11 Junho 2024
"Em suma, deveriam ser mudadas a eclesiologia e a teologia sacramental desde os alicerces, para poder dar espaço às mulheres na vida da Igreja com plenos direitos. Nos nossos círculos se fala da tentação de 'recomeçar de Adão e Eva' para explicar o que está acontecendo agora", escreve Alberto Cozzi, professor de teologia sistemática da Faculdade Teológica da Itália Setentrional, em Milão, em artigo publicado por Avvenire, 06-06-2024.
A exigência expressa por esse tipo de slogan, não muito feliz, mas eficaz, é algo legítimo e até inevitável. Corresponde ao sentimento da época e, portanto, àqueles “sinais dos tempos” (aqueles fenômenos culturais e sociais em que se expressam aspirações humanas legítimas que se tornam desafios pastorais e apelos de Deus), com os quais se deve seriamente fazer as contas para reapropriar-se do Evangelho no tempo que nos é dado. Um maior envolvimento das mulheres na vida da Igreja, como subjetividades dotadas de titularidade própria e original em sua ação pastoral e missionária, é algo que corresponde às condições da experiência atual em muitas partes do mundo e especialmente nas sociedades avançadas. Mas é também uma provocação útil para a Teologia, que encarna o diálogo da Igreja com o mundo num regime de reciprocidade e, portanto, de mútuo enriquecimento: “Nos últimos séculos houve grandes desenvolvimentos sociais e culturais. Poderiam ser citados, por exemplo, [...] os movimentos de emancipação e promoção dos direitos das mulheres, os movimentos pela paz e justiça, os movimentos de libertação e democratização, e o movimento ecológico.
No passado, a ambivalência da história humana levou por vezes a Igreja a ser excessivamente cautelosa com esses movimentos, vendo neles apenas as ameaças que poderiam representar para a doutrina e fé católicas, desconsiderando a sua importância. Tais atitudes, no entanto, modificaram-se gradualmente graças ao sensus fidei do Povo de Deus, à clarividência de cada crente profético e ao paciente diálogo entre teólogos e culturas circunstantes. Fez-se um melhor discernimento à luz do Evangelho, com uma disponibilidade mais pronta para ver como o Espírito de Deus poderia falar por meio desses eventos. Em qualquer caso o discernimento deve fazer uma distinção cuidadosa entre elementos compatíveis com o Evangelho e aqueles que são contrárias, entre contribuições positivas e aspectos ideológicos, mas a maior compreensão do mundo que disso resulta só pode levar a uma apreciação mais penetrante de Cristo Senhor e de Evangelho, já que Cristo é o Salvador do mundo" (Comissão Teológica Internacional, La Teologia oggi: prospettive, principi e criteri, n. 55).
A postura que emerge destas linhas parece-nos realmente equilibrada e pertinente. Trata-se de corresponder a um sentimento partilhado, que contém valores inegáveis, e deixar-se provocar por uma transformação do hábito social que traz à tona valores inscritos na dignidade das pessoas, homens e mulheres. Mas esta legítima exigência, para ser verdadeiramente fecunda, deve passar dos slogans e das teorias, mais ou menos revolucionárias, às boas práticas. A diferença é aquela entre o continuar a gritar e protestar por uma injustiça, pedindo uma revolução das estruturas e da própria autocompreensão da Igreja e o desencadeamento de processos de reforma que criem outro clima e propiciem novas evidências compartilhadas.
Em especial, parece-nos poder identificar dois riscos envolvidos nos tons reivindicativos e polêmicos de determinadas abordagens do tema. O primeiro risco é o de errar de método. Há sinais dos tempos que despertam a atenção da consciência eclesial sobre aspectos da sua vida e experiência cristã, que tinham ficado enterrados na tradição, tornados inativos por fenômenos de costume ou de mentalidades não convertidas ou não suficientemente evangelizadas. Isso significa que podem ocorrer eventos que reativem a percepção de verdades “esquecidas ou subestimadas”, que obrigam a Igreja a “examinar” a sua tradição (Dignitatis Humanae, n. 1) a fim de redescobrir e revitalizar dimensões há muito desatendidas. Algo assim aconteceu com o Vaticano II sobre a liberdade religiosa.
Contudo, note-se o método: não se trata de contestar a tradição, julgando-a envenenada por fenômenos de paternalismo masculinista ou jogos de poder que minam a credibilidade do Evangelho e equivocam a sua apropriação. Trata-se mais de reformar a Igreja por um “ressourcement”, um retorno às fontes. Neste sentido é preciso recuperar aqueles rostos de santas e testemunhas proféticas que marcaram a vida da Igreja e a sua espiritualidade: abadessas carismáticas, rainhas com autoridade em termos de capacidade de governo e costumes, grandes figuras espirituais e místicas, fundadoras de congregações missionárias, educadoras competentes e santas da caridade, bem como mártires da fé, que criaram de várias formas o rosto feminino da ação do Espírito que constrói a Igreja, incidindo na sua história. Esse tipo de operação, que percebe o que já o Espírito de Cristo está realizando e, portanto, se apropria de um legado já rico, está longe da hermenêutica da suspeita, das dinâmicas da “cultura do cancelamento” ou da cultura "woke", que visam apagar uma tradição que parece demasiado masculinista, paternalista e androcêntrica, reinventando a Igreja. Tal abordagem não ajuda a iniciar processos construtivos.
A ideia de que devam ser destruídos e criminalizados processos de tradição para dar lugar à “nova Igreja” ou a um “Cristianismo melhor”, oferece a possibilidade de reações confusas de natureza oposta e cria conflitos desnecessários. É um hábito inadequado da comunicação atual ligar todo fenômeno a grandes categorias negativas a serem combatidas (da cultura patriarcal às mudanças climáticas), evitando ler os acontecimentos no seu contexto imediato, para avaliar quais recursos vivos ainda estão disponíveis para “dar um passo além”, o passo possível e necessário. Um segundo risco é o da abstração teórica, ou seja, o intelectualismo teológico. Trata-se daquela tentação, típica de uma certa academia teológica recente, para a qual é preciso abrir espaço para o feminino na Igreja, refundando-a e repensando toda a doutrina e teologia.
Em suma, deveriam ser mudadas a eclesiologia e a teologia sacramental desde os alicerces, para poder dar espaço às mulheres na vida da Igreja com plenos direitos. Nos nossos círculos se fala da tentação de "recomeçar de Adão e Eva" para explicar o que está acontecendo agora. Naturalmente, também é verdade que o a novidade do Evangelho refunda a experiência humana, inserindo nela novidades radicais e sempre surpreendentes. Mas isso não pode significar que periodicamente se tenha que reinventar tudo do zero, para reativar a novidade de Cristo. Assim se corre o risco de querer mudar tudo, sem conseguir modificar nada. Afinal, uma específica abordagem de "hermenêutica radical da suspeita" deixa a impressão de que, para defender uma causa justa, no mínimo deve ser posto em discussão todo o arcabouço doutrinário da Igreja.
Nessa direção pode acontecer que se passe de considerar as normas paulinas (com razão) ultrapassadas sobre o véu das mulheres e o seu silêncio na assembleia, a julgar igualmente antiquadas e agora inúteis as concepções cristãs da era apostólica sobre a ressurreição ou a encarnação ou redenção pela cruz. Afinal, não se trata de uma visão primitiva, mitológica e datada do mundo? O perigo não está tão distante da realidade (como mostram algumas críticas aos dogmas marianos, que expressam de sua parte uma grande devoção a Maria, mas às vezes são lidos à luz dos estereótipos machistas a serem combatidos). É a tentação recorrente de atualização da fé sobre a cultura no lugar da sua revelação, tornando a mensagem cristã mais atraente para as mulheres e os homens de hoje, por ser mais correspondente aos gostos da época e às modas culturais. Existe agora uma suspeita generalizada de que a Igreja seja uma entidade historicamente atrasada para uma interpretação do Evangelho pelo magistério, muito clerical e não à altura dos desafios da modernidade. Seria, portanto, necessário converter o clero e a sua visão da realidade, mais que evangelizar o mundo.
Tudo isso não pretende diminuir a importância da contribuição da teologia e do seu trabalho teórico. De resto, poder-se-ia objetar que sem uma teoria adequada não é possível legitimar de forma coerente o papel e a contribuição das mulheres na Igreja. Um lugar sintomático do nível teológico da problemática é a questão da fundação de um certo papel eclesial, com a correspondente autoridade (potestas), com base sacramental: pode ter titularidade própria em um cargo eclesiástico, uma mulher que baseia o seu ofício no Batismo, diante de um bispo e cardeal que o baseia no sacramento da Ordem sagrada? Mas hoje, na sociedade complexa em que vivemos, o fundamento de uma titularidade é e deve ser a competência em um determinado setor. E muitas mulheres possuem uma competência no âmbito administrativo, gerencial, comunicativo, educacional e teológico, que bispos e sacerdotes nem sequer conseguem imaginar. Neste sentido é preciso dar início àquelas boas práticas que utilizam critérios de competência na organização da missão da Igreja.
Neste sentido parece-me urgente fazer um levantamento das numerosas competências nos vários âmbitos da vida da Igreja, criar contextos favoráveis a uma nova forma de organizar espaços e distribuir papéis, que estabeleçam um novo clima e atmosfera favoráveis à plena presença das mulheres nos vários âmbitos da gestão pastoral da vida das nossas estruturas e comunidades. Trata-se de perceber a riqueza espiritual e existencial que as mulheres podem oferecer à vida de fé presidindo orações comunitárias, partindo o pão da Palavra e guiando a oração, mas também educando à fé e administrando os bens da Igreja. Isso é factível, sem revoluções ou traumas. Trata-se, em última análise, de promover processos “a partir de baixo” e não de organizar revoluções a partir de cima ou dos “centros de gestão”. Tem sido visto nas últimas décadas que os procedimentos dedutivos ou aplicativos de princípios ou valores abstratos à vida prática não funcionam. Na Igreja valem lógicas generativas, que mergulhando na realidade dada e nas suas possibilidades, a partir de um juízo de fé partilhado sobre a situação, iniciem processos de renovação, dóceis à moção do Espírito de Cristo e armados pela paciência típica dos filhos da ressurreição. Deus tem tempo para nós e sabe esperar. Somos nós que temos pressa e estabelecemos prazos.
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Como “desmasculinizar” a Igreja? Não apenas slogans, mas boas práticas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU