01 Junho 2024
“Qualquer caminho que queira ser realista e sustentável rumo a um desenvolvimento doutrinal deve rejeitar as perspectivas de uma dissolução da tradição, pois ela também constitui uma herança.”
Publicamos aqui alguns trechos do prefácio assinado por Massimo Faggioli à edição em língua inglesa do livro de Leonardo Paris, L’erede: una cristologia, recém-publicada pela editora Brill.
Faggioli é historiador e professor da Villanova University, em artigo publicado por Teologi@Internet, 08-11-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Certos livros interceptam o leitor enquanto ele passa por uma determinada situação pessoal e conseguem, assim, comunicar algo capaz de ressoar fortemente, muito além do que se poderia esperar de um texto de teologia.
Nos últimos anos, no que me diz respeito – como homem e membro da comunidade eclesial, social e política – passei do estado de marido e pai para o estado de filho que deve cuidar também dos pais idosos, e encontrei orientações esclarecedoras no livro “O herdeiro: uma cristologia”, escrito na perspectiva do “herdeiro”.
Por essa razão, estou particularmente grato a Leonardo Paris por me pedir para refletir sobre a sua obra durante esse período de provação.
[…]
O livro de Paris é importante por razões que vão muito além da minha situação pessoal e que dão a “O herdeiro” a capacidade de falar de maneira potente. Em particular, lança luz, de forma indireta, mas inevitável, sobre pelo menos quatro questões emergentes e urgentes que, a meu ver, como eclesiólogo, são cruciais tanto na Igreja quanto na sociedade em geral.
A primeira questão é a tragédia dos abusos na Igreja – abuso sexual e abuso de autoridade e poder. Indiretamente, “O herdeiro” nos fornece uma ferramenta importante para o desdobramento da cristologia diante da mais grave crise da Igreja (não apenas católica) desde o século XVI, porque corrige a tentação de confiar apenas em medidas legais e administrativas para lidar com uma crise que não é apenas disciplinar, mas também teológica e espiritual.
Paris escreve:
“Não há lugar tão escuro, tão ferido, que não possa ser vivido por filhos e irmãos. Por isso [Jesus] teve que fazer a sua parte, teve que se expor, pois a realidade não falava, de forma alguma, palavras de filiação e fraternidade. Não se trata de uma constatação, mas de uma posição tomada em relação à realidade. A ação e a palavra livres de Jesus impuseram-se aos acontecimentos, mudando sua perspectiva. Quanto mais acontecimentos vinham à tona, mais forte se tornava a necessidade de dar e expressar um sentido aos acontecimentos que eles imediatamente não tinham e não diziam.”
A aparente insignificância dos abusos na Igreja pode levar a uma nova forma de compreender a comunidade eclesial; mas esse novo caminho permanece ilusório sem uma cristologia que evite a tentação de identificar as vítimas de abuso com Jesus como vítima. Isso é crucial em uma era em que as narrativas sobre a Igreja correm o risco de serem sufocadas em uma espécie de dispositivo “absolutizante”, em que o foco exclusivo nas vítimas visíveis obscurece os oprimidos – e com isso, obscurece a luta e o anseio de libertação para todos.
A tentação de permanecer fixado nas feridas da vítima é um dos atalhos contra os quais “O herdeiro” nos adverte, juntamente com a tentação de uma teologia da infância que empurra os filhos a um estado de natureza original. Paris escreve: “No que diz respeito à era do filho-criança, deve-se reconhecer a peculiaridade da infância, sem transformá-la em fetiche. Tanto do ponto de vista educativo quanto religioso, podem existir riscos. A passividade absoluta das crianças, além de falsa, não pode ser mitificada como condição ideal diante de Deus. O Pai não deseja filhos infantis e adormecidos”.
A contribuição de uma cristologia do herdeiro ajuda-nos a enfrentar um enorme ponto de virada sociocultural no que diz respeito à forma como as instituições (eclesiais ou não) tratam a infância. “Os nossos contemporâneos ou, melhor, todos nós, não caímos em um abismo moral, estamos simplesmente enfrentando crises e desafios típicos da Era do Filho, típicos dos filhos que se tornam adultos. O que eu gostaria de mostrar é como o próprio Jesus enfrentou essa passagem decisiva”.
“O herdeiro” nos ajuda a colocar o filho no centro, em um momento em que a herança da tradição cristã parece ser, para a muitos dos nossos contemporâneos, a herança de um sistema corrupto, com mais perdas do que ganhos.
“A escolha da categoria de herança queria servir para focar essa partilha real do poder que coloca os filhos no centro. Se falar de herança significa falar de um poder entregue, a cruz e a ressurreição redefinem esses conceitos, porque falam de um dom sem retorno, e assim redefinem para sempre tanto o poder quanto a herança.”
A segunda grande contribuição oferecida por “O herdeiro” é o discurso teológico e eclesial sobre cristianismo e poder – não limitado à esfera eclesial. A perspectiva da herança nos ajuda a atribuir às lógicas de poder meramente políticas (a democracia na Igreja, a separação de poderes, freios e contrapesos etc.) o papel que merecem, sem expor a tradição cristã às carências e às contradições inerentes a qualquer filosofia política, incluindo aquelas que inspiram a ordem constitucional liberal.
Isso tem implicações imediatas para a discussão sobre a sinodalidade na Igreja, e essa contribuição é ainda mais importante, pois nos encontramos recuperando uma antiga tradição sinodal, mas também estamos em uma fase constitutiva totalmente inédita para essa mesma tradição. Paris sublinha isso com estas palavras:
“Não será possível encontrar uma forma decente de convivência em nível político sem reconhecer a natureza partilhada do poder e sem identificar formas concretas de exercê-lo. Isso é particularmente evidente dentro da Igreja. Não é mais possível citar Paulo – ‘Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus’ (Gal 3,28) – e apelar à sinodalidade, sem reconhecer que isso significa encontrar formas históricas concretas para que a cada pessoa seja reconhecido o poder que o Pai quis lhe confiar. De fato, falar de sinodalidade, mesmo quando é o papa quem o faz, não pode ser a concessão de um poder absoluto. Não se trata de um princípio humanístico, mas teológico. As diferenças entre padres e leigos, homens e mulheres, jovens e velhos, até mesmo entre cristãos e não cristãos, estão sempre submetidas ao fato de sermos todos filhos de um Pai que quis partilhar seu poder com cada um.”
Paris nos introduz em uma perspectiva cristológica do poder que tem muito a dizer não só aos discursos intraeclesiais contemporâneos, mas também a todos aqueles que testemunham a reconfiguração e o deslocamento do poder nas comunidades políticas: “O Pai partilha seu poder. Com todos. E configura todo poder como partilhado. Quem quiser exercer o poder – e cada um exerce o poder, porque Deus dá o poder a cada um – é levado à beira desse reconhecimento. Sua origem é compartilhada, porque cada um, como filho, recebeu de outros seu próprio poder. […] Quem exerce o poder, portanto, o faz diante de Deus, perante a origem de todo poder. Quem não sabe ou não quer viver o poder como partilhado acabará por exercê-lo contra sua origem”.
Essa cristologia do poder possui o potencial de abrir os nossos olhos diante de uma visão da sinodalidade que revela uma paixão ingênua pelas dinâmicas mundanas e, ao mesmo tempo, diante da espiritualização do poder na Igreja, que muitas vezes servem como justificativa para o status quo.
O terceiro ponto sobre o qual “O herdeiro” lança uma luz importante é sobre o impacto das “políticas identitárias” na Igreja e na teologia. A perspectiva da herança se concentra na relacionalidade, que é uma contribuição muito necessária para os discursos teológicos sobre a identidade – identidade sexual e de gênero, igualdade, subjetividade.
Um primeiro conceito importante é o da multiplicidade e da interconexão das relações: “Talvez o traço mais escandaloso resida no fato de Deus não se confia apenas à relação, mas às relações. Ou seja, ele se confia a relações que não são apenas dele. Nos eventos da Paixão, o nome do Pai não estava ligado apenas à relação que Jesus tinha com ele, mas também às diversas relações que envolviam o Filho”.
Essa cristologia relacional (de uma relação não exclusiva com o Pai) liberta-nos da tentação de conceber a identidade (tanto individual quanto coletiva) como independente, absoluta e em contraposição: “Essas relações não são concessões, mas a confirmação de que a identidade de Deus é recíproca e gera identidades recíprocas.”
O discurso teológico contemporâneo sobre a identidade é, ao mesmo tempo, um passo à frente rumo ao reconhecimento da dignidade inviolável do ser humano, mas também sofre com a perda de conexões que é acompanhada e é uma consequência das oportunidades tecnológicas de conexão sem precedentes.
Essa atenção à relação entre o Pai e o Herdeiro, no contexto de uma capacidade relacional mais ampla deste último, oferece-nos uma advertência: “Se não somos capazes de viver como irmãos, teria sido melhor que tudo isso não tivesse acontecido. Teria sido melhor sermos filhos de um servo ou, melhor, filhos de ninguém, sem nada para partilhar e nada para arriscar. O que os homens e as mulheres decidem fazer é incerto, o que é certo é o que Deus decidiu fazer e ser”.
[…]
Ao mesmo tempo, “O herdeiro” nos ajuda a evitar a recrudescência da metafísica teológica, que vê tudo necessariamente inserido em uma ordem hierárquica a ser replicada em um sistema religioso e eclesial imutável:
“Ao herdar o Reino, herdamos um espaço caracterizado pela bênção, pela autonomia nas relações, pela generatividade. A metafísica cristã desenha esse espaço aberto, porque esse é o lugar onde os filhos e os irmãos podem existir, o lugar da possível realização do desejo paterno”.
Finalmente, a quarta questão sobre a qual esse livro lança luz é a da teologia da tradição cristã. O colapso do sentido da tradição no cristianismo é mais profundo do que uma interrupção nos mecanismos sociais e institucionais de transmissão e de reelaboração do que foi recebido, e tem a ver com uma compreensão de si mesmo que não é relacional, ou que é apenas sob certas condições.
Assim escreve Paris: “Para Jesus, uma relação imediata consigo mesmo, que prescindisse do Pai e dos irmãos, não teria sido a realização de um sonho, mas sim o afundamento em um pesadelo. A esperança de poder gerar-se na imediaticidade de si mesmo é uma má esperança. Não pode nem sequer ser definida como miragem, porque uma miragem representa algo bom, embora ilusório. Aqui, ao contrário, estamos diante de algo pior: é o próprio objeto da esperança que está equivocado. Não somos livres na imediaticidade de nós mesmos, estamos sozinhos. Não amamos verdadeiramente olhando para a imediaticidade do outro, mas o devoramos ou somos devorados por ele.”
Não há tradição sem comunidade e, em um sentido mais profundo, sem fraternidade, que deve visar ao fim da tradição: “O horizonte escatológico da fraternidade cristã não é representado por uma massa de indivíduos que amam apenas o Filho, mas por um conjunto harmonioso de relações reais, em que a identidade e a liberdade de cada um são postas em jogo em relações singulares”.
Essa dimensão relacional do eu que emerge de uma cristologia do Herdeiro também é muito importante nas nossas discussões sobre o diálogo intercultural em uma Igreja globalizada. Esse livro, com sua proposta cristológica, lembra-nos de nos comportarmos como adultos na abordagem à tradição neste tempo de mudança e de transição para um cristianismo multicultural:
“Esta responsabilidade adulta implica que a herança recebida seja, por sua vez, transmitida. As formas e as forças desse processo estão confiadas a nós, à nossa liberdade. O que temos diante de nós é um espaço aberto, tanto para a nossa própria filiação quanto para a possibilidade dos filhos de amanhã. Uma teologia da herança é uma teologia da transmissão, uma teologia da tradição. Qualquer coisa que tenha sido vida para nós deve se tornar vida para os outros. E as formas ‘tradicionais’ que garantem a transmissão da força que gera filhos devem ser preservadas. Só o adolescente pensa que pode inventar o futuro a partir de hoje – e é desculpável, porque, afinal, ele chegou apenas ontem. O adulto sente o peso de ter recebido formas que lhe permitiram viver como filho e a responsabilidade de transmitir tudo isso de forma vital.”
Esse livro tem algo realmente importante para nos dizer. Por um lado, devemos aceitar o fato de que algumas partes da tradição doutrinal e magisterial da Igreja já foram liquidadas, e não simplesmente atualizadas ou desenvolvidas. Por outro, qualquer caminho que queira ser realista e sustentável rumo a um desenvolvimento doutrinal deve rejeitar as perspectivas de uma dissolução da tradição, pois ela também constitui uma herança.
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Uma cristologia do herdeiro em tempos de crise eclesial. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU