ou para desenvolver a pesquisa nas universidades, para investir em empregos dignos? Muitas vezes o debate da corrupção vem truncado e se olha apenas para um ponto, o qual é manipulado pelos adversários políticos. Não é a primeira vez que se faz isso no país: a ditadura fez isso e não foram poucos os acusados de corrupção que faliram e foram alijados de seus postos sociais para favorecer outros, mais amigos dos que estavam no poder e às vezes para ocultar as ações não muito edificantes daqueles que ali estavam. Então, temos que entender o fenômeno da corrupção dentro de um fenômeno mais amplo, compreendendo claramente que a pior corrupção é a desigualdade e a sua naturalização. Essa é uma corrupção da nossa alma e da capacidade de haver senso de justiça na sociedade.
IHU On-Line - Outro ponto para o qual o papa faz um chamado à reflexão diz respeito aos “fenômenos maciços de apropriação de recursos públicos”, que “passam despercebidos ou são minimizados como se fossem meros conflitos de interesse”, como o caso da corrupção enquanto “criminalidade organizada”. Como essa questão tem sido tratada e pode ser aperfeiçoada pelo Direito penal brasileiro, uma vez que nem sempre é possível comprovar casos de corrupção ou o enriquecimento ilícito de agentes públicos? As 10 medidas contra a corrupção propostas pelo Ministério Público Federal em 2015 trazem contribuições para enfrentar esse fenômeno? Que propostas, na sua avaliação, permitiram o aperfeiçoamento do sistema jurídico para combater esses crimes?
José Carlos Moreira Filho – As 10 medidas contra a corrupção propostas pelo MP em 2015 são muito mais nocivas do que positivas, porque trazem absurdos jurídicos e posturas que desenvolvem uma visão de que você é culpado até que prove sua inocência, e medidas que violam a nossa Constituição. Dentre as mais graves, eu destaco aquela que pretendia restringir o Habeas Corpus, instrumento essencial na luta pela liberdade, e que foi tão lamentavelmente atingido no período mais repressivo pela ditadura civil-militar com o AI-5. As medidas também apostavam na velha e batida fórmula do aumento da pena como método para combater o crime, o que já está mais do que cientificamente comprovado que não surte o efeito pretendido, agindo justamente no sentido contrário, sem falar que atingirá duramente os que têm menos chances e recursos para se defenderem. É uma medida que se enquadra perfeitamente no que podemos chamar de "populismo penal".
As medidas ainda aumentam os casos de prisão preventiva (hoje já aplicada de modo indiscriminado e epidêmico no país) e toleram provas ilícitas. Eu não creio – e esse é um problema que vejo na Lava Jato e que tem sido evidenciado nas reportagens do The Intercept - que os fins justificam os meios. Essa é uma lógica horrível porque, ao desprezar os meios que foram construídos de forma democrática, simplesmente se favorece a opinião dos que estão no poder e dos interesses que os movimentam, os quais nunca vão ser apresentados ao grande público como interesses de algumas pessoas apenas, mas como "interesses democráticos pelo bem do Brasil".
É claro que ali fica ao critério de quem está no poder, favorece uns e criminaliza outros e tenta construir um maniqueísmo que não é contemplado pelo ordenamento jurídico. Quando se torna o ordenamento jurídico obsoleto e se criam mecanismos que não estão presentes dentro dele por meio de uma prática que é legalizada por quem está no poder, isso traz um efeito terrível para a democracia, as instituições e o direito de todos e cria um modus operandi que, a depender de quem estiver no poder, pode atingir a todos. Penso que devemos combater a corrupção, mas nunca de modo que os fins justifiquem os meios. Vou dizer a você que no estágio em que o Brasil está, o combate à corrupção primeiro deve passar por um reenquadramento das práticas abusivas e ilegais que a Operação Lava Jato instaurou. Temos que recuperar o fio da legalidade. Esse é um processo que vai levar algum tempo e vai exigir algum esforço de todos nós. Depois que isso estiver assegurado, podemos buscar novos instrumentos para o combate à corrupção.
IHU On-Line - O papa também critica a guerra jurídica, o lawfare, o uso de “falsas acusações contra líderes políticos” e a “instrumentalização” da luta contra a corrupção “a fim de combater governos indesejados, reduzir os direitos sociais e promover um sentimento antipolítico que beneficia aqueles que aspiram a exercer um poder autoritário”. Como essa reflexão pode ser útil para refletirmos sobre a “guerra jurídica” e a instrumentalização política da justiça no Brasil?
José Carlos Moreira Filho – A Associação Brasileira dos Juízes pela Democracia – ABJD, junto com Chico Buarque, esteve mais de uma vez com o papa. E uma das dirigentes da associação, Carol Proner, uma combatente da democracia e dos valores da igualdade e contra o discurso agressivo do ódio que se coloca hoje no nosso cenário, esteve mais de uma vez com o sumo pontífice e, portanto, eu já sabia da preocupação dele com esse tema. Nós escrevemos um livro sobre lawfare, que integra hoje a biblioteca do Vaticano, e também outras publicações que foram construídas por esse grupo do qual faço parte, como o livro que denuncia o impeachment da ex-presidenta Dilma como algo que não obedeceu à legalidade do país, que foi ao nosso ver uma violação dos direitos políticos da população brasileira. Também sobre as condenações do ex-presidente Lula, em sentenças sem bases probatórias suficientes, contraditórias em muitos sentidos e que não são suficientes para condenar uma pessoa a crimes que não estão devidamente comprovados.
Além disso, também foi produzido um livro sobre o acordão do TRF-4 no Caso triplex do Guarujá. Toda essa coleção que mapeia o lawfare no Brasil foi levada ao sumo pontífice e fica claro que ele também está convencido, assim como nós estamos, de que os processos do ex-presidente Lula são falaciosos, não obedecem às regras do devido processo legal, que são resultado de graves violações à legalidade brasileira. Um exemplo é a violação explícita de uma cláusula pétrea da Constituição que assegura a prisão condenatória apenas após o trânsito em julgado. Se há críticas a isso, elas são bem-vindas, mas não podem justificar a violação de uma cláusula pétrea. Que se busque, então, construir um ambiente para uma futura nova constituição e se mude esse ponto, mas é pernicioso alterar isso ao arrepio da Constituição.
O Brasil talvez seja um dos casos mais emblemáticos de lawfare, mas ele está espalhado por outros locais do planeta. O próprio impeachment foi um exemplo de lawfare: foi utilizado o Direito para obter um objetivo político para retirar um grupo do poder e colocar outro, atribuindo-se à Dilma um crime de responsabilidade inexistente e outro que sequer está estabelecido na legislação. Para fazer isso, criou-se um clima de ódio, de denúncias falsas, de criminalização de ideias que não é positivo para a nossa sociedade. Sem dúvida o papa fez uma reflexão importante e esperamos que nossas sociedades consigam crescer na construção do necessário antídoto para o lawfare, porque ele corrói. Veja, um valor tão importante quanto a confiança no poder judiciário, que foi construído durante o período de redemocratização, agora está abalado. Esse é um patrimônio que estamos colocando em risco.
IHU On-Line - O papa também menciona os crimes ambientais e fala em “ecocídios”. Como é possível avançar nessa questão juridicamente?
José Carlos Moreira Filho – No caso dos crimes ambientais, temos um marco jurídico que seria suficiente para lidar com isso, mas aí temos o problema de que falei anteriormente: infelizmente não há funcionários do sistema de justiça que estejam dispostos a colocá-lo em prática ou com apoio suficiente para fazê-lo. Precisamos ter muita firmeza na denúncia desses crimes, mesmo que tenha de se contrapor a quem está no poder executivo.
Estamos destruindo o lugar onde vivemos e a cultura dos nossos povos originários. Aí temos muito que aprender, porque olhando para os últimos governos, esse princípio não foi devidamente respeitado e agora, sem dúvida, esse desrespeito atinge esferas estratosféricas. Parece que voltamos aos anos 1980, em que se falava sobre a possibilidade de destruição do planeta por causa de uma bomba atômica, e agora se fala da real possibilidade de terminar a vida no planeta tal como a conhecemos em face da grave crise climática, que se torna ainda mais grave diante do negacionismo obscurantista e conveniente de grupos políticos e econômicos autoritários no mundo todo. É preciso combater as fake news relacionadas ao tema ambiental e as autoridades do campo jurídico têm grande papel e devem tomar isso como tarefa prioritária. Esse é um caminho pelo qual se pode avançar para a formação e sensibilização dos novos juízes. Para que se possa avançar e dar mais importância a esse tema, é preciso trabalhá-lo nas faculdades de Direito como algo mais presente. Temos que construir isso no âmbito do ensino jurídico.
IHU On-Line - Segundo o papa, “entre a pena e o crime existe uma assimetria e que a realização de um mal não justifica a imposição de outro mal como resposta. Trata-se de fazer justiça à vítima, não de justiçar o agressor”. Concorda com essa compreensão? Como o Direito penal pode permitir que se faça justiça à vítima em todos esses casos que o próprio papa critica?
José Carlos Moreira Filho – Eu bati palmas de pé a essa frase do papa. Concordo plenamente com essa compreensão, mas ela bate de frente com a lógica que impera no Direito Penal, que se preocupa muito mais com o agressor e muito pouco com a vítima. Entendo que o Direito Penal tem uma importância simbólica e vejo isso em relação aos crimes mais graves, como crimes contra a humanidade, mas que, ao meu ver, não devem ser entendidos na imposição de uma pena perpétua ou de morte, mesmo para o genocida.
Esses crimes que o papa pontuou devem ser julgados e deve haver a responsabilização e a visibilização institucional deles. Esse é um ativo e um valor que devemos buscar, mas isso não pode ser confundido com a busca da punição e com a intensidade dela. Não acho que a punição tenha grandes benefícios. Temos que evoluir analisando caso a caso para avançarmos na direção de possibilidades cada vez menos violentas de punição e de recomposição dos laços rompidos por estratégias restaurativas. Precisamos desinchar o sistema porque ele causa cada vez mais dor e violência. Por isso, a responsabilização penal, se ela é importante, que seja para aqueles crimes que são resultado de um descontrole punitivo, quando as instituições e o aparato punitivo do Estado são tomados de assalto por tentações autoritárias que se voltam para os seus próprios cidadãos. Isso é o que caracteriza, em grande parte, a definição de crime contra a humanidade.
Sem dúvida, concordo com essa afirmação do papa de que devemos ir em direção de uma justiça restaurativa e que o desafio para todo advogado é conter a irracionalidade punitiva. Para lidar com essa contradição, para aquelas situações em que não é possível a estratégia de restauração, que haja, sim, a punição. No entanto, que o foco esteja mais na responsabilização, no reconhecimento e na recomposição dos prejuízos da vítima e na participação da vítima nesse processo de reconhecimento do dano que ela sofreu, do que no justiçamento do agressor. De qualquer forma, para esses graves crimes também é preciso construir uma cultura de que não há impunidade e é preciso, sim, interromper esses processos, responsabilizá-los e estabelecer punições administrativas e de diversas ordens.
Não se deve permitir, por exemplo, que policiais que participaram de tortura possam continuar sendo policiais ou que os lucros produzidos por uma empresa aos custos do meio ambiente ou aos custos de grande parte da população beneficiem quem foi responsável por essas agressões. Essas pessoas precisam ser despossuídas de seus bens e precisam pagar economicamente, que é onde mais dói. Essas são algumas ideias, mas concordo com essa orientação do papa e considero que este foi um grande discurso. Temos aí um grande defensor dos direitos de todos e um grande criminalista e criminólogo que é o nosso papa Francisco.