21 Novembro 2024
Quando o migrante se vê empurrado à estrada devido à penúria, à violência ou a alguma catástrofe, está em jogo o instinto de sobrevivência.
O artigo é de Alfredo J. Gonçalves, padre, CS, assessor do SPM – São Paulo.
O “direito de ir e vir” comporta, necessariamente, uma face tríplice: a possibilidade de migrar, a liberdade de permanecer na terra natal e o sonho antecipado de retornar (em caso de ter migrado). Os três verbos – migrar, ficar e retornar - desenham os contornos daquele direito fundamental de todo cidadão. Concentrando o olhar no contexto atual, na imensa maioria dos casos, em lugar de desfrutar desse “direito de ir e vir”, os migrantes sofrem uma obrigação compulsória de deixar o próprio país, lugar onde estão sepultados os restos mortais de seus antepassados.
A migração torna-se, assim, uma fuga. Fuga da violência em todas as suas manifestações: guerras, intolerância étnico-religiosa, oposição político ideológica, conflitos localizados; fuga da situação de pobreza, miséria e fome, bem como de condições adversas que se revelam na falta de terra e trabalho ou de oportunidades para abrir caminhos em direção a uma vida melhor; fuga, enfim, dos efeitos devastadores das catástrofes cada vez mais extremadas, provocadas pelo aquecimento global e pela vertiginosa velocidade das mudanças climáticas. O planeta terra, em sua genuína trajetória, não consegue reciclar-se ao ritmo frenético e alucinado com que a política econômica globalizada utiliza de seus recursos.
Semelhante agitação febril da humanidade, ao sacudir as placas tectônicas da economia capitalista de lucro e de mercado, sacode igualmente as ondas superficiais, provocando, dessa forma, deslocamentos humanos de massa cada vez mais frequentes. E, ao mesmo tempo, mais intensos, diversificados e complexos. Disso se conclui que o fenômeno migratório em seu conjunto, se nas décadas passadas tinha uma origem e um destino mais ou mens pré-determinados, nos dias de hoje os migrantes passam a errar pelas estradas sem saber onde replantar as raízes arrancadas à força.
Numa palavra, as migrações tornam-se mais incertas, mais inseguras e mais inquietantes. Nos rumos e horizontes dos migrantes, as nuvens se acumulam e adensam sombriamente. Nessa perspectiva, as três faces do “direito de ir e vir”, como vimos acima, se reduzem a uma mera fuga, não raro apressada pelas bombas, pela fome ou por estiagens e enchentes dramáticas. Na verdade, se essas três alternativas não estão contemporaneamente presentes, acaba por prevalecer apenas uma espécie de saída pressionada pelas mais diversas circunstâncias. As alternativas de permanecer como cidadão do próprio país, por uma parte, ou de retornar após uma experiência migratória, por outra, tornam-se opções descartadas de antemão por algum tipo de constrangimento violento.
A verdade é que quando se apresenta para uma pessoa ou família a necessidade de sair, deveria se apresentar, ao mesmo tempo, a possibilidade de ficar, bem como a de retornar em caso de partida. Se as três alternativas não ocorrem de forma simultânea, verificamos então que o “direito de ir e vir” fica limitado à obrigação de escapar a todo custo de uma situação hostil e adversa. Ao pretender migrar, a pessoa ou família experimenta simultaneamente o desejo de permanecer com as raízes no solo em que nasceu, como também o sonho de um possível retorno mais ou menos próximo. Em caso contrário, o migrante se vê diante de uma contingência de inapelável impotência. Pressionado pela necessidade ou pela perseguição, sente-se condenado a fugir. Neste caso, convém distinguir corretamente o que representa a fuga e o que representa a busca.
A fuga não permite qualquer tipo de escolha: a carência e falta de novas oportunidades, os abalos climáticos ou as divergências político-ideológicas exigem via de saída, por vezes tão imediata quanto inesperada. A busca, pelo contrário, contém boa dose de opção: embora o migrante não esteja pressionado por adversidades, opta por migrar em direção a um futuro mais promissor numa outra região ou país. No primeiro caso, prevalece a necessidade de salvar a si mesmo e à família; no segundo, prevalece a liberdade de fazer uma aposta pessoal/familiar por uma mobilidade geográfica que represente, ao mesmo temo, uma mobilidade social.
Quando o migrante se vê empurrado à estrada devido à penúria, à violência ou a alguma catástrofe, está em jogo o instinto de sobrevivência. Migrar se converte em uma solução última, por mais precária que seja, mas uma solução que o submete ao “destino”, como se diz. De forma inversa, quando ele resolve subjetivamente aventurar-se através de novas veredas e novas oportunidades, embora não esteja à beira do desespero ou da miséria, está em jogo a liberdade de escolha. Ou seja, quando aquilo que o leva a se decidir pela partida são as circunstâncias externas, o “direito de ir e vir” torna-se, a rigor, definitivamente comprometido. Tal direito só existe em termos reais e verdadeiros, quando em correspondência existe também o direito de ficar. Um e outro – partir ou permanecer – devem ter o mesmo peso na balança, então sim cria-se o terreno propício para uma decisão livre e espontânea.
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Direito e ir e vir. Artigo de Alfredo J. Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU