15 Março 2025
"Líderes religiosos têm um papel crucial na transformação das estruturas que perpetuam a violência de gênero. Não podemos aceitar que discursos que inferiorizam as mulheres sejam normalizados nos púlpitos e nos altares", escreve Rede Brasileira de Teólogas, em nota.
A Rede Brasileira de Teólogas vem a público manifestar seu veemente repúdio à pregações de cunho sexista, machista e misógino. Nossa postura se dá, especialmente, pela fala do frei Gilson da Silva Pupo Azevedo, padre católico e cantor brasileiro, frade carmelita da Congregação "Carmelitas Mensageiros do Espírito Santo", da diocese de Santo Amaro – SP. Tem circulado novamente pelas redes sociais uma postagem em que ele faz uso de Gênesis 2,18 para afirmar a submissão das mulheres aos homens. Tal discurso, além de teologicamente equivocado, reforça uma estrutura de dominação patriarcal que, ao longo da história, tem servido para legitimar diferentes formas de violência contra as mulheres, incluindo violência doméstica, psicológica, simbólica, sexual e feminicídio. Salientamos que outros líderes religiosos cristãos também adotam esse discurso, o que revela uma total desvinculação com a mensagem do Evangelho de Jesus.
Esse discurso também está totalmente em desacordo com os ensinamentos do papa Francisco, sobre as mulheres. "A violência contra as mulheres é uma profanação de Deus, nascido de uma mulher. Ainda persiste uma mentalidade machista que ignora a novidade do cristianismo, que reconhece e proclama a igual dignidade e responsabilidade da mulher em relação ao homem" (Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 2013).
O papa Francisco, em Amoris Laetitia, diz: “neste relance sobre a realidade, desejo salientar que, apesar das melhorias notáveis registradas no reconhecimento dos direitos da mulher e na sua participação no espaço público, ainda há muito que avançar nalguns países. Não se acabou ainda de erradicar costumes inaceitáveis; destaco a violência vergonhosa que, às vezes, se exerce sobre as mulheres, os maus-tratos familiares e várias formas de escravidão, que não constituem um sinal de força masculina, mas uma covarde degradação”. Segue afirmando a errônea hermenêutica machista, em que “a história carrega os vestígios dos excessos das culturas patriarcais, onde a mulher era considerada um ser de segunda classe” (Amoris Laetitia, § 54). Como mulheres teólogas, reconhecemos o esforço que Francisco faz para incluir as mulheres, ao mesmo tempo que, perpassado pelo tempo presente, pelos limites de uma Igreja milenar, de estrutura patriarcal, ainda há um longo percurso pela frente. Por isso, abaixo, nos posicionamos diante deste pequeno trecho do Gênesis.
A leitura fundamentalista do termo ezer como sinônimo de subordinação deturpa o sentido original do texto bíblico. O termo pode ser traduzido por “ajudante”, mas também por “aquela que socorre, salva”. Aliás é muitas vezes utilizado para as ações divinas e não podemos dizer que Deus, como auxílio, é submisso ao ser humano. Assim, assume o sentido de socorrer ou salvar Adão da solidão, para provar que o ser humano é um ser em relação. Por isso a mulher será aquela que o tirará dessa condição de não “ser”, como diz o próprio Deus no relato da criação, pela primeira vez na Bíblia, “não é bom”. A segunda palavra kenegdô, pode ser traduzida por “face”. Sua raiz está associada à comunicação e pode ser traduzida por “comunicar”, “anunciar”, “transmitir” ou “revelar algo que estava escondido”. Quando é empregada como preposição ou conjunção, como é o caso neste versículo, pode ser traduzida por “em frente de” ou “contra”.
A mulher é colocada diante do homem para lhe estabelecer um limite, por isso tem o sentido de “contra”. Da mesma forma que a terra, o mar, o céu são delimitados, também o espaço do Adão. Ele não é o todo poderoso, que ocupa todos os espaços, pois tem diante de si um ser capaz de comunicação, de interlocução. Por isso, Adão não nomeia a Mulher como os animais, mas ele a saúda, dizendo que, ela se chamará isha, porque saiu de ish, que literariamente é um jogo de palavras, para mostrar que são iguais.
Portanto, a mulher não foi criada como uma ajudante inferior ao homem, mas como uma parceira essencial, igualmente dotada de dignidade e valor. Tanto que a submissão da mulher é vista como uma maldição, que aparece em Gn 3,16. Isso é uma maldição após o pecado, mostrando que as relações que deveriam ser de harmonia não são mais. Essa forma de falar é para apresentar um alerta, dado que esse será o pecado que perpassará os textos bíblicos. A maldição ligada à injustiça para os homens e a submissão das mulheres (Gn 3,16-19), bem como a morte. No entanto, essa interpretação tem sido historicamente utilizada para silenciar mulheres e naturalizar sua posição de subalternidade dentro das igrejas e da sociedade.
No discurso proferido pelo frei, ele se insere em uma tradição teológica que tem sido utilizada para perpetuar violências contra as mulheres. A afirmação de que "Deus deu ao homem a liderança" não apenas desconsidera a igualdade fundamental entre os sexos, mas alimenta narrativas que justificam relações abusivas, sustentando a ideia de que uma mulher deve ser submissa. Em suas propostas de oração pela madrugada, o frei se perfaz como um grande devoto de Nossa Senhora, rezando o Rosário, ou seja, pratica a Ave Maria em sinal de fiel penitente. Canta sob a força da Virgem em “esmagar a cabeça da serpente”, linguagem denunciada pelas teólogas feministas como fruto de uma leitura sexista, de um sistema patriarcal binário, que coloca a mulher diante de duas imagens, o mal de Eva em se aproximar da serpente, em oposição à mulher virtuosa, Maria. Esse sistema de linguagem projeta, no imaginário popular, códigos e símbolos que mantêm a disparidade de gênero, evidenciando e promovendo as diferenças entre homens e mulheres, como se assim fosse desde a criação. Ignora totalmente que em Gênesis há duas citações da criação da humanidade, “então Deus determinou: Façamos o ser humano à nossa imagem, de acordo com a nossa semelhança. [...] Deus, portanto, criou os seres humanos à sua imagem, à imagem de Deus os criou: macho e fêmea os criou” (Gn 1,26-27).
O Brasil, país de maioria cristã, registra altos índices de violência de gênero (Ipea, 2023). Segundo dados recentes, uma mulher é vítima de feminicídio a cada seis horas, e muitas dessas mortes ocorrem em contextos nos quais a submissão feminina é imposta como um dever religioso. A visão do homem como “líder” e da mulher como “auxiliar” não é apenas uma questão teológica, mas uma questão de vida e morte.
Ao contrário do que ensinam as teologias patriarcais, Jesus nunca submeteu as mulheres ao domínio masculino. Ele as acolheu, curou, ensinou e as integrou no corpo social como protagonistas do Reino de Deus. Mulheres como Maria Madalena, a samaritana e tantas outras foram agentes fundamentais da fé cristã. Assim, a liderança religiosa feminina não é uma ameaça ao evangelho, mas parte essencial de sua missão libertadora.
O papa Francisco, ainda que mantendo restrições à ordenação feminina, reconheceu que a Igreja tem sido historicamente machista e reforçou que "as mulheres são as protagonistas da Igreja" (Audiência Geral, 2020). Portanto, discursos que reforçam a submissão feminina não apenas contradizem os princípios da dignidade humana, mas também vão contra os próprios apelos feitos pelo líder máximo da Igreja Católica.
Líderes religiosos têm um papel crucial na transformação das estruturas que perpetuam a violência de gênero. Não podemos aceitar que discursos que inferiorizam as mulheres sejam normalizados nos púlpitos e nos altares. Toda teologia que promove a submissão incondicional abre portas para a perpetuação da violência e precisa ser urgentemente revista à luz do Evangelho de Cristo.
Diante disso, salientamos a importância de as lideranças religiosas assumirem a responsabilidade de pregar um evangelho que liberte, e não que aprisione mulheres em papéis opressores e ultrapassados. Reafirmamos nosso compromisso com uma teologia que confirma a plenitude da humanidade das mulheres, registrando-as como chamadas por Deus para liderar, ensinar, pastorear e transformar a sociedade.
Pelo fim da teologia patriarcal que oprime e pelo avanço de uma hermenêutica libertadora, reafirmamos: as mulheres não nasceram para servir ao homem, mas para serem reconhecidas em sua plenitude como pessoas, de igual dignidade e capacidade intelectual.
Rede Brasileira de Teólogas
Por uma Teologia a serviço da vida, da justiça e da dignidade humana.