03 Fevereiro 2025
“A concentração da riqueza tem efetivamente a ver com a propriedade do capital produtivo, dos meios de produção e das finanças. É o grande capital (financeiro e empresarial) que controla os investimentos, os empregos e as decisões financeiras no mundo. Um núcleo dominante de 147 empresas, por meio de participações entrelaçadas com outras, controla conjuntamente 40% da riqueza da rede mundial. Um total de 737 empresas controlam 80% de tudo. Esta é a desigualdade que importa para o funcionamento do capitalismo: o poder concentrado do capital”. A reflexão é de Michael Roberts, em artigo publicado por El Viejo Topo, 25-01-2025. A tradução é do Cepat.
Os dados empíricos sobre a desigualdade econômica multiplicaram-se nas últimas duas décadas. Refiro-me aqui à desigualdade econômica (renda e riqueza) em oposição à desigualdade social (expectativa de vida, acesso aos cuidados de saúde e à educação, níveis de poluição, etc.), porque a primeira alimenta as desigualdades na segunda.
A desigualdade econômica pode ser considerada de diversas maneiras. Em primeiro lugar, a desigualdade da renda recebida (salários e benefícios); em seguida, a desigualdade da riqueza pessoal líquida (ativos possuídos uma vez contabilizada a dívida); depois, a desigualdade dos bens de capital (o tamanho das empresas e a participação acionária). Depois há a desigualdade global, isto é, a desigualdade de renda e de riqueza entre as nações; e a desigualdade de renda e riqueza dentro das nações. A desigualdade é uma medida relativa, não absoluta.
Vejamos primeiro a desigualdade de renda. A medida básica da desigualdade de renda é o coeficiente de Gini de desigualdade de renda, que capta a equidade global da distribuição. Um coeficiente de Gini 1 significaria que toda a renda recebida em um ano iria para uma única pessoa. Um coeficiente zero significaria que a renda é distribuída igualmente entre todos. Todos os países do século XXI têm um coeficiente entre estes dois extremos.
Recentemente, alguns economistas da corrente dominante salientaram que esta razão estagnou ou diminuiu ao longo das últimas duas décadas na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e em grande parte da Europa Ocidental. A relação entre a renda dos 10% mais ricos e dos 10% mais pobres também se estabilizou; na verdade, diminuiu. Os dados do Relatório sobre a Desigualdade Mundial mostram que o percentual da renda nacional que vai para os 10% mais ricos aumentou em quase todos os países desde 1980. Mas essa desigualdade de renda parece ter perdido fôlego desde 2010.
A razão não é uma inversão da crescente desigualdade, mas o fato de a disparidade entre a renda no topo da escala de rendimentos e os grupos de renda média ter tendido a aumentar desde a virada de milênio, enquanto a diferença entre as rendas mais baixas e as médias diminuiu. Quem ganha mais está se afastando do meio (de 6x para 7x) e quem ganha menos reduziu a distância do meio (de 5x para 4x).
Os aumentos sustentados do salário mínimo têm sido uma parte importante desta história na Grã-Bretanha. E tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido, os trabalhadores pouco qualificados se beneficiaram (e os trabalhadores com qualificações médias sofreram) de um “esvaziamento” da parte média da distribuição do emprego. Nos EUA, os empregos mais bem remunerados estão cada vez mais distribuídos entre um punhado de profissões de nível muito elevado. Os trabalhadores da tecnologia representam agora um em cada seis dos 5% mais ricos, contra um em cada 20 em 1990. Nenhum grupo teve este predomínio no passado.
Nada disto elimina o claro aumento da desigualdade de renda dentro dos países que tem ocorrido em quase todas as partes desde a década de 1980. Os 50% mais pobres da população ficam sistematicamente atrás dos 10% mais ricos da população em todas as regiões, embora esta disparidade seja mais pronunciada no Oriente Médio, na América Latina e na África, em comparação com a Europa. Em todo o mundo, os 10% mais ricos ganham mais de 50% de todo os ingressos, enquanto os 50% mais pobres ganham apenas 5%.
Em alguns países, a desigualdade atingiu níveis extremos. Por exemplo, a África do Sul é um dos países mais desiguais, com os 10% mais ricos a capturar 65% da renda nacional. O Iêmen também tem uma desigualdade significativa, com os 10% mais ricos abocanhando 59,5% da renda e apenas o 1% mais rico fica com 25%.
Na OCDE, os Estados Unidos são o país mais desigual, com 21% da renda nacional indo para o 1% mais rico, o mesmo que no México (21%) e um pouco mais do que na África do Sul (19%).
Depois, há a desigualdade global de renda, isto é, a disparidade entre a renda dos adultos nos países pobres e ricos; e na renda média de cada país. Em 2023, a renda nacional per capita média mundial (incluindo o valor “em espécie” dos serviços públicos) se situara em torno dos 12.800 euros por ano (PPA), ou seja, 1.065 euros por mês. No entanto, este número esconde enormes disparidades entre regiões. Por exemplo, a renda média na África Subsaariana era de apenas 240 euros por mês, em comparação com mais de 3.500 euros na América do Norte e na Oceania, uma diferença de 1 para 15.
O rápido crescimento econômico na Ásia (especialmente na China e na Índia) tirou muitas pessoas da pobreza extrema. Mas o 0,1% e o 1% mais ricos do mundo colheram uma parcela muito maior dos benefícios econômicos, de acordo com o Relatório Mundial sobre Desigualdade. Em 2020, o 1% mais rico embolsou 20,6% da renda global, 2,8 pontos percentuais a mais do que em 1980. O 0,1% mais rico embolsou 8,59% em 2020, o que representa um aumento de 1,98 ponto percentual desde 1980. Embora a crise financeira de 2008 tenha afetado estes ultrarricos, o 0,1% mais rico praticamente já recuperou a parte da renda mundial de que desfrutavam em 2007.
A pandemia da Covid-19, a inflação resultante e o aumento dos conflitos internacionais fizeram com que as taxas globais de “pobreza extrema” aumentassem nos últimos quatro anos. O declínio nas formas menos extremas de pobreza global, mais comuns nos países de renda média, continuou, mas a um ritmo muito mais lento do que durante a década de 2010. A menos que algo mude, o Banco Mundial alerta para uma possível “década perdida” para “a guerra” contra a pobreza mundial.
A produção anual per capita nos Estados Unidos é de 73.000 dólares, aproximadamente 26 vezes a média dos países de baixa renda. Mesmo os países de renda média-baixa, como a Índia, a Nigéria e as Filipinas, representam apenas um nono da produção econômica dos EUA. Este PIB mais baixo representa menos consumo de alimentos, cuidados de saúde e tecnologia, menos investimentos em infraestruturas, educação e habitação, e menos bem-estar geral para milhares de milhões de pessoas em todo o mundo.
A desigualdade de renda entre e dentro dos países é insignificante em comparação com a desigualdade de riqueza. Como já relatei em outras ocasiões, o último Relatório sobre a Riqueza Mundial do UBS mostra que o 1,5% mais rico dos detentores de riqueza pessoal detém cerca de 48% de toda a riqueza pessoal global, ao passo que 40% da população mundial mais pobre não possui nada (depois das dívidas).
Os “indivíduos com patrimônio líquido muito alto”, termo usado no setor da gestão de patrimônios para designar as pessoas com patrimônio superior a 30 milhões de dólares, possuem uma parte surpreendentemente desproporcional da riqueza mundial. Estes proprietários possuem 6,5% da riqueza total mundial, embora representem apenas uma pequena fração (0,003%) da população mundial.
Embora a concentração da riqueza esteja aumentando em quase todos os países, necessita-se muito mais riqueza para estar entre os 1% mais ricos em diferentes países. De acordo com o Knight Frank Wealth Report, nos Estados Unidos é preciso ter pelo menos US$ 5,8 milhões para entrar neste seleto clube. Isto é, 5,4 vezes mais do que o mínimo necessário para pertencer ao 1% mais rico na China, a segunda maior economia do mundo, e 1,5 vez mais do que na Alemanha, a terceira maior.
De acordo com o último Relatório de Riqueza Global do UBS, os 26 bilionários mais ricos do mundo possuíam surpreendentes US$ 2,8 trilhões em 2023. Esta riqueza combinada é maior do que o total de bens e serviços que a maioria das nações produz anualmente, de acordo com os dados do PIB do Banco Mundial.
Em comparação com outros países, os Estados Unidos registraram a maior expansão da sua classe bilionária em 2024, de acordo com o Relatório de Ambições dos Bilionários do UBS. De acordo com o banco de investimento com sede na Suíça, o número de bilionários estadunidenses passou de 751 em 2023 para 835 em 2024. O clube chinês de nove dígitos, ao contrário, caiu de 520 para 427, à medida que a crise imobiliária e a turbulência no mercado financeiro socaram muitos novos membros para abaixo de US$ 1 bilhão.
As estatísticas da OCDE mostram que o 1% mais rico dos Estados Unidos possui 40,5% da riqueza nacional, um percentual muito mais elevado do que em outros países da OCDE. Em nenhum outro país industrializado o 1% mais rico possui mais de 27% da riqueza nacional.
A China registrou um rápido crescimento neste nível de riqueza. Mas embora esse país tenha mais de quatro vezes a população dos Estados Unidos, o número de estadunidenses com alto patrimônio líquido é 4,8 vezes o da China.
É quase impossível compreender a magnitude da desigualdade da riqueza nos Estados Unidos. Pense assim: US$ 100.000 economizados para a aposentadoria são uma pilha de notas de US$ 100 de 4,3 polegadas; 1 milhão de dólares equivale a 43 polegadas; e US$ 1 bilhão equivalem a 3.600 pés, ou seja, 12 campos de futebol (o prédio mais alto do mundo tem 2.722 pés). No entanto, Elon Musk tem 486 bilhões de dólares, o que equivale a 330 milhas de altura ou 60 Montes Everest empilhados!
E quando se utiliza o índice Gini tanto para a renda como para a riqueza de cada país, a diferença é impressionante. Vejamos alguns exemplos. O índice Gini dos EUA é de 37,8 para a distribuição da renda (bastante alto), mas o índice Gini para a distribuição de riqueza é de 85,9! Ou vejamos a supostamente igualitária Escandinávia. O índice Gini para a renda na Noruega é de apenas 24,9, mas o da riqueza é de 80,5. A mesma coisa acontece nos demais países nórdicos. Os países nórdicos podem ter uma desigualdade de renda inferior à média, mas têm uma desigualdade de riqueza superior à média.
Quais países têm a maior desigualdade na riqueza pessoal? Aqui estão as 10 sociedades mais desiguais do mundo.
Seria de se esperar que alguns destes países figurassem entre os 10 primeiros: isto é, muito pobres ou governados por ditadores ou militares. Mas os 10 primeiros também incluem os Estados Unidos e a Suécia. Assim, tanto uma economia avançada “neoliberal” como uma economia “socialdemocrata” estão na lista: o capitalismo não discrimina quando se trata de riqueza.
No obstante, os EUA destacam-se como líderes das principais economias avançadas do G7 em termos de desigualdade de riqueza e renda.
Na verdade, conseguimos discernir se a elevada desigualdade de riqueza está estreitamente correlacionada com a desigualdade de renda? Utilizando o índice FEM, descobri que havia uma correlação positiva de cerca de 0,38 entre todos os dados: assim, quanto maior a desigualdade de riqueza pessoal numa economia, maior será a probabilidade de desigualdade de renda.
A pergunta é: o que impulsiona o quê? A resposta é simples. A riqueza gera riqueza. E mais riqueza gera mais renda. Uma elite muito pequena possui os meios de produção e as finanças e é assim que usurpam a parte do leão e uma maior parte da riqueza e da renda.
Outro aspecto importante da desigualdade de riqueza é que ela é alcançada principalmente pela herança passada de uma geração para outra. Donald Trump tornou-se bilionário porque seu pai já estava perto disso; Elon Musk começou com o apoio milionário do pai. O sonho americano de enriquecer através do trabalho árduo e do empreendedorismo é apenas um sonho, não uma realidade.
E um estudo realizado por dois economistas do Banco da Itália revelou que as famílias mais ricas de Florença descendiam das famílias mais ricas de Florença há quase 600 anos. Assim, as mesmas famílias permanecem no topo da riqueza desde a ascensão do capitalismo mercantil nas cidades-estado da Itália, passando pela expansão do capitalismo industrial, até chegar ao mundo do capital financeiro.
E falando da escandalosa desigualdade de riqueza na “igualitária” Suécia, uma nova pesquisa revela que bons genes não fazem com que tenhamos sucesso, mas o dinheiro da família, ou o casamento, sim. As pessoas não são ricas porque são mais inteligentes ou têm mais educação. É porque têm “sorte” e/ou herdaram a riqueza dos pais ou parentes (como Donald Trump). Os pesquisadores descobriram que “a riqueza está fortemente correlacionada entre os pais e os seus filhos” e “comparando a riqueza líquida dos pais adotivos e biológicos e a do filho adotivo, descobrimos que, mesmo antes de qualquer herança, existe um papel substancial do ambiente e um papel muito menor dos fatores pré-natais”. Os pesquisadores concluíram que “a transmissão da riqueza não se deve principalmente ao fato de os filhos de famílias mais ricas serem intrinsecamente mais talentosos ou mais capazes, mas porque, mesmo em uma Suécia relativamente igualitária, a riqueza gera riqueza”.
Mas, como argumentei anteriormente, a concentração da riqueza tem efetivamente a ver com a propriedade do capital produtivo, dos meios de produção e das finanças. É o grande capital (financeiro e empresarial) que controla os investimentos, os empregos e as decisões financeiras no mundo. Um núcleo dominante de 147 empresas, por meio de participações entrelaçadas com outras, controla conjuntamente 40% da riqueza da rede mundial, de acordo com o Instituto Suíço de Tecnologia. Um total de 737 empresas controlam 80% de tudo. Esta é a desigualdade que importa para o funcionamento do capitalismo: o poder concentrado do capital. E como a desigualdade de riqueza deriva da concentração dos meios de produção e das finanças nas mãos de poucos; e como essa estrutura de propriedade permanece intacta, qualquer aumento nos impostos sobre a riqueza nunca conseguirá alterar irreversivelmente a distribuição da riqueza e da renda nas sociedades modernas.
O poder do capital também é exercido internacionalmente entre as nações. Excluindo os países com uma população inferior a 10 milhões de habitantes, todos os 10 países mais ricos recebem rendas líquidas estrangeiras positivas por seu capital. Pelo contrário, os 10 países mais pobres do mundo são antigas colônias, a maioria localizada na África Subsaariana. Eles mostram tendências opostas às dos mais ricos. A maioria destes países paga grandes receitas líquidas para o resto do mundo. Com outras palavras, estes países enviam mais dinheiro do que recebem de investimentos estrangeiros. Esta sangria limita a sua capacidade de investimento em áreas como infraestrutura, saúde e educação, fundamentais para escapar da pobreza. Não é de se admirar que nunca consigam “alcançar” e encurtar a distância com o Norte Global.
Outro subproduto deste nível grotesco de concentração da renda e da riqueza é que os 50% mais pobres da população mundial são responsáveis por apenas 12% das emissões globais de carbono, mas estão expostos a 75% das perdas de renda (em relação com o que seriam as rendas se estivéssemos em um mundo sem mudanças climáticas).
Pelo contrário, os 10% mais ricos do mundo são responsáveis por quase metade de todas as emissões, mas sofrem apenas 3% das perdas relativas de renda, de acordo com a análise do World Inequality Lab. Assim, pois, temos um exemplo claro de como a desigualdade econômica gera desigualdade social e empurra a maior parte da humanidade e da natureza à beira do abismo.